Crónicas de justiça de Rui Cardoso Martins. Relatos de vidas que se cruzam com o poder da lei, o braço da justiça e as circunstâncias de cada um. E quando se levanta o réu, é o juiz que decide
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Foi a morte de Francisco Pinto Balsemão e de Álvaro Laborinho Lúcio e, nesta lenta semana comprida, apenas enviei "profundos sentimentos aos familiares, amigos, alunos, admiradores de dois homens que dedicaram a vida à democracia, à liberdade e à inteligência". Aos dois agradeço e de Pinto Balsemão recordo que, acabado de me fazer jornalista, me desterraram conscrito na Força Aérea onde, ao sol insolente da recruta na Ota, me explicaram que estavam a contar comigo para dirigir a revista Mais Alto!, por ele fundada quando lhe fizeram o mesmo. E antes disso quando, na sua primeira aula magistral no meu primeiro dia do meu primeiro ano de faculdade na Nova de Lisboa, há quarenta anos, chegado do Alentejo fresquinho, lhe perguntei se pensava que algum dia teríamos um computador a escrever poesia e a sala cheia dos meus colegas - uma antiga cavalariça da GNR - desabou de riso com a pergunta do pacóvio, menos ele, menos Pinto Balsemão, que sorriu e disse que era bem possível, é bem possível meu rapaz, e aí está a resposta, está respondido no mundo redondo, sonetos de Shakespeare e odes de Álvaro de Campos escritos pelo ChatGpt com o tema que lhe dermos, se é que a máquina não o escolhe já, mastigando toda a história da poesia e do impossível.
Sobre Álvaro Laborinho Lúcio sou mesmo sentimental porque tenho três encontros impossíveis de esquecer. O último foi num auditório apinhado da Gulbenkian, em Fevereiro de 2023, quando o juiz Álvaro, na Comissão Independente para o Estudo dos Abusos Sexuais de Crianças na igreja, disse ao microfone um verdadeiro acórdão para a história: "É hoje inequívoco que na Igreja Católica foram cometidos crimes sexuais e que houve ocultação dos factos. Numa leitura minimalista, cerca de cinco mil. Muito por defeito, foi muito mais do que isso" e diante dele estava aquele friso de bispos ocultadores engolindo a própria saliva. Lá atrás estava eu, à espera de apertar a mão a Álvaro Laborinho Lúcio, que apertei com força. A mão de um extraordinário jurista e humanista, tão dedicado ao seu país que com isso abafou o seu lado de escritor. Só muito tarde na vida Laborinho Lúcio teve tempo para escrever ficção, novelas, romances, eu sei o que lhe custou a demora, certa vez fui convidado para um encontro, no Tribunal da Relação do Porto, de juristas-escritores, homens e mulheres tantas vezes atormentados pelas circunstâncias diárias de usar esta mesma língua portuguesa num confronto brutal de forças e armas, isto é, o poeta e o prosador esmagados pelo juridiquês, a langue de bois, a língua de madeira das leis, das jurisprudências e das sentenças levadas para escrever à noite em casa.
Pois Laborinho, nesse encontro há anos, estava precisamente a libertar-se, e muitíssimo bem, dessa angústia e, depois de o ler e de o ouvir no Porto, falando com um brilho que só quem o ouviu poderá perceber, apertei-lhe a mão como, enfim, colegas, eu que nunca tirei Direito, mas às vezes tenho que explicar que não.
Em 2016 tive a honra de ter Laborinho Lúcio a apresentar o livro Levante-se o Réu Outra vez, crónicas avós e bisavós desta que agora escutais. Estava vento e chuva na feira do livro de Lisboa, mas é como vos disse acima: só ouvindo o homem. Deixem-me resgatar uma de entre dezenas de frases brilhantes, quando diz que o título Levante-se o Réu, está errado, porque a palavra réu desapareceu nos anos 80: "Primeiro porque a Justiça entendeu que réu já tem uma carga negativa que não deve afirmar sobre quem é chamado a julgamento, mas aqui entre nós também temos de confessar que, entretanto, foram chegando "pessoas de bem" à condição de réu e ficava mal chamar réu a "pessoas de bem", e passaram a chamar-se arguidos."
Se isto não era falar do futuro, o que seria? Só que, acrescentou ele, Levante-se o Arguido era péssimo título para livro... É também por isso que digo "Obrigado Laborinho Lúcio outra vez".
O autor escreve de acordo com a anterior ortografia
