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Crónicas de justiça de Rui Cardoso Martins. Relatos de vidas que se cruzam com o poder da lei, o braço da justiça e as circunstâncias de cada um. E quando se levanta o réu, é o juiz que decide
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Um homem magro de cabelo escorrido, a franja empastada, ouvia a tradutora sussurrar-lhe na orelha sons de jjjjeejeee e sibilados cheniesssssh, e vogais abertas aaaa.... iiii, fonética e sons aparentados ao português, mas as palavras em si eram diferentes das que dizia a juíza num tribunal de Lisboa, na ponta Oeste da Europa. Bóris é russo. Disse a juíza à tradutora:
- Quero que diga ao senhor arguido Bóris que não é um caso em que o tribunal fica convencido de que não acontecerem os factos, mas um caso da aplicação da dúvida séria, razoável, a aplicação do princípio in dubio pro reo.
Bóris mantinha cara de susto, o nariz sonhador no ar, mas já estava a perceber que ia ser absolvido. A tradutora sorria e ele sorria de volta, vermelho-paprika, a maleta a tiracolo.
- Parece-me indubitável, disse a juíza, que pelo menos alguns vídeos permitem confirmar que se trata de algumas das situações descritas na acusação, desde logo aquela em que é descrito o hematoma muito grande na testa da ofendida e que aparece relatado num dos vídeos. E nas lesões nos dedos. A própria ofendida admite que havia vidros no chão, mas não se recordava como é que isso aconteceu, podendo ter sido ela que atirou uma garrafa para se defender, continuou a juíza.
Se não houvesse recurso da ex-mulher Sónia, Bóris já não tinha de se preocupar com a acusação de violência doméstica ou com a indemnização cível. Mas ainda tinha de ouvir a admoestação do tribunal:
- A verdade é que as duas únicas pessoas que sabem o que é que aconteceu são ele e a senhor Sónia. Se por acaso alguma destas situações descritas na acusação aconteceu, queria que dissesse ao senhor Bóris que não pode, de forma alguma, voltar a acontecer. Nem com a senhora Sónia nem com qualquer outra pessoa com quem tenha ou venha a ter relacionamento.
Disse ainda a juíza que é incompreensível que duas pessoas tenham consentido prolongar uma situação como aquela durante um período temporal tão alargado. Que nenhum tenha dado o passo de se afastar.
Quero que lhe diga, frisou a juíza à tradutora, que, "no futuro, isto não pode voltar a acontecer, se é que algum daqueles factos aconteceu."
[Esta frase, na manhã de sol no tribunal, fez-me lembrar uma piada de juventude: "Ia sendo, mas não fondo".]
Foi rejuvenescido que Boris saiu da sala, ainda não totalmente livre por causa da hipótese do recurso, a sussurrar spassiba, obrigado, mas ainda no pânico de ser deportado para a Rússia e para carne para canhão nas guerras imperiais de Putin.
Mas viva as tecnologias. Se Boris parecia um poeta falido do século XIX a viver num sótão gelado de S. Petersburgo, afinal vive em Lisboa há mais de dez anos e usa tecnologia do século XXI. No fim, foi o telemóvel que o salvou. As filmagens que Bóris fez mostraram a "dinâmica complexa" do casal. Quando Sónia o acusara de violência doméstica, há meses, Bóris decidira ficar calado, e, portanto, só a versão de Sónia, como vítima, existia.
Com isso, disse-me o seu advogado, o Ministério Público tentara "destruir a personalidade do arguido", retratando Bóris como um ser brutal, espancador da mulher. Foi difícil ao advogado, já com o julgamento começado, conseguir que o tribunal visse os vídeos. E o que são afinal esses famosos vídeos? Filmados pelo próprio Bóris, num modernismo cinematográfico documental que mais parece ficção, mostram Sónia bêbeda a insultar e a bater em Bóris,
e Bóris em defesa própria, com a mão livre da câmara, a responder batendo em Sónia. Um inferno familiar, anos de desgraça, vergonha, vodka, com os piores palavrões e pragas do mundo eslavo. Mas uma coisa provavam: não é possível provar quem mais batia em quem naquela guerra russa em Portugal.
O autor escreve de acordo com a anterior ortografia
