Morreu José Mattoso: "fundamental" para a História e professor que "sabia fazer sentir os seus alunos especiais"
Tinha 90 anos e era um dos maiores especialistas portugueses em Idade Média. Foi monge beneditino, professor catedrático e diretor da Torre do Tombo.
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O historiador José Mattoso morreu na manhã deste sábado aos 90 anos, avançou o Observador confirmou a TSF junto do diretor da Torre do Tombo, Silvestre Lacerda.
Em declarações à TSF, o atual responsável pela Direção-Geral do Livro, dos Arquivos e das Bibliotecas coloca Mattoso "ao nível daqueles que, desde Fernão Lopes, compõem a história da Torre do Tombo, de que ele foi também responsável" entre 1996 e 1998.
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Nascido em 1933, José Mattoso era especializado nas ordens religiosas e aristocracia da Idade Média e foi o vencedor do primeiro Prémio Pessoa, em 1987.
Natural de Leiria, foi monge beneditino durante 20 anos, primeiro no Mosteiro de São Bento de Singeverga, em Santo Tirso - onde escolheu o nome de José de Santa Escolástica Mattoso -, licenciando-se depois em História pela Faculdade de Letras da Universidade Católica de Lovaina e doutorando-se em História Medieval pela mesma instituição.
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Em 1970 voltou à vida laica e dedicou-se à dimensão académica, integrando em 1972 o corpo docente da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa como professor auxiliar.
Em 1979, tornou-se professor catedrático na Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa.
Liderou o Instituto Português de Arquivos entre 1988 e 1990 e, em 1992, o então Presidente da República Mário Soares atribuiu-lhe o título de Grande-Oficial da Ordem Militar de Sant'Iago da Espada.
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"Fundamental para percebermos a memória deste país"
O legado do historiador é, para Silvestre Lacerda, "fundamental para percebermos a memória deste país e para percebermos melhor a nossa própria identidade nas áreas em que ele foi um especialista, sobretudo na Idade Média", aliadas à "preocupação pela salvaguarda da memória nacional".
Nessa dimensão, grande parte do arquivo pessoal de José Mattoso está sob alçada da Torre do Tombo e encerra em si "alguns tesouros", principalmente "a sua correspondência enquanto intelectual, enquanto homem dos arquivos, que de alguma forma colocou Portugal num sentido internacional".
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Entre os elementos mais interessantes está a correspondência de Mattoso "com os principais responsáveis, quer na área dos arquivos, quer também na sua área de especialidade, em termos de Idade Média", em especial "com quem ele se correspondia, com quem trocava impressões, de quem recebia notícias. Diria que essa é provavelmente a parte mais significativa".
Deste espólio fazem também parte "algumas imagens próprias, mais de caráter pessoal, que ele achou que deviam ficar com o Arquivo Nacional Torre do Tombo, nomeadamente documentação familiar e algumas fotografias de família que ele achou por bem manter, guardar e legar".
A nível pessoal, Lacerda descreve o historiador como "uma pessoa com quem se podia conversar, uma pessoa com quem se podia discordar e alguém que era capaz de ouvir e de argumentar", as dimensões que mais guarda "relativamente a toda uma vida de trabalho".
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José Mattoso apresentava também "uma grande capacidade argumentativa, com rigor", revela o responsável pela Torre do Tombo, que frisa que essa não era "uma argumentação pela argumentação" nem "retórica": "Não, era com conhecimento e com rigor."
Em 2010, assumiu a presidência do Conselho Científico das Ciências Sociais e Humanidades da Fundação para a Ciência e Tecnologia.
"Era o nosso maior historiador vivo"
Em 2015, o historiador foi mandatário nacional do Livre/Tempo de Avançar às eleições legislativas desse ano. Rui Tavares, co-porta-voz do partido e deputado à Assembleia da República, foi aluno de José Mattoso no início da década de 1990 e lamenta à TSF a "perda de uma grande referência".
"Era até há poucas horas o nosso maior historiador vivo, um dos mais importantes historiadores de Portugal, nomeadamente na época contemporânea", assegura, sublinhando que Mattoso marcou "muitíssimos historiadores, alunos, pensadores e autores em Portugal, no Brasil, e em Timor-Leste, onde foi diretor dos Arquivos Nacionais" do país, em cuja construção teve "empenho cívico" por reconhecer na História deste "uma grande dignidade".
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Foi como aluno de História das Religiões que Rui Tavares contactou com José Mattoso enquanto um professor "que também sabia fazer sentir os seus alunos especiais" ao cuidar das suas perguntas e respostas.
Havia, conta, "uma grande serenidade" na forma como Mattoso ia explicando os assuntos nas suas aulas, mesmo quando era confrontado com perguntar que poderiam parecer "ingénuas" aos alunos, jovens de 20 anos.
"A todas as perguntas ele dava atenção, pensava antes de responder e às vezes até dizia: 'É uma pergunta interessante, nunca tinha pensado nisso assim. Vou pensar durante esta semana e na próxima aula digo-lhe'", pormenor que Rui Tavares recorda.
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Na sala de aulas, a cadeira de História das Religiões "tinha um aspeto quase de experiência espiritual", mesmo para quem, como Rui Tavares, "não tem essa dimensão na sua vida".
"Como em muitas das coisas em que José Mattoso participava, e que trazia consigo também na sua história de vida de alguém que foi monge beneditino durante duas décadas e que teve sempre todo uma dimensão cristã muito profunda no seu pensar e na sua maneira de olhar", ser aluno de José Mattoso "imbuía todos" de uma "reverência muito grande pelo seu saber".
José Mattoso é autor de mais de 30 obras, algumas em colaboração, como "O Castelo e a Feira. A Terra de Santa Maria nos Séculos XI a XIII" (1989) com Amélia Andrade e Luís Krus, e "Portugal O Sabor da Terra, um retrato histórico e geográfico por regiões" (1998), com Suzanne Daveau e Duarte Belo.