Público faz concorrência a privados na corrida a médicos tarefeiros: "Está muito dependente e paga o que lhe exigem"
O presidente do conselho clínico dos hospitais privados admite que a falta de médicos é um problema comum. À TSF, José Roquette explica que os privados resolvem o problema mais facilmente porque os gestores têm mais autonomia. A solução "não está nos ministros", tem de "haver um regresso às carreiras médicas"
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Quantos médicos trabalham em instituições privadas?
Não tenho o número completo de médicos que trabalham em instituições privadas, mas não estaria longe se fixasse este número ao redor dos 13, 14 mil médicos que estão ligados a instituições de saúde privadas com hospitalização própria, grandes instituições.
Portanto, sensivelmente metade do número total que se presume haver de médicos no país, sendo que alguns trabalham no público e no privado, não é?
Sim. E se olharmos exclusivamente para os médicos que só trabalham no privado, esse número é um bocadinho inferior, na medida que há ainda muitos que fazem uma dupla função, no público e no privado.
E a questão que se tem colocado nestas duas vias, público versus privado, é a grande discrepância salarial. O setor privado nunca revela quanto paga, não é? E não é obrigado a isso, naturalmente, mas há de facto uma grande discrepância salarial?
Não, eu acho que não há uma grande discrepância salarial e não podemos entender essa discrepância salarial numa perspetiva global. Há médicos que trabalham em ULS [Unidades Locais de Saúde] em regimento próprio, esses médicos são provavelmente mais bem pagos que aqueles que trabalham na mesma especialidade, nomeadamente especialistas em Medicina Geral e Familiar, em ambiente privado. As pessoas depois optam e o valor da remuneração pode não ser o fator decisivo.
Já se olharmos para um grande especialista, uma pessoa que faz cirurgia complexa e que é remunerada em função da sua atividade e da sua experiência, aí provavelmente a discrepância vai ser bastante grande. Se trabalhar numa instituição privada, vai ganhar substancialmente mais do que aquilo que ganharia se trabalhasse exclusivamente numa unidade pública.
E o setor privado também recorre aos chamados tarefeiros?
O setor privado recorre a tarefeiros, mas não gosto dessa palavra, nós não chamamos tarefeiros, chamamos colaboradores pontuais. São colegas de que só precisamos para desempenhar determinadas funções, sobretudo em ambiente de urgência, em que há uma variabilidade na procura que é difícil estabelecer desde logo qual o rácio de médicos para lhe dar resposta e pode haver necessidade de termos, pontualmente, de contratar aquele ou aquele outro.
Mas o regime do tarefeiro é diferente dentro dos hospitais privados porque nós tentamos que esse colega estabeleça uma relação contínua connosco, apesar de ser para desempenhar uma determinada tarefa num determinado período. Por exemplo, tentamos que faça sempre a segunda-feira, das oito à meia-noite.
E os preços são iguais para estes médicos que trabalham pontualmente nos hospitais? São idênticos aos do setor público ou o público faz-vos concorrência?
O público faz-nos concorrência porque precisa de manter essas situações e, portanto, vai ter necessidade de pagar aquilo que as empresas lhe exigem. Normalmente não gostamos de trabalhar com empresas, preferimos trabalhar com o colega diretamente.
São empresários em nome individual, não é? Passam recibo.
Exatamente. Temos de ter atenção a essa nuance.
E o SNS paga mais do que um hospital privado?
Neste grupo específico de profissionais e, nomeadamente, em ambiente de emergência, paga mais.
E a diferença é grande?
Posso dizer que, provavelmente, a diferença existe, mas não deve ser muito significativa, porque, raciocinando, nós não teríamos pessoas para fazer esse mesmo trabalho se a diferença fosse muito significativa, tendo em conta as necessidades do Estado.
Quando vi o programa da vossa reunião no fim de semana, havia uma alínea que fazia referência à escassez de médicos e à dificuldade na fixação de médicos no setor privado, que é uma coisa de que normalmente não se fala...
É sempre um problema, porque perdeu-se um bocadinho aquele hábito antigo de vestir a camisola. Vestia-se a camisola para o bem e para o mal. Agora, os colegas procuram soluções, andam à busca, sistematicamente, de novos locais onde possam encontrar o work-life balance, que é um termo que está muito na moda.
É razoável, é compreensível que seja assim. Temos de tentar arranjar soluções que não fragilizem as instituições, que mantenha a resposta à população. Temos de ter isto estruturado, não se pode andar à procura à última hora: "Ai, ai, que não tenho um colega para fazer hoje a urgência."
Como acontece no Serviço Nacional de Saúde?
Exatamente.
E como é que vão fazer isso?
Temos de encontrar soluções. Não é só o valor da remuneração mensal, não é o único fator que faz um colega ir para um lado ou para o outro. Há outros fatores: a possibilidade de formação, a possibilidade de investigação, a possibilidade de utilizar equipamentos tecnologicamente mais evoluídos. Tudo isso são fatores que influenciam uma decisão.
O que é certo é que o setor privado, os hospitais privados, continuam a crescer pelo país. Já são mais que os hospitais públicos e os novos projetos continuam a ser anunciados. Presumo que nesta fase ainda não haverá essa crise de profissionais, mas a prazo pode colocar-se?
O problema, muitas vezes, é sobrevalorizado na medida em que isso acontece noutras profissões também, o problema também se põe no interior — que tem muito menos capacidade de resposta. É uma realidade do país, estrutural, não é uma realidade só na medicina ou só nos hospitais privados. Portanto, é um problema que tem de ser encarado. Nós tentamos dar a volta, correspondendo às solicitações dos colegas, sabemos que é difícil, por exemplo, arranjar dermatologistas para Évora e que não é complicado arranjar dermatologistas em Lisboa. Temos de tornear essa realidade da melhor maneira possível.
E como?
Varia... tem de haver flexibilidade. Um dos problemas que há em ambiente público é que eles, os administradores, não são melhores nem são piores do que os privados, não têm é a mesma capacidade de gestão e a mesma capacidade de autonomia, não têm a mesma flexibilidade.
Se houver um administrador nosso que está em Évora e que precisa de um dermatologista, ele tem autonomia para contratar, pode decidir na hora, não tem de estar à espera disto, daquilo e daquilo outro, como acontece em ambiente público. Isso é que acho que faz a grande diferença entre a administração das instituições públicas e das instituições privadas.
Esta tendência de crescimento do setor privado e tendência de concentração do público vai chegar a um ponto em que algo tem de acontecer, algo tem de mudar?
Acredito que sim, mas nós [setor privado] temos um caminho, uma direção, um rumo, temos uma estratégia. É mais fácil provavelmente esta estratégia, este rumo e esta direção do que poderá ser no setor público, mas tem de ser repensado. Porque, in extremis, está a prejudicar a população e o seu acesso à saúde.
Mudando de ministro seria mais fácil?
Não, isso é uma fantasia. Não é o facto do senhor ministro ou da senhora ministra, ou deste, ou daquele. É uma coisa estrutural.
Quando comecei a minha prática clínica, nós tínhamos uma carreira, tínhamos um mentor, uma pessoa que era diretor dos serviços, que tinha a sua experiência, sabia o que estava a fazer, dirigia a instituição. E isso acabou. Agora não sabemos quem é que está à frente do serviço hoje, amanhã, depois, que tipo de carreira é que tem de fazer.
Exatamente o que pedem os médicos que trabalham no setor público...
Exatamente.