"Vocação" adiada: quando "o dinheiro move o mundo", médicos de 25 anos também escolhem ser tarefeiros
A partir desta terça-feira, Portugal terá novos médicos tarefeiros. Mais de 2300 recém-formados fazem a escolha da especialidade, mas alguns não terão lugar na opção pretendida
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Quando não há vagas para a especialidade médica preferida, ser tarefeiro por um, dois ou mais anos é uma opção "aliciante". Pela "independência" e pelo "salário vantajoso". Nesta pausa, os recém-formados vão estudando para melhorar a nota na Prova Nacional de Acesso (PNA), porque o sonho continua a ser entrar em Ortopedia ou Cardiologia, o que seja. A TSF percorreu hospitais à procura de prestadores de serviços na casa dos 20 anos: muitos não quiseram identificar-se. Com ou sem rosto, todos convergem num ponto: quando o Governo apresenta medidas "sem pés nem cabeça" para os profissionais de saúde, por mais tentador que seja ser tarefeiro, a paixão é que guia a escolha, mesmo que isso implique "virar as costas a uma vida confortável".
Cláudia Nunes está há um ano a formar-se em Medicina Intensiva no Hospital Garcia de Orta, em Almada, e antes foi tarefeira em São Miguel, nos Açores. Quando tomou esta decisão, as "inseguranças eram muitas", mas, no final, a experiência como prestadora de serviços foi "extremamente positiva": não está "nada arrependida" de ter adiado a escolha da especialidade.
A principal vantagem, "sem dúvida alguma, é a financeira", algo que "não devia ser assim". É uma "discrepância ainda bastante significativa" entre quem trabalha à tarefa e quem pertence ao Serviço Nacional de Saúde (SNS), "o que torna mais aliciante escolher o percurso de tarefeiro do que propriamente progredir na carreira médica".
"Foi muito difícil virar as costas a esta vida confortável", assegura Cláudia Nunes. Em nome da "felicidade em termos académicos", avançou para a especialização, até porque como médica indiferenciada sentiu-se "estagnada": "Lidava com doentes de baixa gravidade, os que chamamos verdes e amarelos. Já tinha abordado a maioria das patologias e os dias tornavam-se monótonos. Queria mais: queria ter acesso a outras técnicas, a outro tipo de doentes, os mais graves."
"Escolher consoante gostam" é a regra na hora de decidir o futuro, contudo, há outros fatores que pesam, como a carga horário e a "dedicação que é preciso dar": "Se estivermos a falar de Medicina Interna e Cirurgia Geral, sabemos que é uma vida muito complicada. Pessoas que querem ter tempo para viajar, tempo para constituir família e tudo isso, não é que não consigam, mas vai ser mais difícil. Mas são especialidades incríveis, e super completas e interessantes."
Quem está em medicina "tem mesmo gosto em poder ajudar os outros", complementa Cláudia Nunes. Porém, a jovem de 28 anos lembra que "é uma profissão que não é voluntariado" - tem, aliás, uma "responsabilidade tremenda" - e, "amor à camisola" à parte, estes profissionais "também têm contas para pagar" e querem "tempo de lazer e para cuidar da saúde mental": "Também somos seres humanos."
Igualmente para Jorge Pereira a paixão é a chave deste processo. "Não tendo um foco em concreto" em relação a nenhuma especialidade, optou por "fazer outras coisas". Concluiu o curso em 2018 e fez a PNA no ano passado. Neste intervalo de tempo, fez um intercâmbio na Hungria, onde deu aulas e fez investigação, foi tarefeiro - palavra que não usa. Agora, está no Brasil em ano sabático sem qualquer ligação à área e vai continuar a explorar o mundo, enquanto não encontrar a sua "vocação".
Por sua vez, Mariana Moreira não escolheu a especialidade no último ano, porque já não havia vagas abertas para as suas opções. Fá-lo-á por estes dias, quer Pediatria, e, por enquanto, ainda é tarefeira na Unidade Local de Saúde do Oeste. Dá teleconsultas de Medicina Geral e Familiar e não gosta do "movimento" das urgências. O melhor de ser prestadora de serviços foi "aprender a desenrascar-se sozinha", o "salário vantajoso, mais do dobro de um interno", a "independência" e "fazer os próprios horários": "Se uma pessoa decidir tirar uns dias, porque quer ir fazer umas férias aqui ou ali, pode."
Mas, como se incentiva os recém-formados a investir na especialização, quando os estímulos estão do lado de quem não o faz? Para Cláudia Nunes, a solução é "óbvia": "Baixar os salários das pessoas que efetivamente prestam serviço de urgência, mas não têm uma especialização."
"O dinheiro é que move o mundo. Se houver uma opção mais cativante de um lado, as pessoas vão para esse lado", aponta. O objetivo deveria ser "cativar" para que os médicos fiquem no SNS. "Por que é que isto não se faz? Não sei."
De salientar que estas declarações são dadas num momento em que os tarefeiros ameaçam paralisar as urgências, porque a ministra da Saúde, Ana Paula Martins, quer cortar no valor pago por hora, quando ela própria também já lhes promoveu aumentos.
Sublinhando que o SNS é "realmente muito bom", Mariana Moreira considera que o "Governo não está a ouvir os sindicatos, não está a aumentar os salários de maneira a fixar as pessoas no público" e, quando o Executivo de Luís Montenegro propõe algo, são medidas "sem pés nem cabeça", como quando colocou a hipótese de os hospitais poderem "obrigar" os médicos a ser mobilizados para assegurar urgências regionais.
"Mais vontade dá às pessoas ou de imigrarem ou mesmo de serem tarefeiros, porque, em vez de estarem a ganhar 20 ou 30 euros à hora, se calhar estão a ganhar 60 ou 70 e, claramente, é significativo se queres ter uma boa vida e dar uma boa vida à tua família."
A TSF falou também com vários jovens, que não quiseram ser identificados, que este ano já assumiram que ficarão como tarefeiros: por nota insuficiente na PNA, por não quererem mudar de cidade... e de arrasto vem o conforto financeiro, dizem, que assim podem começar a poupar para ter uma casa.
- A escolha da especialidade faz-se por ordem decrescente, baseada numa classificação que tem em conta a nota obtida na PNA (80%) e os resultados do curso (20%). Quem consegue ter esta média como a mais alta é o primeiro a escolher em todo o país e assim por diante. Quando os recém-formados chegam a este momento, estão sujeitos às vagas disponíveis. Por exemplo, um médico residente em Lisboa pode escolher tirar a especialidade nos Açores.
