Pela primeira vez, os artistas transgénero são protagonistas nos rastreios que assinalam o Dia Mundial da Voz, no Hospital Egas Moniz, em Lisboa. Na mudança de sexo, a voz é a última intervenção médico-cirúrgica a ser feita.
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Sentada numa cadeira violeta, Beatriz Guerra observa os preparativos para o rastreio que veio fazer na Unidade de Voz, do Hospital Egas Moniz, em Lisboa. O longo cabelo, escuro e solto, tem de ser afastado do rosto, enquanto Beatriz estica a língua para fora, seguindo as instruções da médica Clara Capucho. A otorrinolaringologista especializada na voz artística e coordenadora da Unidade de Voz segura e puxa a língua de Beatriz, para lhe introduzir na boca o laringoscópio transoral de 70 graus. É o aparelho que permite visualizar, num ecrã, o estado da laringe e das cordas vocais do doente.
O rastreio à voz gratuito no Hospital Egas Moniz é aberto todos os anos, para assinalar o Dia Mundial da Voz, a 16 de Abril. Este ano, pela primeira vez, os artistas transgénero são protagonistas nos rastreios, porque a voz também faz parte da nossa identidade e "todos temos o direito de termos a voz que queremos", sublinha Clara Capucho.
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Beatriz Guerra, 31 anos, está a mudar de sexo, o que inclui uma alteração da voz. "Acho que a minha voz é doce, meiga, calma, clara, brilhante, mas não estou confortável com a minha voz." Quer ter uma voz mais feminina, "ligeiramente mais aguda" e por isso, terá de fazer uma tireoplastia, "um encurtamento ou esticar das cordas vocais".
O Hospital Egas Moniz abriu, há cerca de um ano, consultas de voz para doentes transgénero. Clara Capucho explica que "a voz transgénero é uma voz especial em que temos de saber fazer a abordagem e saber operar quando é necessário". No caso de Beatriz, o processo começou há mais de um ano. Depois das cirurgias para mudar o rosto e o peito, vai ser operada para ter uma vagina. Quer ainda tirar a maçã de Adão e todos os tratamentos hormonais têm implicações na voz. Mas a operação às cordas vocais é o último passo na transição de sexo, pois a entubação nas diferentes cirurgias pode também alterar a voz do paciente.
"Quando se mexe na parte estética do pescoço, na chamada maçã de Adão, temos de ter cuidado para não danificarmos as cordas vocais e o aparelho laríngeo", lembra Clara Capucho. "Outras vezes temos de fazer uma cirurgia directamente nas cordas vocais, mas sempre que se faz uma abordagem transgénero a nível da laringe, a responsabilidade é imensa, porque aquilo que se vai fazer, não se pode voltar atrás. É um começo sem regresso", ou seja, depois de se alterar a voz, "é muito difícil reconstruir".
Clara Capucho, que é também fonocirurgiã, recorda os sintomas que devem servir de alerta: "Sempre que a voz muda e não consegue recuperar e voltar ao normal." Há dois anos, a médica acordou na praia, com "rouquidão e a voz velada", e com a persistência do problema, percebeu que tinha Covid-19. "O único sinal que tive de Covid foi a rouquidão, a disfonia", confirmando o que pensava desde o início da pandemia. "A infecção por SARS-Cov atingia principalmente as cordas vocais, porque muitas das patologias pulmonares passaram primeiro, pelas cordas vocais."
O uso das máscaras levou também à "lesão funcional no movimento das cordas vocais", em muitos artistas, uma vez que, sendo uma barreira à projecção da voz, os músculos do pescoço ficavam mais tensos. O problema foi resolvido com terapia da fala.
Os rastreios gratuitos por ocasião do Dia Mundial da Voz já permitiram detectar "muitos cancros que foram operados e ficaram bem", realça Clara Capucho. É o caso do cantor e animador Flávio Andrade dos Santos, a quem foram detectados pólipos, há cinco anos. "Toda a minha vida é feita com a música e a minha voz e se não fosse a Doutora, não poderia fazer a minha vida", afirma com gratidão. Hoje, Flávio preocupa-se em aquecer e arrefecer a voz, mantê-la hidratada e descansada. Regularmente, faz exames de controlo e nota mesmo uma melhoria da voz, com "mais facilidade em atingir notas mais agudas".
A autora não segue as normas do novo Acordo Ortográfico