Quem salva os trabalhadores? E as empresas? Respostas para (quase) todas as dúvidas
Numa altura em que muitas empresas veem a sua atividade diminuir e deparam-se com a incerteza do futuro, são cada vez mais os trabalhadores e empregadores que manifestam dúvidas quanto aos direitos que os assistem.
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É uma situação nova para todos. Nunca uma questão de saúde pública veio condicionar tanto o modo como trabalhamos como esta pandemia de Covid-19. Há muitas mudanças que não ficam cobertas pelas regras gerais do Código de Trabalho e para as quais o Governo teve de adotar medidas excecionais.
Em declarações à TSF, Pedro da Quitéria Faria, especialista em Direito Laboral da sociedade de advogados Antas da Cunha Ecija, que tomou a iniciativa de responder às questões mais levantadas nesta altura, revela que já recebeu centenas de dúvidas jurídicas sobre a nova legislação laboral.
Para o advogado, é necessário esclarecer as novas questões jurídicas que se colocam, de modo a evitar "dúvidas interpretativas" e "conflitos laborais", para que, no final, "se perca o menor número de postos de trabalho e haja o menor número de desempregados possível".
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Do teletrabalho, à assistência a familiares infetados, passando pelos subsídios de apoio e o trabalho em lay-off. Eis um guia para funcionários e patrões sobre as regras que se aplicam em tempo de pandemia.
Segurança nas empresas
O empregador tem direito a saber se o trabalhador viajou para um país com uma forte incidência de Covid-19?
Por regra, o empregador não pode intrometer-se na vida privada dos trabalhadores, mas, perante uma situação de pandemia, fala mais alto o dever de assegurar as condições de segurança e saúde no local de trabalho, pelo que pode ser exigido ao trabalhador que informe a empresa sobre as suas viagens recentes.
Além do setor público, também as empresas privadas são obrigadas a ter um plano de contingência?
O despacho aprovado pelo Governo apenas obriga os empregadores públicos a criar um plano de contingência alinhado com as orientações da Direção-Geral da Saúde (DGS), mas, uma vez que também os empregadores privados são obrigados a garantir condições de segurança e de saúde para os seus trabalhadores, pelo que também devem elaborar um plano de contingência que siga as diretrizes da autoridade da saúde.
O documento, que deve ser divulgado a todos os colaboradores, deve incluir aspetos como: medidas imediatas (com a identificação dos colaboradores com maior risco de infeção); medidas específicas de higiene para combate ao perigo de contágio; procedimentos específicos a adotar perante: caso suspeito, pessoa assintomática regressada, nos últimos 14 dias, de uma área com transmissão comunitária ativa e pessoa assintomática com contacto com um caso confirmado; medidas excecionais; enquadramento jurídico-laboral.
Caso o trabalhador detetar que algumas destas medidas de higiene e segurança não estão a ser aplicadas, "existem meios de reação para o efeito", nota Pedro da Quitéria Faria, que aponta que o trabalhador pode mesmo apresentar esse argumento "para a recusa justificada da prestação laboral". Em última instância, o trabalhador pode procurar a resolução do problema recorrendo à Justiça.
O que fazer se houver suspeitas de que um trabalhador esteja infetado?
O trabalhador com suspeitas de infeção deve ser dispensado de comparecer na empresa até que esteja apurado o seu estado de saúde. A entidade empregadora deve continuar a pagar a remuneração ao trabalhador, que não pode ser penalizado por apresentar sintomas da doença.
Um trabalhador que não apresente sintomas, mas tenha receio de ser infetado, pode recusar-se a trabalhar?
Não está previsto no Código de Trabalho a recusa de prestação de serviços em caso de pandemia. Assim sendo, os trabalhadores têm o dever de continuar a trabalhar - salvo casos excecionais, em que a prestação do trabalho seja inexigível. Caso se recuse a continuar a exercer serviço, o trabalhador pode ser alvo de um processo disciplinar.
O trabalhador pode, em contrapartida, solicitar ao empregador dispensa, mas essa opção acarreta uma perda de retribuição.
Teletrabalho
Quando é que uma empresa deve recorrer ao teletrabalho?
Sempre que a atividade da empresa for compatível com o regime de teletrabalho e se o empregador assegurar os instrumentos necessários e suportar os custos associados, as empresas podem optar pelo trabalho.
O trabalhador pode recusar-se a ficar em teletrabalho?
Da vigência das medidas excecionais, o teletrabalho pode ser determinado unilateralmente pelo empregador ou requerido pelo trabalhador, sem necessidade de acordo, desde que compatível com as funções exercidas.
Caso o trabalhador com suspeitas de infeção se recuse a ausentar-se da empresa ou a praticar teletrabalho, poderá ser alvo de um processo disciplinar por desobediência, já que, de acordo com o Código do Trabalho, o empregador pode "transferir o trabalhador para outro local de trabalho, temporária ou definitivamente" quando é do interesse da empresa, desde que essa transferência "não implique prejuízo sério para o trabalhador". Neste caso, trata-se de mais do que um interesse da empresa, mas de um interesse público, pelo que, sem dúvida, se sobrepõe.
Os empregadores podem deixar de pagar o subsídio de refeição aos trabalhadores que estão em casa?
Uma vez que a finalidade do subsídio de refeição é compensar o trabalhador por uma despesa que faz por trabalhar fora de casa, estando o trabalhador a trabalhar a partir de casa, a atribuição do subsídio deixa de estar justificada.
No entanto, de acordo com o Código do Trabalho, no teletrabalho vigora o princípio da igualdade de tratamento, pelo que, se até à data, um trabalhador com um contrato individual de trabalho recebia um subsídio de refeição, então deve continuar a recebê-lo.
Um acidente em regime de teletrabalho é considerado um acidente de trabalho?
Sim, é considerado um acidente de trabalho, mas, para ter direito a alguma compensação, o empregador deverá transmitir à seguradora quais os trabalhadores que passam a prestar atividade em teletrabalho, o período normal de trabalho, o horário e a morada a partir da vão estar a trabalhar.
Salários e apoios durante isolamento profilático
Se um trabalhador em isolamento profilático determinado pela Autoridade de Saúde ficar em teletrabalho, quem é responsável por pagar o salário?
A retribuição continua a ser paga pelo empregador, se o trabalhador estivar a prestar serviços em regime de teletrabalho.
Se não for possível o teletrabalho, quem paga ao trabalhador em isolamento?
O Governo decretou que os trabalhadores (por conta de outrem ou independentes, do setor público ou do privado) temporariamente impedidos de trabalhar, por perigo de contágio da Covid-19, têm direito a um subsídio de doença pago pela Segurança Social, equivalente a 100% da remuneração diária de referência, durante um período inicial de 14 dias.
A partir do 15.º dia, e dependendo da duração da ausência, o subsídio de doença a ser pago corresponderá a um valor entre 55% e 75% da remuneração de referência.
O que deve fazer um trabalhador a quem foi declarado o isolamento pela Autoridade de Saúde competente, para poder receber o subsídio?
Tem de ser emitida uma declaração pela Autoridade de Saúde para efeitos de isolamento profilático. A declaração é entregue ao trabalhador, que terá de a fazer chegar ao empregador, no limite, via e-mail.
O empregador irá depois remeter, no prazo máximo de cinco dias, através da Segurança Social Direta, essa declaração, que atesta a necessidade de isolamento (que não constitui uma baixa médica).
E se durante o período dos 14 dias de isolamento, for confirmado que o doente está infetado?
Se o doente testar positivo para a Covid-19, passa a ser-lhe aplicado o regime de baixa médica.
As medidas excecionais aprovadas pelo Governo devido à pandemia do novo coronavírus, criam aquilo que Pedro Quitéria Faria classifica como uma "desigualdade legal", pois beneficiam quem está em isolamento por suspeitas de infeção, mas não quem está, de facto, infetado. O trabalhador em isolamento recebe, nos primeiros 14 dias, 100% da remuneração, enquanto o trabalhador infetado recebe um subsídio de doença que corresponde a entre 55% e 75% da remuneração de referência.
O especialista em Direito Laboral considera, no entanto, que a intenção legislativa não foi a de salvaguardar as remunerações de uns trabalhadores em detrimento das de outros, mas, sim, "tentar tentar conter o risco de contágio e propagação, através de medidas de contenção, que colocassem as pessoas que possam ser alvo de contágio em casa".
O advogado admite que, "mesmo para quem legisla, estes são tempos difíceis" e que é compreensível que existam algumas incongruências nesta matéria, do ponto de vista normativo.
"Quando falta tempo, falta serenidade para legislar da melhor forma e para se poder ter uma perceção transversal relativamente a todas as consequências das medidas, para que não existam incongruências ou incompatibilidades", repara Pedro da Quitéria Faria.
E no caso dos trabalhadores independentes?
No caso de estar apenas em isolamento profilático, o trabalhador independente fica igualmente coberto pelo direito a receber 100% do salário, que será assegurado pela Segurança Social.
No caso de estar mesmo infetado com o novo coronavírus, o trabalhador independente é mais penalizado: recebe apenas 55% da remuneração média (e só tem acesso ao subsídio de doença se tiver, pelo menos, seis meses - seguidos ou interpolados - de descontos para a Segurança Social, considerando-se o mês em que ocorre a doença).
Férias e regimes especiais de trabalho
Os empregadores podem impor o gozo de férias aos trabalhadores, em tempo de pandemia?
O Código do Trabalho refere que "sempre que seja compatível com a natureza da atividade, o empregador pode encerrar a empresa ou o estabelecimento, total ou parcialmente, para férias dos trabalhadores" por um período "superior a 15 dias consecutivos" ou fora do período entre 1 de maio e 31 de outubro (...)", se houver acordo com os trabalhadores.
"Na falta de acordo, o empregador que exerça atividade ligada ao turismo está obrigado a marcar 25 % do período de férias a que os trabalhadores têm direito, ou percentagem superior que resulte de instrumento de regulamentação coletiva de trabalho, entre 1 de maio e 31 de outubro, que é gozado de forma consecutiva», ou seja, na prática, o empregador poderá proceder à marcação dos restantes 75% fora do período convencional de 1 de maio a 31 de outubro.
Pedro da Quitéria Faria sublinha que não podemos esquecer-nos de que "o trabalhador é elemento mais fraco numa relação laboral" e que é necessário atender "ao caso verdadeiramente excecional que vivemos e à sua transitoriedade", mas que, em todo o caso, quer o trabalhador tenha já férias marcadas, quer não tenha, é sempre recomendável um acordo.
Pode, por exemplo, antecipar-se o gozo das férias, sugerindo-se que se esgotem os dias que transitam do anterior e que têm de ser gozados até 30 de abril.
Quando é que os empregadores podem declarar o regime de lay-off?
O lay-off é uma redução temporária do período normal de trabalho ou a suspensão dos contratos de trabalhos devido à impossibilidade temporária parcial ou total de prestação da atividade, por uma situação de crise empresarial.
Além do regime de lay-off tradicionalmente previsto no Código de Trabalho, o Governo definiu, perante a pandemia de Covid-19, um regime extraordinário de lay-off simplificado, que não implica a suspensão dos contratos de trabalho e que vem acelerar e desburocratizar os procedimentos necessários. Mas talvez até demais, de acordo com Pedro da Quitéria Faria.
"O regime de lay-off é demasiado simplificado e demasiado atípico, levanta um conjunto vastíssimo de questões de interpretação, de densificação, e diligências", critica o especialista em Direito Laboral.
Para o advogado, a nova lei deixa "margem para algumas dúvidas e para dificuldades de compreensão" e há matérias "para as quais falta regulamentação".
Como funciona?
O novo regime aplica-se aos empregadores do setor privado que se encontrem em situação de crise empresarial (ou seja, que tiveram uma paragem total da atividade da empresa devido à interrupção das cadeias de abastecimento ou da suspensão de encomendas, ou que tenham tido uma quebra abrupta de pelo menos 40% da faturação) por causa do surto de Covid-19.
O objetivo é apoiar as empresas, diminuindo os impactos negativos que a pandemia está a ter na economia do país, e prevenindo o risco imediato de desemprego para muitos trabalhadores.
Se a empresa entrar em regime de lay-off, os trabalhadores recebem uma retribuição equivalente a dois terços do salário (com um valor mínimo igual à remuneração mínima mensal garantida - 635 euros - e um valor máximo igual a três vezes o salário mínimo nacional - 1.905 euros mensais. A retribuição é, em 30%, suportada pelo empregador e, em 70%, pela Segurança Social.
Neste caso, Pedro da Quitéria Faria considera que o Governo "tentou ser equitativo e distribuir esforços". O Executivo "tenta dividir, ou tripartir, o prejuízo", com os custos a serem suportados simultaneamente pela empresa, pelo trabalhador e pela Segurança Social.
Em que situações se aplica o apoio extraordinário à manutenção do contrato de trabalho perante crise empresarial?
O empregador comunica, por escrito, aos trabalhadores a decisão de requerer o apoio extraordinário à manutenção dos postos de trabalho, indicando a duração previsível, ouvidos os delegados sindicais e comissões de trabalhadores. Durante o período de aplicação desta medida, a empresa tem direito a um apoio financeiro com duração de um mês.
Este apoio pode ser, excecionalmente, prorrogável mensalmente, até um máximo de seis meses, se os trabalhadores já gozaram o limite máximo de férias anuais e a entidade empregadora adotou os mecanismos de flexibilidade dos horários de trabalho previstos na lei.
As empresas neste regime estarão isentas, na totalidade, do pagamento das contribuições à Segurança Social durante este período.
Pode ser aplicado aos trabalhadores o regime de adaptabilidade previsto no Código do Trabalho?
O empregador e o trabalhador podem, por acordo, definir os períodos de trabalho conforme as necessidades da empresa.
Se houver aumento do período normal de trabalho, pode trabalhar-se até mais duas horas por dia ou até 50 horas por semana. Se houver uma redução, pode trabalhar-se até menos duas horas por dia ou em dias e meios-dias.
Apoio e acompanhamento de familiares
O que acontece aos trabalhadores que têm de ficar em casa com os filhos porque as escolas estão fechadas?
Se um trabalhador tiver de ficar em casa com um filho até aos 12 anos, e não for possível exercer a atividade em teletrabalho, tem de comunicar essa decisão à entidade empregadora, que fará a comunicação com a Segurança Social.
As faltas consideram-se justificadas, se acontecerem dentro do período de aulas (ou seja, um trabalhador que falte durante as férias escolares da Páscoa não tem a falta justificada).
Os pais não podem ficar os dois em casa ao mesmo tempo com os filhos, mas podem alterar quem fica entre si.
Os trabalhadores por conta de outrem nesta situação recebem 66% da remuneração base (33% a cargo do empregador e 33% a cargo da Segurança Social) - com um limite mínimo do salário mínimo nacional (635 euros) e um limite máximo de três vezes o salário mínimo (1905 euros).
Também aqui o Governo conseguiu dividir esforços entre Segurança Social, empregador e trabalhador, no que toca aos custos da medida. "A balança não está totalmente desequilibrada", repara Pedro da Quitéria Faria.
O apoio não é, todavia, válido durante as férias da Páscoa (entre 30 de março e 13 de abril), uma vez que os alunos já estariam necessariamente em casa nesse período, independentemente do surto de Covid-19.
E no caso dos trabalhadores independentes?
Os trabalhadores independentes que fiquem em casa a acompanhar os filhos até aos 12 anos recebem um terço da remuneração média declarada no primeiro trimestre de 2020, (com um mínimo de uma vez o valor do Indexante de Apoios Sociais (IAS - 438,81 euros - até um máximo de 2,5 IAS - 1.097,00 euros).
Este apoio é atribuído de forma automática após requerimento do trabalhador independente, desde que não existam outras formas de prestação da atividade por teletrabalho.
Os trabalhadores independentes podem ainda receber um apoio extraordinário devido à redução da sua atividade económica e poderão pagar as contribuições para a Segurança Social mais tarde. Este apoio só está disponível para aqueles que tenham feito descontos em, pelo menos, três meses consecutivos no último ano, que não sejam pensionistas e comprovem que tiveram uma paragem total de atividade de vido ao surto de Covid-19. O valor do apoio é o da remuneração registada como base de incidência contributiva, com o teto máximo de 438,81 euros (IAS), e este pode ser prorrogado pelo período máximo de seis meses.
O que acontece se um trabalhador tiver de faltar ao trabalho para assistência a uma familiar em isolamento ou infetado?
As faltas são consideradas justificadas e, se o familiar infetado for um filho, os trabalhadores têm direito a um subsídio para assistência. A Segurança Social assegura 65% da remuneração, por um período máximo de 30 dias, no caso dos filhos menores de 12 anos; ou por um período máximo de 15 dias, no caso de os filhos serem maiores de 12 anos.
Para ter acesso a este apoio, os pais devem obter junto dos serviços de saúde uma certificação da situação clínica das crianças, que deve ser remetida aos serviços da Segurança Social no prazo máximo de cinco dias, requerendo o subsídio para assistência a filho. O apoio apenas pode ser pedido por um dos pais.
Escolas
Perante o fecho das escolas, o que acontece aos filhos dos trabalhadores de serviços essenciais?
O Governo decretou a suspensão das atividades nas escolas de todos os níveis de ensino. Para já, as escolas vão ficar fechadas durante duas semanas, mas a situação será reavaliada no dia 9 de abril.
De acordo com as medidas excecionais decretas, pelo menos uma escola de cada agrupamento terá de ficar aberta para acolher os alunos que sejam dependentes de trabalhadores de serviços essenciais, como os profissionais de saúde, das forças de segurança, de socorro e de outros serviços públicos essenciais.
Qual a situação dos professores e funcionários das escolas?
As atividades estão apenas suspensas para os alunos, pelo que os trabalhadores docentes e não docentes têm de continuar a apresentar-se ao trabalho.
As escolas devem continuar a ter vigilância, limpeza e manutenção.
O Governo recomenda, no entanto, o teletrabalho para os professores, com o ensino à distância, através de recursos educativos digitais, e reuniões feitas por videoconferência. A gestão é feita caso a caso pelo diretor de cada escola.
