"Sou Pessoa para isso." João Luís Barreto Guimarães abre na TSF um livro de recomeços
Quarenta poemas evocam os dias do confinamento, as coisas à espera de vez, e o mundo que renasce para cada um de nós. "Aberto todos os dias" é o novo livro do poeta, Prémio Pessoa 2022, e acaba de chegar às livrarias numa edição Quetzal.
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"A capa do livro é tão bonita que a primeira coisa que eu fiz foi tirar a cinta e guardá-la dentro", responde prontamente João Luís Barreto Guimarães quando lhe aponto a cinta vermelha que abraça o novo livro e onde podemos ler Prémio Pessoa 2022. A capa "Vista de Delft", do pintor holandês Johannes Vermeer, "é um piscar de olhos a um elemento mais clássico, mas corresponde a uma atmosfera que mostra uma cidade aberta todos os dias", convidando o leitor à contemplação e à leitura dos poemas que olham em volta e percorrem lugares-comuns dum tempo com as marcas da pandemia.
O poeta médico escreveu-os entre 2020 e 2022 e cuidou da arte do livro, instalando as palavras nas folhas em branco: "Espero não ser muito ambicioso, mas uma coisa é escrever poemas, outra coisa é organizar esses poemas para um livro. Eram poemas que celebravam o mundo que nos é devolvido após a pandemia, e em particular após o confinamento, nomeadamente, coisas que estão para acontecer num futuro próximo, como um jantar de amigos, a chegada da próxima estação, uma viagem para Norte, mas também o lado mais frio, as sombras e a doença e a guerra."
"Tendo percebido que era um livro de recomeços, da vida que renasce para cada um de nós, estruturei em quatro partes, com o título das quatro aspirações ou ideais do Homem do Renascimento: locus amoenus ("lugar ameno"), beatus ille ("ditoso aquele que desfruta o tempo"), tempus fugit ("o tempo foge"), e carpe diem ("aproveita o dia")."
O mundo disponível para ser habitado. É disso que João Luís Barreto Guimarães nos fala, porque "saindo o poeta de novo para o mundo, está mais ávido e mais atento aos pequenos acontecimentos, aos pequenos absurdos que podem funcionar como o gatilho para o poema". Depois risca, corrige, vai e vem com as palavras guardadas nos pequenos cadernos de bolso, "a poesia é portátil", até lançar o poema, sem saber quantos e quem são os leitores que o recebem.
"Um poema é como uma mensagem numa garrafa, alguma coisa que vai a caminho de... Pode lá chegar ou perder-se. Um poema existe no momento em que ele é lido, e é aí que se completa a comunicação. Eu acho interessante o poeta não controlar o processo, nem pode ter a veleidade de o imaginar."
E o Prémio Pessoa atribuído a 15 de Dezembro de 2022? Um mês depois do anúncio, o que nos diz o poeta? "Aconteceu-me, e estou grato, mas estou desejoso que esta voragem passe, porque preciso de regressar à mesa de café e aos cadernos e às canetas, e tentar forçar ainda mais a criatividade, a originalidade, é mesmo uma vontade de fazer diferente, de transformar esta grande alegria numa piada, no sentido em que quando me perguntarem se sou capaz de fazer isto ou aquilo , eu possa responder: 'Eu sou Pessoa para fazer isso'."
Levantar os sentidos que as coisas transportam e dar testemunho dos pequenos absurdos que a vida e o mundo comportam, é a luz da poesia de João Luis Barreto Guimaraes. Alguns percorrem as páginas da conversa gravada à distância, entre o Porto e Lisboa, com vista para o décimo segundo livro do autor, "Aberto Todos os Dias". Num mundo ideal, o livro seria aberto numa mesa de café ou na curva de um rio.
Essa conversa fica à espera de vez.
Somos pessoas para isso.
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O incêndio
"Alguém tem de amar
o banal. Alguém tem de tratar disso. Os
rostos que passam idênticos
como os pombos
de uma praça. A mala
que apenas fecha se alguém
se senta em cima. Insectos suicidando-se
contra o brilho dos faróis. O apetite
da ferrugem
nos portões da avenida. Alguém
tem de amar o vulgar (falar
do que é
ordinário). O cheiro a peixe frito que
sobe desde a cozinha. As luas que nascem dos
dedos quando
se roem as unhas. Alguém tem de amar
o que é feio
(trazê-lo para o poema). Só assim
por entre o impuro pode o
incêndio acontecer."
[do livro Aberto Todos os Dias, publicado pela editora Quetzal em Janeiro de 2023]