Têm de ser os especialistas a apontar o caminho, defende o imunologista Luís Graça
Luís Graça é imunologista e investigador do Instituto de Medicina Molecular da Faculdade de Medicina da Universidade de Lisboa, onde leciona. É um dos elementos da equipa que, entre outras coisas, respondeu à pandemia de Covid-19 com soluções para testes de deteção da doença, e com uma investigação sobre o vírus para encontrar forma de o combater.
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TSF - O que são, e para que servem, os estudos de imunidade ou estudos serológicos?
Luís Graça - Os estudos serológicos têm uma diferença muito significativa em relação aos estudos de diagnóstico que são feitos correntemente até agora. Os estudos de diagnóstico que têm sido feitos baseiam-se em identificar o vírus a partir de amostras que são recolhidas dos doentes. Nos estudos serológicos aquilo que se vai identificar não é o vírus em si, mas a resposta imunitária que o sistema imunitário montou contra o vírus. Nas pessoas que já curaram, que já foram infetadas e que já conseguiram eliminar o vírus, vai ficar ainda a memória do vírus dentro do sistema imunitário, que vai ficar nos anticorpos que foram produzidos com base nessa resposta imunitária. E são esses anticorpos que foram produzidos contra o vírus e que vão permanecer no nosso organismo durante algum tempo - muito tempo, esperemos nós - que vão permitir saber que aquela pessoa contactou com o vírus, ou que foi infetada com o vírus, quer tenha sabido que foi infetada ou não. Porque imagina-se que há muitas infeções em que as pessoas não percebem que foram infetadas, e que são infeções silenciosas, e que nós dizemos assintomáticas.
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TSF - E é no momento da alta, depois da infeção, que se faz a colheita, para esses estudos?
LG - É preciso compreender que o sistema imunitário demora algum tempo para conseguir produzir estas proteínas destes anticorpos. Por isso, no início da infeção, logo quando a pessoa é infetada, consegue-se saber que a pessoa está infetada quando se pesquisa o vírus, mas se nessa altura nós formos fazer estes testes serológicos, a pessoa pode ainda não ter essa assinatura, esses anticorpos que permitem saber se contactou com o vírus. Tipicamente vai demorar sete dias - mais ou menos - até que o sistema imunitário consiga produzir anticorpos. E, mesmo nessa altura, a quantidade dos anticorpos ainda é pequena e vai subindo com o tempo. Portanto, ao fim de duas a três semanas da infeção é quando começa a ver-se os níveis de anticorpos suficientemente altos para a resposta não ser ambígua e termos uma confiança de que as pessoas que contactaram com o vírus são geralmente positivas com este teste serológico.
TSF - Estamos a falar numa altura em existem pouco menos de 200 casos de recuperação, mas ainda no início da semana, esse número não chega a meia centena. Quanto tempo é que estima que seria necessário para começar a fazer as colheitas?
LG - Um epidemiologista é a melhor pessoa para responder a isso. Eu só queria salientar o facto de que, quando diz que neste caso há 200 pessoas que recuperaram, e que é verdade, isso não significa que não haja mais pessoas que foram infetadas e algumas delas tiveram queixas tão ligeiras que não se aperceberam, e outras não tiveram queixas de todo. Portanto, é muito provável que, neste momento, em Portugal, para além dessas 200 pessoas que nós sabemos que se recuperaram, haja um número muito maior de pessoas que já contactaram com o vírus, que já foram infetadas e que nem sequer perceberam isso e desenvolveram uma resposta imune que as torna agora imunes a uma reinfeção pelo vírus.
TSF - As colheitas são feitas por amostragem?
LG - Este tipo de teste pode ter várias utilidades. Uma das utilidades é saber, por exemplo, quantas pessoas foram realmente infetadas com o vírus, não dependendo das pessoas que recorreram aos serviços médicos e que foram as pessoas que entraram nas estatísticas. E isso é feito por amostragem. A outra situação, de que muito se tem falado nos últimos dias, é que este teste pode ser útil em determinadas situações em que pode ser importante saber se uma pessoa está ou não imune. Para dar um exemplo, as pessoas que trabalham em lares de idosos: se nós soubermos que algumas dessas pessoas que já contactaram com o vírus e que já desenvolveram anticorpos, em princípio, estas pessoas estão imunes a uma nova infeção e podemos ter mais confiança de que podem voltar a trabalhar nesses lares em contacto com idosos sem que haja esse risco elevado de transmitir a infeção a essas pessoas.
TSF - E essa imunidade é válida se, por exemplo, houver uma mutação no vírus?
LG - É verdade que este vírus pode ter algumas mutações, mas habitualmente as mutações que estão descritas para este vírus não têm um impacto significativo nesta resposta que se vai estabelecer. É pouco provável que essas mutações num espaço relativamente curto de tempo tenham esse impacto. Eu quero só fazer salientar um aspeto significativo. As mutações que têm sido um problema muito grande para desenvolver vacinas contra o HIV - que é outro vírus e que sofre mutações que tornam um alvo difícil para essas vacinas -, que vive no mesmo hospedeiro, no mesmo ser humano durante anos, e, dentro do mesmo hospedeiro, pode sofrer várias mutações, pode ir mudando, ao contrário destas infeções com estes coronavírus, que são infeções tipicamente curtas e, portanto, provavelmente não é comparável uma situação com outra.
TSF - Se as pessoas que fizerem este teste serológico, registarem a presença de anticorpos que as torna imunes à infeção, poderão elas ter materiais orgânicos que possam ajudar na cura dos ainda infetados?
LG - É verdade e isso já começou a ser testado. Habitualmente chamam a isto o soro de pessoas convalescentes, e a ideia é exatamente essa: é tirar de pessoas que já montaram uma resposta imune contra o vírus estes anticorpos e utilizá-los para infundi-los numa pessoa que ainda não conseguiu produzir estes anticorpos, partindo do princípio de que isto vai ajudar a criar esta resposta que contribui para a eliminação do vírus nessa pessoa. É uma estratégia que foi criada há muitos, muitos anos por imunologistas. Foi no princípio do século XX, e era utilizado soro - até o soro de animais imunizados - para proteger doentes, por exemplo, contra o tétano. Utilizavam-se, naquela altura, cavalos que eram imunizados para terem grandes quantidades de soro, que têm anticorpos contra a toxina do tétano, e, nessa altura, podia-se transfundir pessoas que contraíam o tétano, com estes anticorpos, que assim neutralizavam a toxina e tinham um efeito benéfico nessas pessoas. Portanto, é uma estratégia antiga de imunologia, e que está a ser testada nesta doença.
TSF - Enquanto não houver uma vacina, defende que aqueles a quem for detetada a imunidade sejam portadores de um símbolo dessa imunidade (seja uma pulseira, um passaporte, um cartão...)
LG - Eu tenho alguma preocupação com esse tipo de estratégia. Eu acho que é muito importante fazer os testes da imunidade e saber qual é o estado de imunidade na comunidade para podermos definir políticas de saúde pública em função desse estado de imunidade. Mas esse tipo de políticas... eu acho que não podem ser feitas de uma maneira tão reducionista. De qualquer forma, têm que ser especialistas em saúde pública, em epidemiologia, a definir quais são as melhores estratégias para passarmos desta situação em que estamos, em que tentamos combater o surgimento deste pico, para uma situação em que há um retomar do funcionamento da nossa sociedade sem que haja um risco para as populações, para as pessoas mais vulneráveis, de desenvolver complicações perigosas. Não sei se a estratégia certa passa por esses certificados ou pulseiras, ou o que seja. Julgo que deve haver estratégias melhores e mais justas para conseguir chegar a essa situação.
Isto é uma área técnica muito sofisticada e que deve ser deixada para especialistas em epidemiologia e saúde pública.
TSF - Esta ideia de preservar os serviços públicos de saúde tentando achatar a tal curva, por contraste com a estratégia seguida, por exemplo, pelo Reino Unido no primeiro instante - deixar correr as coisas, tentando assim assegurar uma imunidade grupo... Alguma destas estratégias ganha mais simpatia sua parte?
LG - É preciso ver que os recursos médicos que nós temos - nós, ou qualquer país do mundo - são limitados. Estão desenhados para doenças típicas e não para lidar com situações atípicas como esta. Por isso, foi absolutamente crítico nós conseguirmos evitar esse tópico da curva, que poderia ter tido consequências muito graves. E nesse aspeto, o professor Fausto Pinto, da Faculdade de Medicina, foi das primeiras pessoas a salientar a importância do distanciamento social e de fechar as escolas e de criar as condições para que não houvesse essa explosão de casos a que o sistema de saúde não conseguisse responder. Agora, nessa segunda fase, a melhor estratégia para tentar fazer com que a nossa sociedade volte ao normal, sem que haja um risco inaceitável para as populações mais vulneráveis, é algo que só pode ser decidido por especialistas. Estou a dizer muito honestamente, porque eu não sou especialista nisso, sou especialista em imunologia. E, portanto, custa-me ver pessoas que não são especialistas em determinadas áreas a darem opiniões em áreas técnicas. Isto é uma área técnica muito sofisticada e que deve ser deixada para especialistas em epidemiologia e saúde pública para tentarem decidir qual é a melhor estratégia para a nossa sociedade funcionar de novo sem um risco elevado para aquelas pessoas que são mais vulneráveis.
Isto mostra do melhor que a ciência pode fazer: juntar-se para conseguir resolver problemas.
TSF - Não sei se o professor está de alguma forma envolvido, atualmente, em alguma área de investigação relacionada com esta doença, mas há uma questão que tem sido levantada nos últimos dias, e que é a possibilidade da comunidade científica ter um acesso mais generalizado aos dados que estão a ser recolhidos pelas autoridades de saúde, em relação a esta doença. Gostaria de ter acesso a estes dados?
LG - Todos os cientistas defendem um acesso a informação, porque acreditamos, e não conheço nenhum cientista que não acredite, que consegue criar-se soluções mais rápidas e mais fáceis com acesso a informação. Agora, eu sei - por falar com pessoas que têm estado envolvidas no estudo de epidemias - que frequentemente é difícil ter dados disponibilizados. Não porque as autoridades não querem, mas porque a prioridade de muitas dessas autoridades é controlar o problema, e a disponibilização de dados está na segunda linha das suas preocupações. Eu falei com pessoas, com colegas meus que estiveram envolvidos nos Estados Unidos em estudos epidemiológicos relacionados com o surto de ébola em áfrica, ou a gripe aviária, e eles também se queixavam de que nos Estados Unidos, naquela altura, não conseguiam ter acesso a dados. Não porque as autoridades não quisessem dar os dados, mas porque a preocupação não era coligir, tratar e disponibilizar os dados, mas, sim, tentar fazer com que a estrutura de saúde conseguisse responder aquele problema crítico naquele momento. Portanto, os dados devem ser livres, devem ser disponibilizados, mas eu não sei se a dificuldade de acesso aos dados é uma barreira deliberada ou não é apenas uma consequência de estarem muitas coisas a acontecer ao mesmo tempo e ser difícil dar resposta a todas.
Esta pandemia vai marcar o mundo mais do que a queda das Twin Towers, em 2001.
TSF - Como cientista, há nesta pandemia alguma coisa de novo que lhe esteja a suscitar a curiosidade para o trabalho nos próximos tempos?
LG - Há. Eu acho que o mundo vai mudar muito depois desta pandemia. Eu acho que esta pandemia vai marcar o mundo mais do que a queda das Twin Towers, em 2001. E acho que a ciência vai mudar também muito depois deste episódio. Eu estou surpreendido pela forma como os cientistas de todas as áreas se uniram para fazer projetos colaborativos e para tentar responder a estas este problema. Eu acho que vai ser difícil voltar à forma antiga de fazer as coisas e abandonar o que isto nos mostra. Isto mostra do melhor que a ciência pode fazer: juntar-se para conseguir resolver problemas. Para mim tem sido fantástico ver isso acontecer. E dentro da ciência, há muitas áreas particulares que são fascinantes. E como exemplo: os testes em que, no Instituto de Medicina Molecular, nos envolvemos todos para tentar dar resposta a estes testes - criamos uma task force no Instituto de Medicina Molecular, juntamente com um clínico do Hospital de Santa Maria, para recolher amostras de doentes com Covid-19 -, que possa ser a base para a nossa investigação futura e para este momento, para tentarmos responder e aprender com esta doença.
TSF - No próximo ano letivo, estas matérias vão estar refletidas nas aulas da Faculdade de Medicina de Lisboa?
LG - De certeza. O ensino na Faculdade de Medicina da Universidade de Lisboa é um ensino muito atual, e aquilo que está a acontecer reflete-se nas aulas do próprio ano em que as coisas estão a acontecer. Deixe-me dizer também que os alunos e todos os docentes da faculdade foram de uma generosidade e de uma dedicação extraordinária, no sentido em que toda a gente quer contribuir. Alunos, professores, audiovisuais, funcionários para que, quando nós fechámos as aulas presenciais, em 24 horas todos os alunos estivessem a ter um curso de aulas por videoconferência e todos envolvidos nas atividades letivas de uma nova forma.
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