O realizador de "O Homem Que Matou Dom Quixote", que amanhã estreia, considera que Portugal se distingue da Europa hoje por votar à esquerda. Entrevista na TSF. Sem papas na língua. Afiada. E muita gargalhada.
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Terry Gilliam, o homem que realizou "Irmãos Grimm", "Doze macacos" e "Monty Python e O Cálice Sagrado", estreia em Portugal um filme que tinha há muito na cabeça há mais, baseado no herói de Cervantes.
"Esta versão de Dom Quixote é realmente sobre um homem moderno que, quando era um jovem estudante de cinema, fez um belo filme sobre Dom Quixote usando pessoas locais da vila. E agora, anos depois, após vender a sua alma para ganhar dinheiro fazendo publicidade, regressa a Espanha. E volta para a aldeia e descobre que as pessoas com quem trabalhou agora, tiveram as vidas viradas do avesso por causa do pequeno filme que ele fez dez anos antes. O homem que era sapateiro, que fazia de Dom Quixote, agora enlouqueceu e acredita que é mesmo Dom Quixote. A rapariga que interpretou a jovem e inocente Dulcineia saiu para ser uma estrela de cinema, e falhou. Agora é uma mulher que vive com um oligarca russo, é rica, mas infeliz. E então torna-se a história do nosso personagem principal, o realizador Toby, a ser punido por usar mal os seus talentos. E como ele lida com o monstro que criou nesse homem que pensa que agora é Dom Quixote".
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Sei que a produção do filme tem uma longa história sobre a produção do filme, não sei se isso já é passado para si ou se realmente dá importância ao processo todo, mas li algures lugar que o Terry Gilliam colocou a a sua saúde em risco, porque na última fase da produção terá estado a filmar com os tubos médicos a sair das suas roupas. O que é que, na verdade, aconteceu?
Bem, há um documentário que foi feito sobre nós a filmar o filme chamado "Ele sonha com gigantes". Agora, esse documentário é um drama falso, receio, porque eu estava a ter problemas, durante a filmagem, com a minha próstata e tive que colocar um cateter. Eu não estava bem de saúde, mas nunca me preocupei se sobreviveria ao filme, que é aquilo que o documentário passa. Bem, ele sobreviveu. Não foi propriamente assim. E eu acho que os cateteres são coisas muito úteis, porque você usa uma bolsa no tornozelo e então, quando está no deserto e está à procura de um lugar para fazer xixi, não precisa de se preocupar, apenas se senta na cadeira, sorri e a bolsa enche. Então, há muitos benefícios por haver problemas médicos durante as filmagens.
Quem viu diz que este filme tem contos de fadas, como nos "Irmãos Grimm"; a jornada de um herói como em "Brasil" ou "Monty Python e o Cálice Sagrado", e linhas do tempo paralelas como em "12 Macacos". A minha pergunta é se foi deliberado trazer essas características dos seus filmes anteriores?
Não, não penso em nada do que fiz no passado enquanto estou a trabalhar num novo filme, apenas fico focado ou possuído por uma ideia no caso de Dom Quixote, e em tentar encontrar uma maneira de dizer essa particular história. Pode haver elementos que são resultado do que eu passei na realidade, mas não estou a fazendo isso conscientemente. Talvez seja subconscientemente. Mas estou apenas a tentar contar a história da forma mais clara possível. Isso são basicamente os críticos que têm que escrever alguma coisa, então inventam essas ligações com o meu passado, mas essa não era a minha intenção.
Mas é sempre uma das suas intenções fazer as pessoas pensarem quando veem os seus filmes. Podemos dizer que o cinema de hoje está cheio de filmes que não fazem as pessoas pensar?
Penso que o cinema de hoje quer fazer as pessoas se sentirem confortáveis, mostrar as mesmas coisas uma e outra vez, não esticar a imaginação, não as surpreender, não provocar, é realmente o que acontece atualmente. E isso, para mim, é dececionante. Eu quero ir ao cinema e ser surpreendido, ver algo de uma maneira diferente, ver o mundo de uma maneira diferente da que eu via antes de ver o filme. Eu não sinto que isso aconteça, nem eu nem mais ninguém.
Diz que os filmes são feitos para fazer as pessoas se sentirem confortáveis. É essa a mesma atmosfera que prevalece no discurso público sobre o politicamente correto e assim por diante...
Acho que está tudo ligado nesse sentido. O politicamente correto é algo que realmente desprezo. É como limitar a conversa. Se limitas a conversa e as palavras e as coisas que se diz, estás a limitar o pensamento e os processos de pensamento. Como se as pessoas não estivessem dispostas a discutir agora; todas se escondem atrás dos seus preconceitos particulares e dizer que o mundo é que está errado. E é um momento infeliz, acho que as pessoas ficaram com medo de dizer o que realmente pensam porque temem ofender alguém. Penso que não é um grande problema ofender alguém. É um problema maior ter medo de falar. Sinceramente, é o que penso.
Numa entrevista, o Terry disse algo como: estava cansado, como um homem branco, de ser culpado por tudo o que está mal no mundo. É esse tipo de mentalidade que ainda prevalece?
Não, o que eu disse era específico, havia um contexto. O contexto era que no dia anterior a essa entrevista, o novo chefe da programação de comédia na BBC, disse em Inglaterra, que eles não seriam programados, como Monty Python, projetos com seis homens brancos. Estamos agora na diversidade. Então, eu estava numa conferência de imprensa na Alemanha, e eles perguntaram-me sobre isso. Então eu disse, 'francamente, estou cansado como um homem branco de ser culpado por tudo o que acontece de errado no mundo. A partir de agora, por favor, chamem-me Loreta. Sou uma lésbica negra, em transição. Isso é diversidade. Obrigada'.
O que não significa que certas realidades precisam vir à luz. Sim. Para que haja um debate sobre elas...
Não quero limitar as possibilidades de ideias; eu quero que as coisas se expandam ao invés de contraírem. Sinto que, atualmente, as pessoas tomam partido, tornam-se tribais, em tribos cada vez menores, que só concordam com a sua própria visão do mundo. A minha atitude é que há um milhão de maneiras de olhar e perceber o mundo. E eu quero que possamos discutir isso, ponto final.
Foi por isso que apelidou de "calça às bruxas" o Movimento Me Too?
Senti, honestamente, que estava a tornar-se uma caça às bruxas. Porque tinha ficado tudo um pouco louco. Eu não gosto de máfias, e há uma certa mentalidade de máfia que estava a acontecer em Hollywood naquela época. E havia muitos, eu acho, homens bastante inocentes que estavam a ser derrubados por isso. Acho que havia muitos tipos malvados por aí também, Harvey Weinstein e outros que tiveram o que mereciam, mas havia outros.
E então... eu lembro-me do que disse uma amiga minha, uma atriz com quem eu trabalhei anos antes e me ligou e disse, "eu concordo com o que está a dizer, Terry?" E eu disse: Bem, tu, como mulher, tens que falar. Eu não posso, como homem, dizer mais. E ela disse, "estou com muito medo de falar".
Isso deixou-me muito nervoso. Porque quando as pessoas estão com muito medo de falar e dizer o que realmente acreditam, toda a nossa sociedade começa a desmoronar, porque a sociedade é sobre todas essas pessoas diferentes com diferentes visões do mundo, diferentes maneiras de perceber o mundo. E devem sentir-se confortáveis o suficiente para dizer o que pensam que podemos discutir, então... podemos entrar numa discussão sobre isso. Isso é bom, é saudável.
Quando olha para o atual cenário político do Reino Unido, isso inspira-o de qualquer maneira?
Se me inspira??? Não! O interessante é que Portugal acaba de votar num governo socialista. Enquanto o resto da Europa está a ficar cada vez mais de direita, Portugal está a ser único e diferente. É por isso que eu gosto de Portugal, sempre pensou diferente do resto da Europa ao longo do tempo. E há algo sobre isso que me inspira. A Inglaterra costumava ser assim A Inglaterra agora já não é assim. Está a seguir a mesma maneira de pensar sobre as coisas que todo resto do mundo. Eu só quero encorajar as pessoas a serem confiantes o suficiente para fazer as suas próprias escolhas ao invés de ficarem presas numa visão dogmática e limitada do que é certo e errado. Muito obrigado. Esta foi a minha declaração política para esta semana!