No Dia Mundial da Terceira Idade, a enfermeira e colunista Carmen Garcia lança o livro "A última solidão", com "histórias de amor e mágoa dos velhos em Portugal". Porque é urgente "mudar a forma como se olha a velhice e como os lares estão organizados".
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Gertrudes Godinho veste uma blusa branca rendilhada, que só costuma usar quando vai ao médico. Como ela, muitas utentes do lar Raízes do Tempo, em Vendas Novas, arranjaram as mãos e os cabelos. Consta que alguém pediu à família que trouxesse um colar de pérolas para brilhar nesta tarde especial. Estão prometidos petiscos, visitas e até cante alentejano, para a apresentação do livro de Carmen Garcia, uma das enfermeiras mais queridas do lar.
Entre carinhos, troca de palavras, muitos sorrisos e pedidos de atenção, Carmen explica que estava fora de questão fazer a primeira apresentação do livro noutro local. "Este livro é uma tentativa de mudar as coisas para os mais velhos. É por eles, com histórias de pessoas como eles, é deles", frisa quem soube desde cedo que queria trabalhar com velhos. "Eu já nasci velha, o meu interior é mais velho", afirma com convicção e ternura "eu gosto muito deles".
O afecto é retribuído. Getrudes confessa baixinho que Carmen é a sua enfermeira preferida, "cinco estrelas, muito carinhosa e querida". Com 73 anos, Getrudes é a mais nova dos 49 utentes do lar em Vendas Novas. Ainda tem esperança em voltar para casa, mas "tive um AVC e não podia estar sozinha", conta com um sorriso que só esmorece quando recorda que "sou triste porque fiquei viúva muito nova".
Sentada numa cadeira de rodas, Cidália Ferreira, 81 anos, também elogia a enfermagem "fora de série" que tratou a enorme ferida que tinha no cóccix, agravada por uma queda. No lar, sente-se menos sozinha e claro, "prefiro estar acompanhada".
Alexandre Almeida, 89 anos, foi "obrigado a ceder e vir para o lar", quando deixou de conseguir ver. Aqui, espera ter uma vida "mais prolongada".
São vidas que podiam fazer parte d" "A última solidão", o livro no qual Carmen Garcia conta "histórias de amor e mágoa dos velhos em Portugal". Eles constituem a sua "família alargada", conhece-os melhor do que as palmas das mãos. "Sei que o Manuel Pedro não fica feliz se eu não lhe calçar umas botinhas de lã debaixo dos sapatos", qual a marca dos "quadradinhos de chocolate" que o senhor Mouzinho mais adora, como ele gosta de "comer o pastel de Nata com a colherzinha do café e só depois a massa".
A relação familiar, de proximidade e afecto, é inevitável e quando morre um utente é quase como se fosse alguém da família. Carmen tem por hábito levar os dois filhos para o lar, pelo menos uma vez por semana, e "mesmo eles notam se falta algum utente e perguntam: foi para o céu, mãe? Passo a vida a enterrar avós", conclui Carmen.
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"Temos um problema grave de medo da velhice", acredita a enfermeira apaixonada por Geriatria, que "cansada de ver tanta coisa", recuperou 12 das muitas histórias que guarda num pequeno caderno.
N""A última solidão", encontramos por exemplo, a história da Custódio, um dos três "malucos" de Vendas Novas de quem Carmen tinha "pavor" quando era criança. Quando o reencontrou no primeiro lar em que trabalhou, "a nossa primeira interacção correu muito mal". Custódio gritou palavrões e tentou bater-lhe com os pés e a bengala. "Um dia, fui dar-lhe o lanche e ele disse uma coisa horrível. Ele disse literalmente, mete-o no cú". Dessa vez, Carmen estava preparada e conseguiu reagir de forma a quebrar o gelo. A partir daí, nasceu uma relação que ainda hoje a emociona. Custódio "não falava com quase ninguém, convenceu-se que tinha ficado cego porque não tinha ninguém que ele quisesse ver". Tinha fugido de casa, por ser maltratado pelo pai, foi acolhido por um padre que o violou durante anos. Já adolescente, agrediu o padre quase até à morte quando este se preparava, mais uma vez, para o atacar sexualmente. Arrependia-se de "não ter acabado aquilo que começou", mas forçado a viver na rua, "teve de fazer-se de maluco". Passou a falar sozinho, para assustar as pessoas, e contava: "ganhei a fama do maluco que não era, mas passei a ser."
Como todos os velhos num lar, Custódio tinha um lugar "quase sagrado", um sofá que imita napa, "que se cola à pele" e a o fazia parecer "fundido com o sofá". Acreditava que iria morrer naquele sofá e quando Carmen o encontrou moribundo na cama, "faltou-me coragem para o passar para o sofá". No dia seguinte, não foi ninguém ao funeral. Custódio "morreu como nasceu: sozinho. Era o maluco da terra, mas era só uma pessoa muito sofrida" e se Carmen tem algum arrependimento é de "não o ter levado para o raio do sofá".
N""A última solidão" há histórias duras, sobretudo de demência. Carmen recorda a utente de Lisboa, que estava muito feliz numa festa de marchas populares organizada pelo lar. O marido veio ao arraial e "quando viu a mulher a marchar, super feliz, desatou num pranto", explicando que "a minha mulher morreu hoje". Durante toda a vida, ela tinha odiado as marchas, inclusive saía de Lisboa na altura dos Santos populares e "vê-la assim tão feliz era a prova que já não era ela. A demência engoliu-a".
Palmira Ribeiro confirma que "a realidade é muito dura" num lar. Leitora ávida, esta utente de 83 anos foi a primeira pessoa, além dos editores, a quem Carmen Garcia deu a ler "A última solidão". Está no lar Raízes do Tempo há quase cinco anos. Foi aí que morreu o marido, doente de Alzheimer. "Fiquei sem ninguém", lamenta-se, no cadeirão do canto da sala cheia, de onde recusa levantar-se.
Foi para chamar a atenção para o que se passa nos lares que Carmen Garcia escreveu "A última solidão". "A sociedade não sabe o que se passa dentro dos lares, não tem noção que são depósitos de histórias vivas."
Mas os "lares vivem no limbo", refere a autora. "Parece uma missão impossível encontrar funcionários", apontando casos de trabalhadores que "começaram a trabalhar às 9 horas e despedem-se às 11, quando percebem a carga física e emocional".
Carmen pede urgência na forma como se olha para os velhos e para os lares, mas "o salto que era preciso dar não passa só pelos lares, teria de ser um salto tutelado também pelo ministério da segurança social. É urgente mudar a forma como os lares estão organizados em Portugal, é urgente separarmos os utentes pelo seu grau de dependência", defende Carmen Garcia, que considera inaceitável amarrar os braços e pernas dos mais velhos, bem como a sua infantilização. "Os velhos não são crianças, não fazem birras, não se portam mal porque são crianças. Há tanta coisa que tínhamos de fazer diferente" e se não houver vontade de mudar, Carmen não tem dúvida que "a bolha vai rebentar-nos nas mãos e não vai demorar assim tanto".
A autora não escreve segundo as normas do novo acordo ortográfico