Paula Coutinho trabalha no SNS há 42 anos. Médica intensivista no CHUC, Centro Hospitalar e Universitário de Coimbra, tem estado sempre na linha da frente na luta contra a Covid e abriu a porta de casa a um amigo, jornalista da TSF.
Paula Coutinho trabalha no serviço nacional de saúde (SNS) há 42 anos. Muito mudou desde janeiro de 1979, mas a médica com formação inicial em pneumologia, não se lembra de um desafio da dimensão do que foi colocado pela pandemia da Covid-19. Intensivista nos CHUC (Centro Hospitalar e Universitário de Coimbra, ou seja, Covões e Hospitais da Universidade), tem estado sempre na linha da frente na luta contra o novo coronavírus.
Numa altura em que tanto se fala do trabalho e da importância da medicina intensiva, do labor daqueles que estiveram na linha da frente, de máscaras, fatos tipo astronauta, viseiras e ventiladores - entrevistada e entrevistador - sentados nas cadeiras nos topos da mesa da sala de jantar, num apartamento no centro de Coimbra, numa tarde de domingo, numa conversa por "tu", ali estiveram mais de duas horas:
"Eu não sei o que tu queres mas eu estava a pensar... tu queres que eu fale da pandemia, certo? Começo a dizer quem sou".
Paula Coutinho tem o tempo de carreira que a idade do Serviço Nacional de Saúde (SNS): "tenho 42 anos de trabalho, sou assistente graduada que é o grau mais alto da carreira desde 1994, mas nunca consegui ascender a um lugar de assistente graduado sénior, o antigo chefe de serviço, porque não tenho uma carreira, simplesmente porque não existia essa carreira. Esse foi um dos óbices ao crescimento da medicina intensiva. Eu comecei a trabalhar exatamente no ano da criação do SNS.
Eu ainda assisti ao princípio do SNS, ao princípio das carreiras. Quando eu estava no terceiro ano de policlínica, fui para a periferia, fiz o Serviço Médico à Periferia. Não havia carreira de medicina geral e familiar. Nós, jovens médicos, íamos à periferia nós, fiz esse ano como se fosse o início da carreira. Os primeiros clínicos gerais, ou os primeiros médicos de medicina geral e familiar, foram os do meu curso e dois ou três cursos antes do meu. As pessoas que acabaram entre 77 e 81 foram os primeiros médicos de família que houve, portanto isto tudo começou e foi crescendo. O espírito de corpo que então havia, agora é difícil...
Era um tempo ainda muito marcado pela revolução que tinha sido cinco anos antes...
Por isso mesmo era mais fácil criar esse espírito. Era um espírito de pioneirismo digamos, estava tudo a começar. Lembro me quando eu comecei no meu Internato Geral, e depois no internato da especialidade, nós tínhamos a noção de que era tudo um princípio, mas já com alguma estruturação. Uma vez acabado o curso em 78 em setembro e comecei a trabalhar lá em janeiro de 1979. Agora já começa a haver médicos no desemprego que não conseguem entrar para especialidade. Mas no meu tempo, não havia desemprego.
A experiente médica intensivista dá conta de uma realidade nacional que é fator estruturante de alguma falta de operacionalidade e eficiência do SNS:
"Nós temos uma cultura, neste país, "hospitalocêntrica". Tudo gira à volta do hospital em vez de girar à volta dos cuidados primários de saúde. Isto é, o doente crítico, o doente agudo grave, entra num hospital e entra pela urgência normalmente, e a seguir tem que ser diagnosticado, tratado, estabilizado inicialmente e a seguir faz o seu percurso; um doente cirúrgico só precisa ir ao bloco operatório, é operado e segue para a medicina intensiva. O doente é tratado, estabilizado e, se tiver indicação, vai para a medicina intensiva que, ela própria, tem vários níveis de cuidados. Ouvimos imenso falar em termos de gestão de saúde, de que os serviços se organizam centrados no doente, mas não é nada centradas no doente. Os hospitais estão organizados centrados no médico porque são organizados por especialidades médicas.
Como se diz que a escola é centrada no aluno e é centrada no professor...
Portanto, é tudo ao contrário. Portanto, a organização por serviços: otorrino, medicina interna, cirurgia, mas os doentes têm várias patologias. Por exemplo, um velhinho que faz uma fratura. Cai, faz uma fratura do colo do fémur, é internado na ortopedia; mas, ao mesmo tempo, tem uma diabetes, tem um Alzheimer e tem uma hipertensão e quando ele é internado, o ortopedista que é só ortopedista é capaz de dar a medicação que ele fazia em casa; só que ele tem uma situação aguda e vai descontrolar. Portanto, ele precisava de outro tipo de atuação. Já há experiências. Nós não inventamos nada, está tudo inventado, não é preciso inventar a roda. E há já um hospital em Portugal, penso que um, pelo menos que eu saiba, o Beatriz Ângelo, já está organizado assim. Tem um serviço de internamento de Medicina Interna e um de cirurgia e as várias especialidades são apenas consultoras: um doente com uma eficiência cardíaca não precisa ser internado em cardiologia, é internado na Medicina Interna e Cardiologia vai dar o seu apoio. Mas o facto de termos um sistema centrado no médico, gerou muito a urgência e a quantidade enorme de doentes que vão à urgência, gerou que tudo funcione em função das escalas de urgência. Isto é, um médico de medicina interna ou de cirurgia tem o seu horário da semana diminuído porque tem que fazer urgência, e como tem que fazer urgências, já não pode fazer tantas consultas ou fazer tantas cirurgias. Tudo isto precisava de uma volta grande, e eu acho que o internamento por gravidade da doença é o mais importante neste momento.
Essa pressão sobre a urgência e o hospital organizado em função da urgência teve impacto nos cuidados intensivos?
Tem. Nós, como medicina intensiva - e eu digo medicina intensiva que é a especialidade da área médica, porque é muito mais do que cuidados, é mais abrangente, as unidades de cuidados intensivos são uma parte do trabalho na medicina intensiva - temos doentes que, com falência de um órgão, só precisam de uma monitorização, digamos, mais apertada. E depois temos os outros doentes que precisam de suporte de vários órgãos, portanto temos várias graduações e nós devemos tratar esses doentes todos: os doentes agudos graves, os médico-cirúrgicos, os traumáticos, todos. É uma especialidade que tem essa abrangência.
Paula Coutinho dá conta de uma realidade portuguesa que a pandemia veio pôr o descoberto:
Nós temos um défice enorme de camas críticas que são as camas para tratar o doente agudo grave. O primeiro levantamento que existe, com números mais ou menos reais, de Portugal é de 2012. Eu sei isto porque estou há muitos anos no Colégio da Especialidade da Ordem dos Médicos - para mim é um prazer e uma honra enorme ter estado muito envolvida na génese da especialidade, deu muita luta durante muitos anos a muita gente e para mim é um orgulho enorme ter participado nessa luta - mas em 2012, com os primeiros dados, nós tínhamos um rácio de 4,8 camas por 100 mil habitantes em medicina intensiva; a média europeia era 11,5. Nós tínhamos 4,8 anos, estávamos no fundo da tabela. Quem tinha mais era a Alemanha que tem um sistema de saúde extraordinariamente robusto, como muitas outras coisas, que tinha vinte e oito camas por 100 mil habitantes, só para vermos a diferença brutal que existe.
A Alemanha tinha bem mais do dobro da média europeia, Portugal tinha um terço da média europeia e quase sete vezes menos que a Alemanha...
Exatamente, isto em 2012. Entretanto foi feito um esforço concertado e acho que nós conseguimos. Nós em 2012, com esses primeiros dados no Colégio da Especialidade de Medicina Intensiva, estava-se a tentar criar a especialidade, na altura estava-se a perceber que nós precisávamos de ter camas, mas não é só ter camas, precisamos de camas e precisamos de recursos qualificados, que demoram muito tempo a formar. Tudo isto levou muito tempo em termos de camas. Houve um crescimento em 2017, foi publicada a primeira rede de referenciação em medicina intensiva, fiz parte do grupo que fez essa rede de referenciação com o Ministério da Saúde. A rede de referenciação foi dividida, tal como existe neste momento, por ARS (Administrações Regionais de Saúde). Pessoalmente, não defendo as ARS. A nova Lei de Bases da Saúde, que já foi aprovada na Assembleia da República, mas que nunca mais avançou, prevê a criação de uma coisa que eu acho que é muito mais lógica: os serviços locais de saúde; se calhar, são mais importantes do que as chamadas ARS. Centro, Norte, Sul, Lisboa Vale do Tejo, Alentejo. São lugares muitas vezes distantes da realidade e muitas vezes são lugares muito políticos, demasiado políticos e com pouca ligação ao terreno. Isso tem acontecido muitas vezes e eu falo da área que conheço melhor, que é a medicina intensiva. Nessa altura, lá por volta de dois mil dez 2012, a ARS norte estava extraordinariamente bem organizada e funcionava de uma forma muito melhor do que as outras. Isso refletiu-se, por exemplo, na organização da medicina intensiva no Norte; está muito mais bem organizada do que no Centro e do que, sobretudo, em Lisboa e Vale do Tejo. Conseguiu organizar-se, criou um grupo de trabalho do doente crítico, criou uma rede que conseguiu transformar os hospitais do Norte quase todos com serviços de medicina intensiva e com uma ligação entre eles. Isto é político, mas tudo é político...
Mas não foi uma política nacional...
Não foi uma política nacional, foi uma política determinada em função das pessoas que estavam naquele momento naquela ARS. Neste momento as coisas mudaram e já não é tanto, mas esse foi, digamos, o impulsionador para um crescimento da medicina intensiva no Norte de uma forma muito mais importante e isso vai refletir-se nos números. Agora, a medicina intensiva neste momento está em praticamente todos os hospitais do país. Uns serviços maiores ou outros serviços menores, uns mais bem adaptados, outros menos bem, uns com mais gente, outros com menos gente. Conseguimos crescer em 2018: dos 4,8 em 2012 passamos para 6,4 camas críticas por 100 mil habitantes e foi aí que nós partimos para esta pandemia: 6,4, sendo a média europeia 11,5.
Quando a pandemia começou, em março do ano passado, os serviços hospitalares estavam abaixo dos mínimos?
Estamos a falar de serviços, por exemplo no CHUC (Centro Hospitalar e Universitário de Coimbra) que tem mil camas de internamento, tínhamos 30 camas de Medicina Intensiva, devíamos ter cinquenta e tal. Estávamos muitíssimo aquém das necessidades. Por exemplo, Santa Maria tinha, no início disto, penso que também à volta de 30 ou 35 camas também. Lisboa Central, pondo as unidades todas em conjunto, 40 ou 50 talvez; isto era o que inicialmente tínhamos, eram os dados que estava a trabalhar quando chegaste. Tínhamos portanto, inicialmente, 229 camas no norte, no centro havia 79 - o centro tinha 4,7 camas por 100.000 mil habitantes - portanto o Norte tinha 6,8. Lisboa e Vale do Tejo tinha mais 255 camas. Portanto nós partimos para esta pandemia com cerca de 800 camas. Ora, no pico da pandemia tivemos 960 doentes internados em cuidados intensivos ventilados.
Estamos a falar de janeiro...
Estamos a falar de janeiro de janeiro. Portanto nós começámos com 800 oitocentas e poucas camas, portanto, menos do que o máximo que nós tivemos de doentes Covid. E nós não podemos esquecer que nós nunca podemos deixar de ter os doentes não-Covid. Foram paradas cirurgias é verdade, mas nós tivemos que tratar os outros doentes. As pessoas não circulavam, não havia tantos acidentes, mas tivemos sempre que ter camas para doentes não-Covid, doentes que nós não podemos parar. Portanto, nós partimos de um défice estrutural importantíssimo; esse défice era maior na região centro e no Alentejo, eram os que estavam piores. Lisboa e Vale do Tejo, Norte e Algarve estavam mal, mas um bocadinho melhor.
O último ano é coisa na vida profissional que Paula Coutinho jamais vai esquecer:
Este ano foi um ano marcante. Eu nunca, em 42 anos de serviço, tive uma experiência como esta e não sei se os meus colegas que trabalharam antes de mim algum dia tiveram... não tiveram com certeza.
A médica intensivista com mais de 40 anos de carreira elogia a resposta do Serviço Nacional de Saúde:
O SNS conseguiu dar uma resposta... eu diria que foi quase impossível. E a trabalhar no limite, isto só significa que nós estamos a trabalhar há muito tempo no limite. É muito comum, por exemplo no meu serviço de medicina intensiva, haver uma taxa de ocupação acima dos 90 ou mesmo 95%.Mas a taxa de ocupação deve ser entre os 75 e os 85% para haver sempre camas livres para quem precisar.
Numa situação ideal, só deveria haver taxas de ocupação próximas dos 100% em situações graves como a que nós tivemos?
Exatamente. Antes não deveria haver. Mas nós já tínhamos isso porque havia poucas camas críticas. Quando a pandemia começou, o meu primeiro doente Covid entrou no dia 12 de março, foi a mãe de uma colega nossa. Isto começou com aquelas imagens horrorosas do norte de Itália e de Espanha e nós víamos e aqui não tínhamos ainda nada e estávamos apavorados com aquilo pudesse acontecer e acontecer rapidamente como aconteceu no norte de Itália; nós não estávamos preparados, definitivamente não estávamos, os hospitais não estavam preparados, mas ninguém estava preparado para isto, ninguém! Apesar de haver planos de catástrofe, apesar de haver planos estruturados de contingência em todos os hospitais como é obrigatório. Ninguém estava preparado para uma dimensão destas. E depois, inicialmente, quando isto começou, o difícil foi que nós não sabíamos o que isto era; era tudo novo. Não tínhamos a noção se aquelas imagens que nós víamos na televisão daquele caos em Itália e daquele caos em Espanha, como é que nós íamos resolver isso aqui? Não tínhamos equipamento. Tínhamos alguma estruturação de Serviço de Medicina Intensiva, é desses que eu falo com melhor conhecimento do que do que da urgência, por exemplo. Muitos serviços estavam extraordinariamente carentes, com equipamentos absolutamente obsoletos e as próprias estruturas físicas eram estruturas desadequadas e a necessitarem de intervenções importantes há muito tempo. Desde que fizemos a primeira rede de referenciação em 2017, nós chamámos a atenção de que era urgente uma intervenção, um aumento das camas críticas e um aumento dos recursos humanos.
Até porque não existem intensivistas em Portugal com a facilidade com que se dá um pontapé numa pedra...
Os primeiros internos da especialidade de Medicina Intensiva entraram em janeiro de 2016, vão sair agora, em janeiro, os primeiros intensivistas formados de raiz. Isto demora, são cinco anos, demora tempo. Por muito que várias entidades tivessem alertado, não havia dinheiro; houve um desinvestimento enorme nos anos da troika.
Estamos a pagar por isso?
Estamos a pagar, nitidamente, e estamos a pagá-lo com algumas coisas boas que foram feitas, mas no início da pandemia pagámos isso, de alguma forma, com algumas intervenções menos adequadas. Por exemplo, no início da pandemia, tu ouvias diariamente falar em ventiladores: eram ventiladores ventiladores, ventiladores, era preciso comprar ventiladores, era preciso inventar ventiladores, e só se falava de ventiladores como se os ventiladores fossem um candeeiro com botão de off e a gente ligava e aquilo tratava os doentes! Não é verdade! O ventilador sozinho não funciona. Precisa de alguém que o ponha a funcionar e precisa de alguém que o mantenha a funcionar e precisa sobretudo de 'alguéns', de muitas pessoas que tratam os doentes. Portanto, o ventilador sozinho não chega. Não é pôr um ventilador numa cozinha ou num vão de escada que vai resolver o problema.
Nessa altura inicial, foi criada uma comissão de acompanhamento da medicina intensiva a nível do ministério, que inclui a Sociedade Portuguesa de Cuidados Intensivos, liderada pelo João Gouveia. E depois, foi aumentada com gente do Norte, com gente do Centro e do Sul. E essa comissão de acompanhamento da resposta à pandemia, inicialmente foi muito vocacionada para equipar os serviços e para os adequar. Tudo começou no Norte, portanto, São João foi o primeiro hospital a levar o embate que teve o maior número de doentes, até porque também é uma das unidades maiores e as ondas foram se propagando. Mas inicialmente, estávamos todos um bocadinho atrapalhados porque não tínhamos camas, não tínhamos espaço e não tínhamos gente.
Como é que aconteceu com essa primeira senhora que te chegou a 12 de março?
Essa primeira, nós começámos a organizar-nos: decidiu-se que o Hospital dos Covões ia ser o hospital Covid. A urgência passou a ser urgência respiratória, passou a chamar-se assim. Toda a patologia respiratória iria para os Covões, seria lá o internamento e abriu-se uma enfermaria e a Unidade de Medicina Intensiva que estava nos Covões, com dez camas, seria a unidade Covid e as 20 camas que nós tínhamos no polo no Hospital da Universidade, seriam as camas não Covid. Isto teve pontos bons e maus, bons porque criou alguns circuitos no Hospital dos Covões, mas esses circuitos não foram criados no Hospital da Universidade, e pensou-se, desde o início, que os HUC seriam um hospital Covid-free. Mas é impossível numa pandemia ter um hospital Covid-free e portanto isto acabou por não resultar; como não resultou no Curry Cabral em Lisboa, como não resultou em lado nenhum: No fundo, teve que haver uma adequação, mas nós começámos a adaptar-nos para isso e alterámos o serviço todo, criámos circuitos, respondemos ao "como é que vamos fazer". E aí acho que houve um efeito colaborativo. Todos nós temos uma rede como é evidente, não somos assim tantos intensivistas como isso, temos uma rede entre nós e conversamos e falamos e temos grupos de discussão e criou-se uma rede e nós adaptámos a unidade dos Covões da medicina intensiva para os doentes Covid.
Fatos, viseiras, máscaras. Aí, entrou em campo o tradicional desenrascanço nacional, coisa lusa:
Nós começámos a fazer isto no fim de fevereiro ou princípio de março e no dia 12 de março, entra a primeira doente e tivemos formação de equipamentos, mas não havia equipamentos, era um défice brutal! Não havia. Nós tínhamos fatos, sabíamos exatamente o que tínhamos que usar, as luvas, tínhamos tudo, mas tínhamos tudo em quantidade normal, e isto... para tratar um doente, são 24 horas sobre 24. Portanto, não é um fato por dia nem é uma bata por dia nem é uma cógula, nem uns óculos por dia, é mesmo muita quantidade! E eu lembro me que quando estávamos para receber o primeiro doente, agora nós agora temos - apesar de eu ser velha, alinho nessas coisas com os meus colegas temos um grupo de WhatsApp dos médicos do serviço - e então recebemos uma mensagem de dois dos médicos, muito entusiasmados. Tinham ido à rua, ao Leroy Merlin, comprar fatos de pintor e então acharam que os fatos de pintor eram a melhor coisa e diziam: vamos telefonar ao diretor clínico, a ver se o CHUC pode comprar porque eles arranjam-nos tipo cem fatos de pintor, o que na altura, para nós era imenso. Agora, um ano depois, nós gastámos várias dezenas de milhares com certeza. Depois era a proteção a própria proteção...
Mas o fato de pintor revelou-se adequado?
Sim, sim, e voltámos a comprar. E voltámos a usá-los...
A medicina intensiva usou fatos de pintor da construção civil?
Do Leroy Merlin....
Passe a publicidade...
Indo ao supermercado comprá-los... passe a publicidade. As viseiras, tu lembras-te desse início, foi tudo feito assim de uma forma... As melhores viseiras até hoje, um ano depois de utilização e utilizei muito continuo a achar que as melhores viseiras são as dos jardineiros, porque tapam a cara toda e não são frágeis, são robustas, são resistentes, e se estás cansado consegues por aquilo para cima e respirar um bocadinho. São boas, são as melhores.
Portanto, viseiras de jardineiro e fatos de pintor...
Da construção civil. As próprias máscaras... Inicialmente, nós tínhamos medo e arranjámos máscaras da pintura dos automóveis. No fundo, tentámos fazer isto para nós. Depois o hospital acabou por comprar.
Ou seja, prevaleceu sempre a arte portuguesa do desenrascar?
Completamente, sim. Sempre, sempre. Outro problema, que eu não tenho porque sou baixa, mas tenho colegas altos, com 1,90m. A inexistência de roupa para pessoas altas foi outro problema. E não tinham roupa que lhes desse proteção adequada porque as mangas ficavam curtas, ou as perneiras eram muito pequeninas. Mas repara, ninguém podia estar preparado, porque foi uma avalanche. Mas acaba por levar a algum desgaste. Inicialmente tínhamos tanto medo... toda a gente estava fechada em casa, lembras-te? Tudo em teletrabalho, só estavam as coisas essenciais a funcionar, toda a gente cheia de medo e nós também, porque também somos gente normal. Eu acho que os profissionais, de uma forma geral, conseguiram trabalhar bem. Mas por exemplo, na enfermagem: antes da pandemia já estávamos nos limites dos limites. Em termos de dotação de enfermeiros para cuidados intensivos...
O apelo migratório para os enfermeiros uns anos antes foi muito forte...
Foi brutal. Eles foram-se embora. São muito mal pagos. Os profissionais de enfermagem são fundamentais mas são extraordinariamente mal pagos, um enfermeiro com vinte anos de carreira leva mil euros para casa. Nós formamos excelentes profissionais, quer enfermeiros, quer médicos. E técnicos de diagnóstico, que ninguém fala deles, de imagiologia, de radiologia, operadores de TAC, técnicos de análises clínicas, cardiografia, são extremamente importantes e passa-se a mesma coisa. São carreiras que não são nada atrativas para as pessoas. Ganham muito mal e têm imenso trabalho. Nesta pandemia, os enfermeiros foram de uma abnegação enorme. Esta primeira fase foi assim. Nós próprios tínhamos tanto medo que nos vestíamos de uma maneira que parecia que íamos para a guerra. Eu, às vezes, dizia "vocês estão com medo? Isto não é o Ébola". Mas ninguém, na verdade, sabia e toda a gente tinha muito medo, pelo que era importante cada um sentir-se seguro, confortável consigo. Havia gente que se protegia mais e gente que se protegia menos. Eu, por exemplo, só vesti fato de pintor por duas vezes. A primeira vez foi no fim de fevereiro deste ano.
Porquê?
Porque achei que a proteção de bata era suficiente. Mas tínhamos umas batas horrorosas que faziam um calor tão grande, tão grande, tão grande, que ficavas extremamente desconfortável. Eram péssimas. O material de proteção que temos vai sempre mudando, hoje temos uma coisa e daqui a quinze dias temos uma coisa completamente diferente...vai-se comprando, às vezes é melhor, outras vezes é pior. Mas hoje estamos muito mais à vontade que nesse início.