"Não nos vamos transformar em eremitas." O que significa "conviver com o vírus"
Já se vê uma luz ao fundo, mas o país que está fora do túnel é diferente daquele que deixamos para trás. Durante um período indeterminado de tempo, vamos ter de mudar a forma como vivemos.
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Em tempos idos, um rei pediu aos seus conselheiros uma tarefa impossível: criar um anel mágico que lhe desse respostas para qualquer situação, fosse de alegria ou dor, que lhe servissem de conselho na vitória ou consolo na derrota. O anel que os sábios criaram era de metal banal, com apenas uma frase escrita: "também isto passará".
Há varias versões desta lenda persa, imortalizada num discurso de Abraham Lincoln. É uma verdade absoluta da condição humana, que, como prometido, se pode aplicar a qualquer situação, mesmo à pandemia de Covid-19. Passará, resta saber quando.
Itália anunciou na semana passada que se está a preparar para uma fase de "coexistência com o vírus" e Marcelo Rebelo de Sousa disse esta quarta-feira algo semelhante: " os portugueses vão começar a habituar-se a conviverem com um vírus que foi vencido no risco que representava - um risco gravíssimo - e passa a ser algo do dia-a-dia".
Antecipa-se uma fase de alívio, de diminuição das restrições e confinamento social, mas também previsão de um futuro algo temeroso. O que significa exatamente coexistir com o novo coronavírus?
Para o sociólogo João Peixoto, só os exemplos da história podem ajudar a imaginar o que nos espera. Para antecipar o futuro, "tinha que haver estudos, evidências, comparações, coisa que não existe" - este é um cenário sem precedentes.
Tudo indica que esta será uma situação conjuntural, não estrutural. Que a normalidade regressará, eventualmente, quando for encontrada uma vacina ou tratamento eficaz, mesmo que tal demore um ou mais anos .
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O que vai, certamente mudar, na opinião do sociólogo, é a forma como trabalhamos . "As pessoas estão a aprender coisas novas que se calhar vão usar muito mais no futuro". Serão menos as deslocações para "reuniões mais ou menos inúteis", e viagens de curta duração, já que as pessoas perceberam que há "uma excelente alternativa para esse tipo de contactos".
A comunicação à distância pode ganhar uma nova dimensão nas relações pessoais e profissionais, mas João Peixoto não acredita que "as pessoas se vão deixar de querer ver, de almoçar umas com as outras, de festejar umas com as outras, de ver um encontro desportivo umas com as outras".
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Em situações de catástrofe, seja uma guerra, ou uma pandemia, "temos de nos adaptar a um modo de vida mais confinado". Mas quando a crise é ultrapassada, não há motivo para não imaginar que os comportamentos sejam estruturalmente alterados, até porque as pessoas estão "com uma enorme vontade de voltar ao normal e a dar muito mais valor ao normal do que davam antigamente".
Ainda que sem beijos ou apertos de mão, as ligações ao outro mantém-se. "Somos seres sociais. Não nos vamos transformar em eremitas. Ninguém gosta disso e ninguém vai passar a gostar disso. Pelo contrário, vamos passar a detestar isso."
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Os idosos são os mais suscetíveis a perder irremediavelmente as relações sociais. "Essa é uma das questões mais assustadoras que temos neste momento pela frente", lamenta João Peixoto. "A pouco e pouco as pessoas vão ser serão gradualmente libertadas. Exceto as pessoas de risco."
Portugal é um dos países mais envelhecidos do mundo e arrisca-se agora a assistir a uma separação e gerações: jovens a retomar gradualmente a sua vida, idosos remetidos a quatro paredes, para seu próprio bem.
Os mais velhos, muitos já negligenciados pelas famílias ou institucionalizados, vão ficar ainda mais sozinhos, sem "a possibilidade económica, nem a facilidade tecnológica" para adotar métodos de comunicação à distância.
"Até que haja uma resolução permanente para o problema, corremos o risco de piorar muito a qualidade de vida das pessoas de risco (...) A nossa saúde física também se degrada quando emocionalmente não estamos bem. E sabemos como é importante, para estarmos emocionalmente bem, estarmos com contacto frequente com pessoas de quem gostamos e que gostam de nós."
Por outro lado, para os mais pequenos, perder o contacto com outras crianças é um elo quebrado no processo de socialização. À TSF, a diretora-geral adjunta para a educação da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO), a italiana Stefania Giannini, arrisca afirmar que o ensino nunca mais será como antes. E há riscos associados ao "impacto emocional ao entrarmos no que talvez seja o novo normal".
A mente dos homens, seja qual for a idade, molda-se em função de muitas variáveis. O medo é uma delas. E quando o medo se instala, geralmente crescem na mesma proporção os autoritarismos.
Nesse campo, "tudo pode acontecer", admite o sociólogo João Peixoto. "Pode acontecer que pelo medo e pela necessidade de haver um grande líder, um grande protetor, as pessoas aceitem condicionar a sua liberdade e a sua privacidade, mas também pode acontecer o contrário - que as pessoas queiram manter os seus diretos."
Além dos milhares de câmaras de videovigilância e reconhecimento facial, o Governo chinês atribuiu um código QR que classifica os cidadãos como "verde", "vermelho", ou "amarelo" com base no risco de terem contraído o novo coronavírus. Na Coreia do Sul, as autoridades acederam a dados dos cartões de crédito e Itália começou a "identificar e isolar os sujeitos em risco" através dos dados recolhidos pelos telemóveis .
A Comissão Europeia já admitiu recorrer a aplicações que recolham a localização para avisar utilizadores que estiveram próximos de alguém infetado, ainda que sujeitas a regras de privacidade, e com a promessa tácita de que serão suspensas quando deixarem de ser necessárias. A Google e a Apple já prometeram criar uma app que use Bluetooth para acompanhar os contactos entre pessoas .
Fazê-lo em Portugal está fora de questão, já disseram o Presidente da República e o primeiro-ministro. Seria inconstitucional, lembram . Na prevenção do terrorismo, por exemplo, o Tribunal Constitucional chumbou mais do que uma vez a utilização de metadados de telecomunicações pelas secretas.
Apesar de o caso português não ser comparável a países como a China ou Coreia do Sul, com "tradições muito diferentes", o nível de controlo dos cidadãos a adotar num futuro de convivência alargada com o vírus é imprevisível. "Diria que aí está tudo em aberto", afirma João Peixoto. "Depende, no limite, de todos nós."
Uma coisa é certa: "As fronteiras ficarão controladas durante muito tempo, quer as extracomunitárias, quer as intercomunitárias", nota o sociólogo. "Não me surpreenderia se o mundo agora se fechasse", diz. Que a globalização tal como a conhecemos tenha chegado ao fim. Mas não para sempre.
"Não é a primeira vez na história que o mundo se abre e depois se fecha para depois voltar a abrir", lembra." O setor do turismo vai seguramente demorar a recuperar.
Com o fecho de fronteiras, às restrições de viagens juntam-se os protecionismos comerciais, lembra João Peixoto, mas, por outro lado, "não é de esperar que as migrações acabem". Vamos continuar a precisar de trabalhadores estrangeiros e os movimentos de pessoas vão continuar no futuro, diz.
No pior dos cenários, o mundo pode nunca mais ser o mesmo. A realidade costuma ultrapassar a ficção, mesmo os romances distópicos. Para já, não se preveem mudanças estruturais. É preciso viver um dia de cada vez e o governo só faz planos com um mês no calendário.
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Em maio, diz António Costa, será preciso "viver com a ameaça permanente do vírus" . Mas viver. Passar a usar máscara na rua, acautelar da higienização dos locais de trabalho, espaços públicos e transportes públicos. Eventualmente regressar ao trabalho, mas com "horários desencontrados" nas empresas para evitar horas de ponta.
Também voltar a ir à escola, mas só alunos do 11.º e 12.º anos, e deixar os filhos mais pequenos na creche. Talvez voltar a ir ao cabeleireiro, ao barbeiro e às lojas de bairro. Talvez até ir de férias, desde que seja "cá dentro".
