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Os alunos regressam esta segunda-feira às aulas. Estão criadas as condições para a normalidade ou o elevado número de pessoas isoladas, incluindo professores, vai acentuar as desigualdades?
Poder acentuar as desigualdades, pode com certeza. Mas em primeiro lugar está a saúde e, portanto, a decisão de abrir ou não as escolas, de isolar ou não fazer isolamento, as condições sanitárias a que as escolas devem obedecer, tem de ser em primeiro lugar uma decisão da saúde. É claro que há depois adaptações em que a educação entra, mas os critérios que devem prevalecer serão os da saúde.
Esta nova fase é mais aberta, por exemplo sem isolamento ou encerramento de turmas. Teremos comunidades preparadas para lidar com novas regras?
As escolas têm sido dignas da confiança que lhes foi dada. As escolas, as direções, os professores, a comunidade escolar, portanto os alunos também, todos os técnicos e auxiliares cumpriram, e cumpriram de uma maneira que fez com que num estudo recente da Deco, que repetia um que tinha sido feito em 2016 sobre as instituições nacionais e internacionais nas quais os portugueses teriam mais confiança, a instituição que mais confiança inspira é o sistema de educação público. E foi um progresso, porque em 2016 o sistema educativo público também merecia a confiança dos portugueses, mas estava em quinto ou sexto lugar.
Isso apesar das críticas, nomeadamente sobre a questão tecnológica. Um estudo realizado pelo CNE mostrou que 90% dos professores estavam interessados em formação na área informática. Essa foi uma das fragilidades expostas pelos confinamentos?
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Sim, foi com certeza. Foi fantástico que se pudesse recorrer ao ensino à distância, mas é evidente que não é uma situação ideal. Vivemos uma situação complicadíssima, há pouca informação. Sabemos como a ciência tem andado aqui também aflita a tentar avançar rapidamente no estudo do problema e das soluções. O facto de nós estarmos a ser capazes, apesar de tudo, de lidar com essa incerteza, com essa ignorância e com esse desânimo mostra uma capacidade de resiliência muito grande e sobretudo, como digo, do sistema educativo.
Esta semana um relatório da UNESCO recusa a digitalização da escola. Recentemente, a professora defendeu que a digitalização pode ser uma ferramenta adicional para um ensino mais ativo. Há alguma discordância nesta matéria?
Não, acho que estamos a dizer a mesma coisa. O digital deve ser uma ferramenta ao serviço de uma pedagogia ativa, ou seja, a pedagogia é que tem de ser ativa e tem que comandar o uso do digital.
É crítica dos nossos modelos de ensino?
Há muitas maneiras de aprender e acho que a escola foi construída sobre um determinado modo de ensino mais expositivo. Sem recusar, obviamente, o modelo mais transmissivo, acho que tem de se utilizar muitos outros métodos que suscitem mais o interesse e a atividade mental, também física mas mental, dos alunos. Acho que um dos problemas que tem sido apontado, já antes da pandemia, é o crescente desgosto, entre aspas, dos miúdos pela escola. Há uns anos os adolescentes portugueses, sobretudo as raparigas, gostavam imenso da escola e esse gosto tem vindo a decrescer, não sabemos bem a que atribuir mas a várias coisas, um excesso nos programas, um excesso de avaliação é uma, com certeza. A outra é que o mundo tornou-se tão diferente, que aquilo que eles aprendem pode parecer pouco significativo para aquilo que eles veem e que são os grandes problemas do planeta neste momento. E depois também essa questão da metodologia.
Nestes tempos de pandemia, redescobrimos ou não o papel da escola no combate às desigualdades?
A escola tende a reproduzir as desigualdades da sociedade e desde, pelo menos, os anos 60 do século passado que isso foi demonstrado, estatisticamente.
Mas não deveria ser um elevador social? Aliás, é o único elevador social que temos.
Não sei se é o único, nem sei se é a principal função da escola. A escola tende a reproduzir as diferenças sociais e a gente percebe porquê. Por coisas mais óbvias e outras menos óbvias. Mais óbvias é, por exemplo, o facto de alguém que tem mais possibilidades financeiras poder recorrer a explicações. Menos óbvias é o significado de certas aprendizagens para certos meios. Numa casa onde haja poucos livros ou nenhuns, o significado da leitura e da escrita para os miúdos é muito diferente do que numa casa onde estão habituados a que os pais lhes leiam uma história à noite. A escola tenta, de facto, ultrapassar essas dificuldades, mas acaba por as reproduzir também.
Nestes tempos de pandemia aumentou essa reprodução social?
A pandemia o que veio fazer foi dar visibilidade, veio mostrar muito mais essas desigualdades que nós tínhamos varrido um bocadinho para debaixo do tapete. A escola funcionava como se fossem todos iguais e tivessem todos igualdade de oportunidades. A pandemia veio expor. Por outro lado, veio agravar porque, obviamente, a brecha digital e o acesso às tecnologias não é só uma questão socioeconómica. É também, por exemplo, territorial. Nós saímos de Lisboa e do Porto e começamos a ter dificuldades em ter uma internet robusta.
O crescendo do ensino privado também é gerador de profundas desigualdades?
Sim, mas não gosto nada de opor uma coisa à outra. O ensino privado pode ser muito interessante na medida em que pode avançar com inovações pedagógicas.
Defenderia, por exemplo, o cheque-ensino?
Não, não defendo o cheque-ensino. Mas o que eu não acho que se deva fazer é uma comparação porque a população que frequenta uma escola privada e a que frequenta a escola pública pode não ser a mesma. Em segundo lugar, porque a escola privada pode recusar alunos. Não se pode comparar instituições que desempenham um papel diferente e que têm condições tão diferentes de trabalho.
A pandemia expôs também a falta que fazem outros profissionais na escola, além de professores, como assistentes sociais e psicólogos?
Acho que sim. A pandemia veio mostrar como a escola desempenha uma multiplicidade de funções para além da função essencial, que é fazer com que todos aprendam. Para isso, tem que assegurar a satisfação de necessidades básicas, como a alimentação; tem de assegurar a segurança dos alunos, como por exemplo ver alertas quando há crianças que estão em perigo de maus-tratos ou negligência; há a função de socialização que, no estudo que nós fizemos, foi a principal função prejudicada. Para isso, tem que haver uma multiplicidade de outros profissionais, por exemplo mais mediadores.
Havia o receio de que a pandemia causasse um recuo nos ganhos que vínhamos tendo em relação ao abandono escolar. Já temos alguma noção sobre esse efeito ou ainda é cedo para avaliar?
É cedo, mas já temos dados para 2020. O nosso estado da educação de 2021 está mesmo aí à bica de sair e refere-se aos dados de 2020. Uma das coisas que constatámos é que as metas que tinham sido agendadas com a União Europeia foram, na sua maior parte, atingidas.
Não foram comprometidas com os confinamentos?
Não foram, por enquanto. Devo dizer que tenho imenso receio que, de facto, ainda venha a haver repercussões. Portanto, a nossa recomendação é acompanhar essa situação de muito perto. Ter uma grande preocupação em verificar se, de facto, não teve consequências ou se essas consequências estão apenas a amontoar-se para se fazerem sentir mais à frente. Portanto, a minha resposta só pode ser essa para já. Em 2020, o abandono escolar continuou a reduzir.
O ensino profissional tem sido a menina dos olhos da atual tutela. Essa valorização política tem sido acompanhada da efetiva valorização da formação e das competências dos alunos que seguem esta via?
Nós fizemos há pouco uma recomendação sobre o ensino profissional. E um dos pontos de que partimos foi que o ensino profissional não está a ser valorizado na opinião pública. Não quer dizer que não esteja a ser valorizado legislativamente, e a nível central.
E isso deve-se a quê? Um problema de comunicação, o lastro que traz o ensino profissional?
Eu acho que é sobretudo o lastro. Uma das recomendações que fizemos é a criação de plataformas de informação sobre o que existe, sobre os cursos que são oferecidos, as saídas profissionais, e que essas plataformas sejam facilmente acessíveis.
Portanto a questão não é de competências dos alunos, que aprendem a fazer?
Exatamente, entre outras coisas, aprendem a fazer. Aprendem a pensar, também, para fazer. Costuma-se dizer que agora os empregadores pedem muito aquilo a que eles chamam "soft skills", os quatro C: a capacidade de comunicação, a capacidade de colaboração, pensamento crítico e o pensamento criativo. Eu a elas acrescento um quinto C, que é o da confiança. A confiança e a empatia são um bocadinho a base dessas competências sociais. O ensino profissional, em princípio, tenderia a desenvolver mais este tipo de competências, que podem não ser tão valorizadas academicamente, mas são valorizadas na vida quotidiana e na vida profissional.
Defende há muitos anos um currículo mais amplo, que valorize a criatividade e as expressões artísticas. Entende que continuamos muito focados nas matemáticas e no português?
Eu entendo, mas matam-me se eu disser isto! (Risos) O português, a aprendizagem da oralidade, da leitura, da escrita, é fundamental em si e instrumental para todas as outras aprendizagens. A matemática, claro, também. Mas, às vezes, acho que há um excesso de peso dado à matemática, em detrimento de outras áreas. Na Alemanha, para se ser professor de primeiro ciclo tem que se ter um exame de música, tem que se saber tocar um instrumento. Porquê privilegiar o pensamento matemático em relação ao pensamento musical e à sensibilidade artística? Há várias linhas de orientação para a educação: é a educação para todos, é a educação ao longo da vida, e a educação em todas as áreas.
No período de pandemia tivemos alterações nas regras em relação aos exames e provas. Seria uma oportunidade para revermos o modelo de avaliação?
Sou defensora de uma função formativa para a avaliação. A avaliação parece-me muito importante sobretudo para poder identificar aos próprios alunos, e também aos professores, quais são os pontos em que eles têm que insistir mais. Ou seja, a avaliação ao serviço da aprendizagem.
Temos um modelo demasiado centrado na nota e na média?
Acho que temos uma aprendizagem ao serviço da avaliação. E que devíamos ter uma avaliação ao serviço da aprendizagem.
O envelhecimento dos professores dificulta a introdução de modelos mais dinâmicos no ensino e na avaliação?
Eu sou a última pessoa a falar do envelhecimento dos professores, como é natural. Os professores mais velhos, em geral, têm uma ótima formação, têm muita experiência, não cometem os erros de quem está a começar. O que me preocupa no envelhecimento é o facto de estarem perto da reforma e, portanto, estarem a sair. Tem que se promover a formação de professores, muito rapidamente.
E a atração de candidatos a professores é um problema real?
Eu quero estudar isso. Este verão constatei que havia muitos miúdos adolescentes no final do curso, no Secundário, que queriam ir para professores e não sabiam como. Não sabiam a que instituições deviam recorrer. Acho que tem que haver uma grande clarificação sobre o que é que se está a passar.
Este ministro da Educação acumula o mais longo período no cargo. Que avaliação faz do seu desempenho?
Ai, não me faça uma coisa dessas! Não vou fazer avaliação de ninguém.
Não precisa de ser uma nota, pode ser qualitativa.
Não. (risos) O que eu gostava ainda de dizer, e de que se fala no estado de educação que está para sair, é a questão do movimento. Eu falei da atividade mental, mas também devia ter falado da ação, da atividade dos miúdos, a propósito do desgosto da escola. Notou-se mais a descida do interesse pela escola nas raparigas, mas a verdade é que, apesar da tudo, a escola parece muito mais adequada às raparigas do que aos rapazes. Os rapazes a partir de uma certa altura começam-se a desinteressar muito pela escola. E eu acho que temos que ter, não sei se fazer quotas, mas, pelo menos, ter um bocadinho de atenção a isso. E a questão da atividade física, e de a pessoa poder correr um bocadinho riscos, é também uma das tais várias dimensões do ser humano que tem que ser tida em conta.