Cultura

O Poder e a Palavra: livro faz radiografia aos 40 anos da democracia brasileira

Rodrigo Tavares Foto: Mário Vasa

A Palavra e o Poder aterram na Fundação Calouste Gulbenkian às 18h30 desta quarta-feira. Aterram pode não ser verbo descabido, uma vez que o livro trata do Brasil e dos 40 anos de democracia brasileira

O prefácio começa assim: "Nos anos 1970 e 1980, dezenas de países romperam com regimes autoritários e iniciaram transições democráticas. Em alguns casos, o processo ficou marcado por um símbolo facilmente identificável. No Chile, um arco-íris, em Portugal, um cravo, nas Filipinas, a cor amarela. No Brasil, não houve metáforas visuais. O reconhecimento veio-lhe uma palavra simples, um adjetivo, Nova. Essa foi a escolha. A nova república, como passou a ser chamado o período iniciado em 1985, quando Tancredo Neves venceu as eleições indiretas, transformou um recurso vocabular em promessa política. Esse ano ditou oficialmente o fim da ditadura militar, iniciada em 1964, e o começo de uma democracia carregada de expectativa. Ao longo dos últimos anos, além de Nova, a democracia brasileira assumiu diferentes qualificativos. No início foi chamada de promissora e constitucional, como se o nome antecipasse um destino. Com o tempo, a gramática do entusiasmo deu lugar ao léxico da crise instável e elitista, como se fosse mais uma hipótese institucional do que uma convicção coletiva. O período de 1985 a 2025 é mais do que um recorde cronológico, é a mais longa fase democrática contínua da história republicana brasileira."

São mais de 41 artigos de opinião publicados na Folha de São Paulo. Os organizadores foram Flávia Lima, editora de Diversidade da Folha, que coordena a formação profissional no maior jornal brasileiro, Naê Fadade, repórter especial da Folha, e Rodrigo Tavares, professor catedrático convidado na Nova School of Business and Economics, a Nova SBE, em Portugal. Trabalhou vários anos no Governo do Estado de São Paulo no Brasil, liderando a área de relações internacionais, é colunista da Folha há vários anos e também assina um espaço semanal na TSF, à segunda-feira: Tem a Palavra.

E agora volta a ter a palavra para começar por nos dizer, que livro é este: O Poder e a Palavra?

É um livro que levou dois anos a ser concebido e publicado, é uma grande leitura sobre os 40 anos da democracia brasileira, grande não no sentido presunçoso ou soberbo da palavra, é de facto um livro com quase 500 páginas, que reuniu 80 pensadores e 80 articuladores e artesãos da democracia brasileira e o livro está organizado em pares. Nós selecionámos 40 artigos que foram publicados na Folha de São Paulo, num universo de 150 mil artigos que foram publicados entre 1985 e 2025, 40 artigos que sejam representativos da trajetória oscilante da democracia brasileira. É uma radiografia de vários temas: é o percurso social, o percurso político, o percurso institucional partidário, mas também o percurso cultural, económico e ambiental do Brasil ao longo deste período.

Quais foram os critérios para escolher esses 40 artigos de entre centena e meia de milhar de artigos de opinião que a Folha publicou ao longo de tantas décadas?

Dois critérios: qualidade e pluralidade. Relativamente à qualidade, nós, os três organizadores deste livro, Neif Haddad, Flávia Lima e eu próprio, os três organizadores foram à procura de, tanto para os primeiros 40 artigos já publicados no jornal, como para os 40 artigos inéditos, juntando 80 artigos no total, pessoas que ainda vivas, ou aquelas não vivas, mas que publicaram na Folha de São Paulo, estas 80 pessoas que tinham uma opinião extremamente qualificada, robusta, sobre 40 temas diferentes ligados à democracia brasileira. 40 artigos publicados, 40 artigos inéditos, para discutir 40 temas de 40 anos da democracia brasileira e depois para contrariar, debater, analisar, contextualizar, complementar estes 40 artigos que já tinham sido publicados na Folha de São Paulo, nós identificamos 40 novas pessoas, num diálogo intergeracional, num diálogo de diversos tempos, onde além da qualidade, outro critério importante foi o da pluralidade.

Desde logo, porque provavelmente se pensarmos nos artigos publicados mais nos anos 80, final dos anos 80 e início dos anos 90, provavelmente uma boa parte dos articulistas seriam homens brancos?

Sim, integralmente verdade. Na imprensa em geral, na imprensa brasileira em particular e na Folha de São Paulo, de forma mais específica, uma coluna de opinião é um espaço de poder. Uma coluna de opinião é um espaço de validação, de legitimização, de canonização, é quase um espaço eletivo que elege sem eleições e nós vimos que ao longo dos primeiros 20, 30 anos da democracia brasileira, tinham acesso a este espaço só algumas pessoas. A estrada de acesso à palavra e à opinião na imprensa brasileira sempre foi uma estrada com várias faixas de rodagem e as velocidades em algumas faixas eram diferentes das outras e algumas faixas de rodagem tinham, na verdade, semáforos e lombadas. O que é que eu quero dizer com isto? Quero dizer que algumas pessoas, às vezes com o código postal errado, com uma cor de pele diferente, ou por terem um outro perfil, não estavam devidamente validadas pela imprensa brasileira, ao ponto de serem convidadas a terem uma opinião válida na imprensa. Então nós fizemos um esforço hercúleo para encontrar alguma diversidade nos primeiros textos que já tinham sido publicados, mas apesar desse esforço, só nos nossos primeiros 40 textos eles eram compostos por homens, 76% de homens, e 85%, como tu mencionaste, são pessoas brancas. Atendendo a isto houve uma necessidade óbvia de contrabalançar, simbolicamente tentar corrigir, de voltar a equilibrar este espaço de opinião e nós fomos, certamente, à procura de pessoas altamente qualificadas, pessoas reconhecidas nas suas áreas, que pudessem falar sobre 40 temas diferentes, mas que fossem mulheres, e utilizando o linguajar estatístico brasileiro fomos à procura de pessoas autodeclaradas pretas, pardas e pessoas indígenas. Então na segunda leva de artigos, os 40 artigos inéditos, 50% deles é composto por mulheres.

Começam o livro com o Sr. Diretas, Ulisses Guimarães, é uma escolha que até temporalmente foge ao que é o grosso do livro, está fora dos 40 anos da democracia. Porquê que escolheram esta pessoa e este artigo para abrir o livro?

Ulisses Guimarães é o Ulisses Guimarães, Ulisses Guimarães é o grande construtor da democracia brasileira, ele liderou o processo de criação de uma nova Carta Constitucional, um processo que foi iniciado em fevereiro de 1987 e foi concluído só em 1988. Aliás, há uma história engraçada sobre o Ulisses Guimarães que é a seguinte, durante os anos de 84 principalmente e antes da eleição indireta do Tancredo Neves no dia 1 de fevereiro de 1985, nos 12 meses de 1984, houve várias manifestações de rua pelo Brasil, nas mais diversas cidades e teve este processo muito orgânico.

Eram as Diretas Já...

As Diretas Já. Ulisses Guimarães liderou algumas destas manifestações públicas, incluindo a do Rio de Janeiro, que aconteceu em abril de 1984, e Tancredo e Ulisses, é uma história quase anedótica, mas muito visual também, os dois grandes líderes da democracia brasileira nos anos 80 dividiram o mesmo palco e à sua frente tinham milhares de cariocas, milhares de brasileiros a advogar pelos fundamentos da democracia, a lutar e a vibrar pelos fundamentos da democracia. E a certa altura, Tancredo Neves olha para o Ulisses Guimarães e diz: 'e agora, já viu a quantidade de gente à nossa frente? Será que vamos conseguir administrar esta multidão?' E Ulisses Guimarães respondeu: 'é exatamente para isso que nós vamos ser eleitos'.

Este livro acaba portanto por ser uma leitura histórica do que foi o Brasil ao longo destes 40 anos. Concordas com Samuel Pessoa quando ele afirma que o maior entrave ao desenvolvimento brasileiro é certamente a baixa qualidade do sistema público de educação?

Sim e não, mas deixa-me fazer um contraponto a isso, que é o seguinte, nós temos 80 pessoas a escrever sobre 40 temas diferentes, ou seja, o livro possibilita várias leituras e várias leituras críticas. É quase como se fosse uma floresta, algumas pessoas entram pela floresta para alguns lugares, saem pelos outros e o caminho entre o A e o B é distinto. Cada pessoa que lê o livro faz uma leitura diferente daquela que eu faço ou daquela que tu farias ou de qualquer outra pessoa faria. Na área da educação é certamente uma conquista, hoje o Brasil tem 10 milhões de pessoas no ensino público superior, a taxa de analfabetismo reduziu-se de 25% para 6% ou 7%, houve uma grande conquista na área da educação certamente, também alavancada pelo sistema de cotas que foi implementado há cerca de 20 anos atrás, tudo isso é verdade, mas existe uma dimensão que não foi contemplada pelo Samuel Pessoa, que tem a ver com a qualificação dos quadros políticos no Brasil, e isso tem eventualmente algum espírito comparativo com Portugal também. O Joaquim Nabuco, que foi um dos grandes artifícios do abolicionismo da escrevatura brasileira, disse no início do século XX, no seu livro A Minha Formação, é o nome do livro, 'agora temos um país eventualmente livre, mas espero nós consigamos criar uma elite política e cultural que esteja à altura da transformação social e estruturante do Brasil'. E hoje, muitas vezes, essa falta de qualificação, continua a ser visível no Brasil, e eventualmente em Portugal, as elites políticas nos dois países não se destacam necessariamente pela sua excelência, capacidade inovadora, atenção à sustentabilidade e verdadeiro espírito cívico, isso eventualmente poderia ser criado utilizando o espírito da tua pergunta, com melhor educação.

O constitucionalista Adilson José Moreira termina o seu texto a dizer que "a Constituição de 1988 abriu um novo momento histórico ao criar mecanismos participativos e inclusivos, resta agora lutarmos para que o consenso republicano que permitiu o seu surgimento seja mantido". A tentativa de golpe de Estado levada a cabo pelo ex- Presidente Bolsonaro não é prova de que esse consenso republicano não existe no Brasil de hoje?

Sim, o Brasil é um país com falta de consenso, mas é um país que também tem alguns consensos. Eu acho que os 40 anos da democracia brasileira mostram que o Brasil tentou modernizar-se mas sem romper com o seu pacto oligárquico e o preço disso foi a repetição cíclica de crises institucionais. Existem vários pontos de oscilação, existem vários pêndulos na democracia brasileira ao longo dos últimos 40 anos, mas existem tamém alguns pontos de contacto e de continuidade. Primeiro, a elite económica brasileira foi preservada, desde 1985 até agora. Aliás, a parcela de riqueza, controlada pelo 1% da população mais rico, não só não caiu, mas manteve-se estável nos últimos 40 anos e a alta concentração no topo cria obstáculos a políticas redistributivas. Os militares é outro exemplo onde o pacto oligárquico brasileiro foi preservado ao longo dos últimos 40 anos. Em 1985, quando Tancredo Neves foi eleito indiretamente pelo Colégio Eleitoral com 460 votos, no dia 1 de fevereiro, isso só aconteceu porque ele conseguiu garantir à cúpula militar que não haveria julgamentos como houve na Argentina, ou seja, a oligarquização também da cúpula militar foi assegurada ao longo dos últimos 40 anos. A nível de parlamentares, nós hoje temos um fenómeno brasileiro que é o chamado Centrão, que é um conjunto de parlamentares e partidos políticos que não correspondem necessariamente a uma certa ideologia ou a um programa partidário específico, mas são elementos neutros que emprestam o seu capital eleitoral e vendem-no e dessa forma: eles controlam parcelas estratégicas do orçamento, dominam a mediação legislativa e operam como um bloco de veto capaz de condicionar qualquer governo. Novamente, a preservação do Centrão e a preservação de elites regionais conservadoras é mais um fenómeno tipicamente brasileiro, neste caso, que se autopreservou durante 40 anos. E depois temos elites corporativas, temos elites policiais, ou seja, o Brasil democratizou o voto, mas ainda não conseguiu democratizar o poder.

No texto A Maldição da Fome, em 98, o antigo presidente José Sarney escreve o seguinte: "A fome não é um problema, é uma indignidade contra o homem, não é uma responsabilidade do indivíduo que não tem o que comer, é uma torpeza da sociedade que se torna incapaz de alimentar quem vai morrer por falta de comida". E termina assim: "Pobre nordeste de um povo andarilho e sofredor, não há justificativa para o Brasil não extirpar a fome que ali se espalha, que a solidariedade substitua a vergonha de vê-lo comendo os espinhos dos catos que alimentam o gado." Rodrigo, só anos mais tarde, com Lula, é que este problema foi encarado de frente?

Eventualmente sim, mas o problema é preservado. Aliás, esse artigo é muito irónico porque foi escrito depois do presidente José Sarney ter exercido as suas funções presidenciais.

E não ter conseguido mudar as coisas ou não ter feito nada de substancial relativamente a este problema?

O Brasil continua a ser um país muito desigual, o 1% da população brasileira responde por entre 20 e 25% da riqueza nacional e ao longo dos últimos 40 anos houve uma curva pontualmente decrescente, benéfica, no primeiro mandato do governo Lula e dos programas sociais que começaram com Fernando Henrique Cardoso e depois foram amplificados no primeiro mandato do governo Lula. Mas se nós analisarmos de uma forma mais estratosférica, de cima para baixo, os movimentos e as oscilações nesse campo, nessa matéria em particular, nós vemos que a riqueza preservada pelo 1% da população, com aquela pequena oscilação que depois foi anulada mais tarde, é que mantém-se um país muito desigual. Hoje o Brasil é o 14º país mais desigual do mundo.

O texto do jornalista Élio Gaspari tem um título que podia ser uma lição, foi fácil entrar na ditadura, difícil foi sair. Rodrigo Tavares, olhas para o mundo hoje, e tu que já nasceste em democracia, percebes que hoje parece estar a ser mais fácil entrar numa ditadura em partes do mundo onde já não colocávamos isso como hipótese?

A resposta é sim, mas eu respondo a isso com duas camadas, a primeira camada é uma camada mais internacional. Os vários partidos e movimentos de extrema direita nos mais diversos países, parecem que seguem a mesma coreografia, seguem o mesmo manual, o mesmo argumento e esse argumento implica: 1) estigmatizar e tornar inimigos, seja minorias, imigrantes, jornalistas, professores, etc; 2) geralmente constroem uma narrativa à volta de uma nação imponente que está prestes a entrar num colapso moral. 3) para tentar travar essa degradação moral da nação é necessário apresentar um outsider, alguém que seja antissistema, que seja um líder forte. 4) as redes sociais são geralmente utilizadas como arma central, porque intensificam indignações, difundem desinformação e depois, mais tarde, quando este colapso e esta insegurança começa a ser implementada, geralmente tentam reescrever e reanalisar e reinterpretar o passado, suavizando ditaduras.

Esta é coreografia que é muitas vezes adotada, seja pelo Vox espanhol, seja pela AFD alemã, seja pelo Fidesz na Hungria, seja pelo PIS da Polónia, seja pela Liga Italiana, seja pelo Chega de Portugal. Agora, respondendo diretamente à tua pergunta, muitos destes critérios, destes fundamentos deste manual internacional da extrema direita, se me perguntassem há cinco ou seis anos se eles poderiam ser devidamente aplicados em Portugal, eu diria que o contexto nacional não seria favorável, eu teria dito há uns anos atrás que isso dificilmente seria reproduzível em Portugal, porque Portugal é o terceiro ou o quarto país mais seguro do mundo. Seria uma narrativa dificilmente implementável em Portugal. Se me dissessem, não, o objetivo da extrema direita a nível internacional será, certamente, ostracizar, marginalizar imigrantes e pessoas estrangeiras a residirem em determinados países e utilizá-los como hacendárias políticas. Eu teria dito há cinco ou seis anos atrás, é difícil de acreditar que isso vai acontecer em Portugal, porque: 1) a contribuição para a segurança social desses estrangeiros, desses residentes estrangeiros é absolutamente fundamental para garantir a perpetuidade do nosso sistema; 2) porque Portugal tem problemas crónicos demográficos, é um dos países mais envelhecidos do mundo, e trazer população estrangeira é fundamental para assegurar o desenvolvimento económico do nosso país; 3) Portugal tem mil anos de experiência de misigenação, Portugal é um país necessariamente, estruturalmente e geneticamente misturado, então não faz sentido condenar imigrantes, além disso é um dos países com uma das maiores diásporas per capita no mundo, mas aqui estamos nós, a ostracizar cidadãos estrangeiros. Eu também diria, com tantos milhões de portugueses vivos, que tiveram experiência real da ditadura portuguesa, que enfrentaram censuras, que tiveram os seus direitos, liberdades e garantias amputadas, que foram penalizados a vários níveis, esperaria eu que estes milhões de portugueses, com uma consciência real daquilo que aconteceu no passado, servissem de travões para o avanço da extrema-direita, mas apesar de A, apesar de B e apesar de C, aqui estamos nós, com uma força da extrema-direita que é a segunda ou terceira com maior capacidade parlamentar na Assembleia da República Portuguesa.

Ricardo Alexandre