"A resposta analógica à ditadura algorítmica." Fonoteca do Porto faz cinco anos e publica livro para se "ler com o ouvido"
Corpo do artigo
As pessoas não param de chegar à Fonoteca Municipal do Porto. Armando Sousa é o guardião dos milhares de discos que lá se encontram. Começou a trabalhar no acervo, antes da abertura do espaço localizado em Campanhã, em 2020.
"Nós começamos a trabalhar com o arquivo quando ainda estavam nas bibliotecas Almeida Garrett. Na altura devem ter sido dois anos só a catalogar", conta à TSF.
O número de discos chega às dezenas de milhares: "Ainda há bocado vieram fazer uma doação. No fim de semana também vieram doar mais uns quantos. Portanto, vão aumentando de 50 em 50 e quando nos apercebemos já estamos com 40 mil, o que não é o caso. Ainda vamos nos 35 mil. O grosso das doações provém das ofertas que foram feitas pela Rádio Renascença inicialmente e depois pela Radiodifusão Portuguesa, as secções norte de ambas as emissoras. Só aí, calculo cerca de 17 mil de cada um a dessas doações, portanto, 34 mil. Só aí já tens praticamente tudo da coleção. Depois foram sendo incluídas algumas doações mais pequenas, privadas."
É em cerca de 20 metros quadrados, divididos em dois pisos, que os 35 mil vinis estão guardados.
"É uma coleção com 50 anos, onde há muita coisa. Há elementos que não passaram e que continuam sem passar para as plataformas digitais. Os discos, por exemplo, da Orfeu e de muitas outras editoras, como a Alvorada e tudo o que é Rádio Triunfo e Arnaldo Trindade, digamos assim, são coleções que nem sempre estão acessíveis nas plataformas de streaming", explica.
Armando Sousa considera que é importante conhecer o que está na coleção, mas não só: "É muito importante sempre pensar que isto é um reflexo daquilo que se ouvia na rádio e há umas coisas que estão e outras que não estão e tentamos sempre colocar essa questão, porque é que estas estão e porque é que outras não. O caso concreto da música das ex-colónias em que Cabo Verde está mais presente do que nenhuma delas, e não é por acaso que isso acontece. Tem a ver com a relação dessa colónia em particular com Portugal e há mornas cantadas em português. Mas depois a questão que colocamos é: porque é que há mornas e não há funaná? E essas questões são sempre relevantes e é sempre bom questionar isso e colocar em perspetiva. É muito bom conhecer o que está na Fonoteca, mas também é importante conhecer o que não está."
O funaná era um género musical proibido pela ditadura portuguesa. À procura dessas e de outras respostas, Nuno Rodrigues, coordenador de programação da Fonoteca Municipal do Porto, criou iniciativas regulares em conjunto com Armando Sousa.
"Todas as quartas-feiras, o Armando reúne em seu torno dezenas de pessoas para a Hora de Ponta. Todos os meses recebemos uma figura destacada de alguma área da sociedade que vem aqui escolher um disco e falar-nos dele na Escuta Ativa. Convidamos coletivos artísticos a vir cá fazer residências e trabalhar a partir do acervo, como é o caso da Favela Discos e agora numa colaboração com a Lovers&Lollypops chamada Nova Matéria, também com artistas de várias áreas, desde a Mynda Guevara, que é uma rapper, até ao Vasco Lé, que é um artista cá do Porto, vir precisamente conhecer o acervo, investigar e a partir dele criar", descreve.
O segredo para o crescente sucesso 5 anos depois da abertura da Fonoteca, acredita Nuno Rodrigues, passa por aquilo que as máquinas ainda não conseguem oferecer: "É precisamente a condução humana e personalizada das coisas. No caso da Escuta Ativa, em que muitas vezes estamos a ouvir um só disco, esta escuta conduzida, personalizada e personificada em alguém que não é um algoritmo a ditar qual é o próximo passo e o que é que vai escutar a seguir, acho que é o verdadeiro sucesso das nossas iniciativas e é por isso que as pessoas nos procuram, por causa deste elemento humano, personalizável e falível, muitas vezes. Acho muito interessante nós sermos a resposta analógica à ditadura algorítmica."
O público divide-se. Armando Sousa recebe diariamente pessoas que se relacionam de forma diferente com a musica.
"As gerações mais jovens, aquilo que eu associo mais à geração Z, vem aqui à procura de uma experiência nova, porque não sabem o que é que é ouvir um disco e ficam a olhar para o disco e perguntam: "É possível acontecer isto?" Não sabem. Depois há a geração que é aquela que vem com uma ideia de nostalgia de uma coisa que nem viveram muito bem, porque só ouviram os discos em casa. E depois há aquela geração dos mais velhos que não querem ouvir nada", caracteriza.
Todas elas se comportam de forma diferente, mas também entre si: "É muito divertido, porque essa geração não quer ouvir nada ou se vem ouvir, ouve uma música que já conhece e está tudo bem. Vem só ver que existe, ver que é possível, que é mesmo real. Portanto, há relações muito diferentes e depois é muito divertido ver como é que se estabelecem depois as relações desses diferentes tipos de pessoas com o consumo da música. Agora, se entras ali dentro, estava ali o Robert a ouvir um disco enquanto estava a trabalhar. Foi e escolheu. E a questão do risco. Ele já veio aqui várias vezes, escolhe um disco aleatoriamente, põe-se a ouvir e está a fazer as suas coisas. Outras pessoas veem, se calhar são mais tímidas e esperam que lhe recomendemos alguma coisa. Há públicos muito diferentes. Depois há os encontros românticos, que é um clássico aqui. É mesmo muito bonito, porque estás ali a partilhar uma coisa que é música, que é muito fácil, gera-se um momento de silêncio, porque estás a ouvir a música, e há muita coisa a acontecer ali que tu não estás a ouvir nem a ver. Aqui, eu nunca vi nenhuma rotura, mas amores de certeza que já surgiram muitos."
Em cinco anos de atividade, muito se passou na Fonoteca Municipal do Porto. Para celebrar o aniversário é lançado esta quinta-feira um livro com alguns textos que já estão disponíveis no site da Fonoteca. Outros são inéditos.
"Eu acho que nós tivemos a felicidade de ter autores de áreas muito distintas a escrever. Tivemos a felicidade de poder contar com entrevistas muito interessantes, portanto, nós temos uma entrevista com a Lena D'Água, por exemplo, ou com o Cândido Lima, que é um destacado compositor portuense, que fez connosco uma série de programas cá. Acho que estas duas entrevistas são muito interessantes. Temos textos que recuperam momentos mais esquecidos, se calhar, da música portuguesa. Temos um texto muito interessante dos Aqui d'El-Rock, por exemplo, uma perspetiva desse arranque do punk em Portugal. Temos textos sobre a música erudita portuguesa do Pedro Junqueira Maia, por exemplo, em que nos faz um percurso sobre alguns dos grandes compositores do século XX. Temos fado, temos música africana, temos Rosa Ramalho, temos adufes", adianta Nuno Rodrigues.
Muito para ver e principalmente escutar na publicação “Ler com o ouvido: 5 anos de Fonoteca Municipal do Porto”. O livro não tem qualquer fim lucrativo e está disponível de forma gratuita na Fonoteca.