Quando o futebol não alimenta: "Não pode ser que não paguem salários, mudem de nome e possam jogar como se nada fosse"
Em 2019, Francisco Estanga fez parte de um grupo de futebolistas que viajou da Argentina para Trás-os-Montes com a promessa de um futuro no GD Mirandês. À TSF, o agora jogador do GD Bragança conta que não recebeu nenhum salário no clube de Miranda do Douro, onde viveu uma situação precária durante a altura de pandemia
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Através de uma academia de futebol em La Plata, na província de Buenos Aires, Francisco Estanga e mais de uma dezena de futebolistas receberam, em 2019, uma proposta para jogar na Divisão de Honra da AF Bragança. O destino era o GD Mirandês, que prometeu um salário, casa e alimentação aos argentinos que procuravam lançar-se no futebol europeu.
Chegados a Trás-os-Montes, o lateral direito argentino e restantes companheiros assinaram um contrato profissional com o clube de Miranda do Douro. Contudo, foram impedidos de jogar por seis meses, graças à falta de inscrição nas provas oficiais. Durante esse tempo, não receberam qualquer pagamento da parte do clube, que lhes concedeu apenas uma casa e alimentação "que às vezes não chegava para todos". "Era um bocadinho para cada um", relata Francisco Estanga à TSF.
Face às dificuldades, alguns dos jogadores albicelestes decidiram regressar a casa. Outros, como Francisco Estanga e os companheiros Diego Parini e Nahuel Machado, atualmente no GD Bragança, optaram por ficar em Portugal, até que foram inscritos no campeonato pelo GD Mirandês, a meio da temporada, em janeiro de 2020. No entanto, poucas semanas se passaram até que a pandemia de Covid-19 obrigou a uma paragem das competições desportivas em todo o país, deixando o trio de argentinos novamente sem atividade. Ainda sem salário da parte do clube, a treinar "pela cidade" e sem perspetivas de futuro, os sul-americanos recorreram ao Sindicato dos Jogadores de Futebol Profissional. Prontamente, a organização ofereceu produtos como "champô, comida, massa... tudo para limpar a casa", além de assistência jurídica para reclamar os ordenados devidos pelo GD Mirandês.
Finda a época desportiva de 2019/20 e o contrato que ligava os argentinos a Miranda do Douro, os mesmos seguiram caminhos diferentes noutros clubes da região de Trás-os-Montes. O processo jurídico, contudo, só teve conclusão em julho de 2023, quando o Tribunal do Trabalho de Bragança condenou o GD Mirandês a pagar uma indemnização de 130 mil euros e oito meses de salários em atraso a oito jogadores argentinos, incluindo Francisco Estanga. Em maio de 2024, o Tribunal da Relação de Guimarães confirmou a condenação e agravou a indemnização a pagar em 50 mil euros por danos não-patrimoniais. Caso resolvido, pensou-se. Mas não.
No mesmo ano, o GD Mirandês, sem capacidade para saldar as dívidas em causa, cessou a atividade enquanto clube de futebol. De seguida, foi inscrito na AF Bragança um novo clube sob o nome GDM 1968, que hoje compete, tal como o antigo GD Mirandês fazia, na Divisão de Honra, único escalão da distrital. Tal "finta" permitiu que não fosse pago, até agora, qualquer valor aos jogadores lesados, que continuam em tribunal, seis anos depois, à espera de serem recompensados. "Temos que continuar a insistir. Não pode ser que eles não paguem um ano inteiro, mudem de nome e possam jogar como se não fosse nada", protesta Francisco Estanga.
Atualmente, o jogador argentino tem uma vida consolidada ao serviço do GD Bragança, clube que milita no Campeonato de Portugal e que enfrenta o SC Braga, este sábado, na 3.ª eliminatória da Taça de Portugal. No emblema que lhe deu a mão, os salários estão em dia, mas o futebol não chega para garantir estabilidade: "Estou a trabalhar à noite. Trabalho num restaurante, o Borralho. Estão sempre lá para mim, para o que for preciso."
Tal como os colegas de equipa Diego Parini e Nahuel Machado, já não pensa em voltar à Argentina, até porque há novos laços que o prendem a Trás-os-Montes. "Penso em ficar aqui em Portugal. Tenho cá a minha namorada e a família dela. Isso dá-nos apoio. Nós viemos sozinhos e ter alguém é sempre bom", remata.
Aos 25 anos, Francisco Estanga olha para o jogo com o SC Braga como uma oportunidade de conviver com Rodrigo Zalazar, médio uruguaio dos arsenalistas. Acredita que a sua vida "não deve ter sido fácil", por isso, identifica-se com o percurso do adversário, para quem olha como "uma referência". No fim do jogo, sonha em trocar camisolas e até vai mais longe: "Se tiver umas chuteiras número 43, também aceito", brinca o argentino, com bom-humor.
A TSF tentou obter uma reação dos responsáveis do GD Mirandês. Até agora, não obteve qualquer resposta.