"Vim do ativismo, vim da Maré. Conhecer as minhas raízes é o que me faz forte aqui"
Ministra da Igualdade Racial do Brasil, eleita uma das mulheres do ano pela revista Time, irmã da vereadora assassinada Marielle Franco, Anielle veio na comitiva de Lula a Portugal e deu uma entrevista à TSF.
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Ser ministra da Igualdade Racial no Brasil, e quase na mesma altura, ter sido eleita uma das mulheres do ano pela revista Time é algo muito valioso para si, Ministra Anielle Franco?
Sim, com certeza. Acho que são duas realizações importantes que não só para mim, enquanto pessoa profissional, mas também para trazer a nossa representatividade de mulher negra com a raiz de onde nós viemos. São duas coisas em paralelo. Primeiro, esse convite e estar nesse lugar onde, de facto, a gente possa pensar passos concretos de melhoria para a população negra e, ao mesmo tempo, também ser eleita uma das mulheres da Time e nos trazer para esse lugar internacional, mas também do reconhecimento de um trabalho que tem sido feito nesses últimos anos.
O convite do presidente Lula foi algo que a deixou surpreendida? Ou com o trabalho que já vinha fazendo como ativista e depois da sua irmã ter sido assassinada, esse tipo de trabalho já a colocava num patamar de ministeriável?
Patamar ministeriável é bom (risos!). Muitas pessoas falavam nessa possibilidade, mas eu confesso que mesmo fazendo muito trabalho, tendo muito trabalho à frente dessa pauta comum das lideranças, não tinha passado na minha cabeça ser ministra. Quando a transição chegou, porque nós passámos pela equipa de transição, foi quando começámos a pensar que podia sim realizar-se.
E aceitou logo? Ou não teve possibilidade de dizer que não?
Não, eu... bem, ambas as coisas. Eu aceitei logo, mas também não tive oportunidade de dizer que não. Quando o convite chegou foi: você está intimada a assumir essa pasta e eu aceitei.
Foi diretamente o presidente Lula?
Sim, sim, diretamente presidente Lula.
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Como é que se luta pela igualdade para os negros, para os mulatos brasileiros, para as populações indígenas, para todos os que compõem mais de 50% da população? Como é que se faz essa luta no dia-a-dia?
Acho que primeiro, antes de tudo, é falar da importância de termos de volta um governo que, de facto, coloca as maiorias que são chamadas de minoria nesse lugar de destaque e da importância desses tópicos. Depois, eu acho que é uma luta transversal e por isso nós temos o Ministério dos Povos Indígenas, temos o Ministério da Cultura, temos Desporto, Educação e também Igualdade Racial. Nós somos 56% da população brasileira. E a importância de lutarmos para que esse povo venha a ter situações concretas e legítimas para essas lutas que vem de tantos anos, é um passo de muita responsabilidade do nosso governo. Mas a gente não faz sozinha. Por isso, eu sempre gosto de frisar muito que somos transversais, certo? Todos os assuntos perpassam pela comunidade negra brasileira.
Presumo que na sua atividade diária, na formulação de políticas públicas, que haja necessidade, por exemplo, de articular tudo muito com o Ministério da Educação?
Sim, com certeza. A gente tem uma lei que passa pela história da cultura africana, é uma lei, por exemplo, que traz representatividade para o povo negro. É uma lei que a gente não consegue fiscalizar e não é implementada ainda. Então é por isso que a gente vai muito no MEC (Ministério da Educação). Então, a Lei de Quotas, que é uma lei de uma política pública de reparação histórica no país, também falamos com o MEC, e por aí vai. Outros assuntos, como um dos problemas que a gente enfrenta muito no Brasil r que é o genocídio da população preta, não é? Então, junto com o Ministério da Justiça, a gente também perpassa. Então, estamos sempre em diálogo com outros ministérios para comprovarmos da importância da lei em cada assunto.
Não tem o Brasil um problema de racismo estrutural?
Temos, temos. Problemas de racismo estrutural, institucional, racismo pessoal, nesses últimos anos, sendo mais evidenciado por conta das comunicações, do acesso à internet. Mas é algo que vem de muito antes, certo? E como diz uma grande intelectual negra brasileira, Cida Bento (nota: Maria Aparecida da Silva Bento, é uma psicóloga e ativista brasileira, diretora do Centro de Estudos das Relações de Trabalho e Desigualdades, que atua na redução das desigualdades raciais e de género no ambiente de trabalho), a gente no Brasil, para além do racismo estrutural e institucional, tem também um pacto da branquitude, onde a gente não consegue aceder e adentrar espaços de poder e protagonismo. E eu acho que também é um pouco do nosso papel trazer à luz esses factos, letrar racialmente esse país e outras instâncias e fazer com que pessoas negras consigam ser protagonistas das suas histórias. E infelizmente, esse combate ao racismo, as ações de políticas de igualdade racial não são coisas que mudaremos do dia para noite, talvez nem em quatro anos. Mas precisamos trazer luz a esses factos e também cada vez mais divulgarmos literacia racial; assim, conseguiremos diminuir o racismo. Exemplo: quando a gente afirma que temos pessoas negras capazes de adentrar espaços de poder e decisão de qualquer área e um pouco de mostrar que para além desse racismo que existe, nós temos políticas de ações afirmativas que deram certo e que seguem dando certo. Então, temos que fortalecer essas políticas e tentar combater diariamente. E sim, é uma via de mão dupla, é um pouquinho de cada vez, mas é a partir daí que a gente consegue. Eu espero que a gente consiga ter dias melhores para nossa população.
Tem consciência de que faz parte de um governo que ainda é muito pouco igualitário? Apesar de tudo, tem muito poucos não brancos...
Sim, eu acho que há um avanço dentro desse governo do presidente Lula. Agora, temos pela primeira vez, por exemplo, 11 mulheres à frente de pastas importantes. Aí se a gente parar para pensar, nós temos 13 mulheres, porque a presidenta da Caixa e do Banco do Brasil também são mulheres. Temos agora um leque de cinco ministras e ministros negros e mais uma indígena. Então eu acho que a gente tem um caminho e um exemplo a ser dado por esse governo, de onde a gente se posiciona na importância de género e raça.
Tem um caminho, mas também tem metas? Ou seja, o presidente definiu metas para isso? Onde é que pretendem chegar em termos de igualdade?
Primeiro, trazer à luz esse posicionamento, dar voz ao povo, negros, indígenas e mulheres. Segundo, também paralelo a isso, trazer um pouco das metas do nosso ministério. Tem muito orgulho de entrar nesse governo. E para que possamos fortalecer ações afirmativas, para que possamos cada vez mais combater esse racismo com muita seriedade, para que possamos, junto com outros ministros, trazer educação, cultura, desporto que é tão importante para o nosso país; só assim o nosso povo vai ter a liberdade de poder chegar a lugares tão importantes.
A sua irmã, vereadora Marielle Franco, foi assassinada já faz esta segunda-feira, 1867 dias. Ainda não se sabe quem mandou matar e porquê. Não lhe vou perguntar - já deve ter respondido isto milhares de vezes - sobre o impacto que isso certamente causou na sua vida. Mas pergunto se a sua luta ainda é uma luta por justiça?
Com certeza, com certeza. Acho que todos os dias precisamos lembrar porque nós estamos aqui. Eu acho que a luta por justiça, não só racial, mas pela Mari, por tudo o que tem acontecido no Brasil. Essa luta é incansável e como muito bem falou, são mais de 1800 dias de espera que a gente ainda não sabe quem mandou matar a minha irmã. A gente desconfia e tem nossas as nossas definições do porquê a Marielle, mas... quem mandou matar, quem planeou esse crime tão cruel e bárbaro? Ainda não sabemos. Então é por isso que é tão importante que, cada vez mais, falemos sobre violência política, falemos da importância de proteger as nossas mulheres e mulheres negras nesse país e seguir lutando por justiça.
Por um lado, não fica numa posição um pouco difícil na luta pela justiça desse caso particular? Ou seja, correndo o risco da opinião pública dizer "ela está a utilizar meios do governo para tentar chegar à Justiça num caso que é particular, que é de um familiar"?
Não, acho que não. Eu lutaria por justiça em qualquer lugar que eu estivesse e até porque não é da minha alçada a justiça em si. Há o Ministério da Justiça e há a Polícia Federal. Então, tem toda uma organização por trás desse crime da Mari que vai tocando. O nosso papel é dar visibilidade a factos e a importância de ter uma família que luta por justiça, de ter um comité Justiça por Marielle Anderson, então eu acho que isso é independente do facto de eu ser agora ministra. Acho que é óbvio que, como eu falo muito no meu doutoramento, é difícil separar o estudo da pessoa que escreve o estudo. Então, essa experiência perpassa pela minha vida, pela minha trajetória, tanto académica quanto profissional. Mas, ao mesmo tempo, eu entendo isso e reconheço o meu limite. A Marielle era uma mulher negra da favela que foi assassinada. Então por que não lutar dentro do Ministério da Igualdade Racial, por Justiça para mulheres negras? Esse é um exemplo clássico. Foi uma brutalidade que aconteceu ali, isso é notório, todo o país, todo o mundo sabe. E, por outro lado, também cobrar justiça não só do governo que tem que se posicionar; e já se posicionou, no dia 14 de março, o presidente Lula fez um discurso, mas também do Ministério da Justiça e de todos os outros órgãos competentes.
Como é que agora, estando nas funções em que está, como é que vê o problema nas comunidades, sei que é do Complexo da Maré na zona Norte do Rio, como é que vê aquela realidade? Quais acha que são as coisas mais urgentes que uma ministra deve fazer?
A importância de eu saber entender o que a ministra tem que fazer, porque eu vim de movimentos sociais, vim do ativismo, vim da Maré, é saber as minhas raízes e é o que me faz forte aqui. É entender o problema na base e bem lá no centro da situação. Foi muito difícil para mim ter prioridades. Então, elenquei cinco prioridades: desde logo a fome. Entre a população brasileira, 70% das pessoas que passam fome são negras. Temos o enfrentamento ao genocídio do povo preto. Como eu falei, só no ano passado foram mais de 1000 pessoas assassinadas por balas perdidas ou em operações dentro de comunidades, favelas, periferias. E a educação. Porque se a gente não fortalecer educação pública, principalmente, que a maior parte da população que acede a educação pública são pessoas negras, não vamos conseguir caminhar para frente nesse país. A saúde também. É ótimo que temos uma ministra da saúde pela primeira vez, uma mulher que tem tido esse olhar carinhoso para a população negra, que é uma população que tem sofrido excessivamente, mas também com um cuidado. E por último, as terras, que desde sempre é um problema do país. Então terra de quilombolas, onde a gente tem aí pautado junto com outros ministérios, essas cinco prioridades. Quando nós começámos a estruturar o ministério, começámos também a pensar em cada emergência, em cada emergência que temos para a população negra e essas emergências perpassam por esses cinco pontos que eu elenquei.
Presumo que atividade diária seja um constante pegar no telefone e ligar aos outros ministros, não é? Correndo o risco, de dizerem do outro lado: "lá está esta chata". Não?
Ainda não passei por isso. Acho que todos os ministros nos têm recebido com muito carinho e atenção. Conseguimos fazer já bastantes reuniões. O problema inicial é de agenda, porque assim como nós estamos montando o ministério, eles também estão. Muitos não estão pegando o ministério do zero como nós pegamos, mas a gente sim. Nas comunidades, o bom de entendermos quem somos e de onde viemos é que sempre falamos com bastante carinho e empatia, do tipo "olha, eu vou voltar". É necessário que a gente dê continuidade ao trabalhar. E, paralelo a isso, termos uma equipa também muito competente, que me ajuda e que está ali também no dia-a-dia, montando o ministério, 'checando' com os ministros com quem já tivemos reuniões e trabalhando e dando continuidade. Eu acho que isso é primordial. Ainda não recebi nenhum rótulo de "chata" e espero que não receba até ao final, porque a gente sabe a importância de cuidar desse povo e vamos continuar a insistir incansavelmente.
Mas tem consciência de que para alguns dos outros ministros, nomeadamente nas áreas da segurança. da sua parte, há quase um impulso para lhes exigir mudanças, que para eles serão estruturais?
Sim, com certeza. Tenho plena consciência disso. Eu acho que é por isso que faz esse governo tão grandioso. Porque a gente tem ministros do nosso lado que estão construindo fielmente com essa pauta, entendendo porque no dia que o presidente Lula tomou posse, que sobe a rampa com aquela representatividade inteira, eles viram que no próprio discurso do presidente ele frisava direitos humanos, mulheres, igualdade racial, direitos humanos, mulheres, igualdade racial. Então eles têm plena noção e consciência da importância de trabalhar em conjunto, porque se a luta não for coletiva, ela não faz sentido. E é um pouco disso que a gente tem tentado passar para esses ministros também, para o país inteiro como um todo.
Que práticas portuguesas ou internacionais sente que podem ser úteis para a sua atuação enquanto ministra?
Sim, hoje temos algumas reuniões, vai reunir para além dos movimentos como eu falei e coletivos, vamos encontrar alguns parlamentares, mas também com a ministra de Assuntos Parlamentares. E tem alguns pontos ali que a gente quer primeiro falar da nossa experiência, mas também trazer um pouco de como a experiência que ela tem tido aqui serve para a gente, como por exemplo, esse plano nacional, que tem várias vertentes importantes, seja para a educação, seja para o desporto. Portugal tem um observatório que tem uma parceria com a Universidade Nova de Lisboa. Então, a nossa ideia também, é replicar esse observatório com alguma universidade primordialmente e historicamente negra, falando, para que a gente possa fazer esse trabalho conjunto, já que temos tantos brasileiros também que vivem aqui e relatam experiências tanto de xenofobia quanto de racismo.
Vai dar conta dessa preocupação às autoridades portuguesas também?
Sim, sim. Vamos colocar-nos à disposição para construir um combate ao racismo e xenofobia. Vamos pensar nesse acordo que pode ser tanto aqui em Portugal quanto lá. Temos muitas comunidades e muitas pessoas brasileiras que vivem aqui, principalmente por conta da língua quando querem sair do país. E eu acho que colocar o governo federal à frente dessa luta também em conjunto - tanto o governo de Portugal quanto o brasileiro -, eu acho que vai ser primordial. E a gente espera, a partir dessa reunião com a ministra, poder firmar esse acordo e cada vez mais construirmos juntos.
De alguma forma, sente que entre a comunidade brasileira que vive em Portugal se sente, são aqueles que são negros, os que se sentem mais discriminados?
Sim, são os que são negros que se sentem mais discriminados, que têm procurado a gente também. Então, acho que é um pouco por aí que queremos ouvi-los, entender qual é a posição do governo de Portugal e a partir daí também somarmos com eles para esse combate.