Em Moçambique "nunca houve guerras de drogas porque há quem controle o tráfico a partir da presidência"

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É um dos grandes especialistas em Moçambique no mundo anglófono. Joseph Hanlon acaba de publicar um livro que questiona o modelo de desenvolvimento do país, a corrupção e os tráficos de influências e outros
Joseph Hanlon, 84 anos, jornalista, cientista social e professor sénior de Políticas e Práticas de Desenvolvimento na Open University, em Milton Keynes, no Reino Unido. Nascido nos Estados Unidos, mudou-se para a Grã-Bretanha em 1971. Tem como áreas de interesse Moçambique; ajuda internacional e desenvolvimento e a resolução de guerras civis.
Viveu em Moçambique durante largos períodos da sua vida profissional e é uma das pessoas mais bem informadas no mundo anglófono sobre os assuntos atuais e a história do país nas últimas décadas.
É doutorado em física de altas energias pela Universidade Tufts. Antes de se mudar para Moçambique e se especializar nos problemas dos países em desenvolvimento, foi editor da Computerworld e editor de política tecnológica da New Scientist. Grande entrevista na TSF, ao programa O Estado do Sítio.
Porque é que diz que Moçambique é um Estado recolonizado, como reza o título do seu livro Moçambique recolonizado através da corrupção: como o FMI criou um estado oligárquico?
Após o fim da Guerra Fria, o grupo das sete nações industrializadas realizou duas reuniões nas quais analisou como assumir o controlo dos antigos países da União Soviética. E impôs uma política chamada terapia de choque, que deveria transformar rapidamente os comunistas em capitalistas. O que isso fez foi criar oligarcas em toda a antiga União Soviética. Aquilo que aconteceu em Moçambique foi o mesmo, pois o FMI e o Banco Mundial impuseram essa mesma política ao pais. E o efeito foi a criação de um Estado oligárquico. O que fizeram em particular em Moçambique foi forçar a privatização de milhares de empresas. Ironicamente, muitas dessas empresas não não eram estatais, ainda eram privadas, mas estavam numa situação de falência. Portanto, o Estado teve primeiro de as nacionalizar para as poder privatizar. Ok, a seguir, parte dessa privatização foi um processo de privatização específica dos bancos. Na altura, havia dois bancos estatais. Um era o Banco Popular de Desenvolvimento, que era realmente lucrativo, era basicamente o banco da população rural, lucrativo e bem gerido. O outro era o Banco Comercial de Moçambique, que tinha alguns problemas.
O banco central disse que o verdadeiro problema era que nenhum desses bancos estava informatizado. Lembre-se, estamos em 1995. Ninguém, a não ser criminosos, aceitaria isso se fossem apenas sistemas em papel, o que iria acontecer é que os bancos seriam saqueados. Por isso, pediram... por favor, dêem-nos tempo para informatizar esses sistemas e, depois, nós entregaremos os bancos a empresas privadas. Bem, o FMI e o Banco Mundial disseram: não, não vamos permitir que façam isso. É melhor ter um banco privado corrupto do que um banco estatal bem-sucedido. Eles têm de ser privados. E foi isso que aconteceu, os bancos também foram privatizados.
É por isso que diz que o comportamento do FMI e dos doadores foi escandaloso e inacreditável?
Sim. Quero dizer, na reunião crucial em que isso foi imposto, o representante do Banco Mundial em Washington para Moçambique veio a Moçambique com a estratégia de assistência ao país escrita, e ela tinha várias condições necessárias, que é uma frase que o Banco Mundial nunca usou antes nem depois. E as duas condições necessárias principais eram que 10 000 mulheres caixas fossem demitidas e que os dois bancos fossem privatizados quase imediatamente. E isso foi apresentado numa reunião de ministros sentados à volta da mesa na sede do Banco Mundial em Moçambique. E o ministro disse: «Estas são exigências loucas, não podemos fazer isso». E a representante Phyllis Pomerant disse: «Bem, sim, vocês têm uma escolha, podem dizer não. Mas, claro, se disserem não, então vamos suspender toda a ajuda a Moçambique, não apenas a nossa, mas os outros doadores também vão suspender a sua ajuda, e o vosso povo vai passar fome". Portanto, podem aceitar.podem rejeitar isto, mas o vosso povo vai passar fome. E acho que isso é realmente uma arma apontada à cabeça dos moçambicanos. Quer dizer, eles não tinham escolha. E assim, através da privatização dos bancos, está-se a criar um Estado criminoso num Estado oligárquico.
Lembra-se quem era essa representante do Banco Mundial?
Sim, o nome dela é Phyllis Pomerant.
Phyllis Pomerant foi Country Director para Zâmbia e Moçambique (1994-2000)... é uma académica e profissional de desenvolvimento internacional norte-americana que se especializou em políticas de ajuda externa, desenvolvimento económico e governação pública. Actualmente é Professora Emérita na Sanford School of Public Policy da Duke University, afiliada ao Duke Center for International Development.
A TSF procurou uma reação junto da académica norte-americana, argumentando que tínhamos uma entrevista com alguém que era muito crítico da atuação dela em Moçambique ao serviço do Banco Mundial. Recebemos estas linhas na resposta, também por correio eletrónico:
"Agora estou reformada e não tenho qualquer envolvimento com Moçambique desde o início deste século. Além disso, o Banco Mundial trabalha em equipa, e havia muitos economistas e especialistas financeiros trabalhando em vários aspectos da reforma. Nenhuma decisão é tomada por uma única pessoa, mas sim através de um processo de diálogo tanto dentro do Banco quanto com autoridades governamentais, outros doadores e a sociedade civil. No final, é o governo que decide quais as reformas serão implementadas. Às vezes, os governos seguem as recomendações do Banco; outras vezes, não. Quem pensa que uma única pessoa é responsável por uma política específica - boa ou ruim - não entende realmente o processo. Já se passaram vinte e cinco anos desde o meu breve período de atuação em Moçambique. Certamente, há políticas e desenvolvimentos mais recentes nos quais devemos nos concentrar."
Voltemos a Joseph Hanlon:
Então, foi o início do processo, que, ao ser levado por diante, permite afirmar que o país foi de alguma forma recolonizado por meio da corrupção. Bem, essa é a parte da corrupção e a parte da oligarquia. Existem várias etapas para isso. Porque o que acontece é que, uma vez criado o poder oligárquico, várias coisas são feitas em nome do mercado livre, o que significa que os oligarcas sentem que podem realizar ações que, em outros países, seriam consideradas corruptas ou ilegais. Por exemplo, depois de o Banco Popular de Desenvolvimento ter sido nacionalizado, privatizado e, como previsto, saqueado por criminosos, os bons do banco, do banco central, decidiram finalmente fazer algo a esse respeito. Era uma espécie de última oportunidade. Assim, nomearam António Siba Siba Macuácua, chefe da supervisão bancária do banco central, para tentar limpar o Banco Austral, que tinha sido entregue; isto é, depois de ter sido saqueado, os vigaristas simplesmente devolveram-no ao Estado. Então, Siba-Siba começou a publicar as listas de pessoas importantes no governo e no partido que tinham contraído empréstimos dos bancos que não iriam ser reembolsados. A resposta foi ser atirado pela escada do edifício de 15 andares do banco. Literalmente, fisicamente atirado. Ele era um homem alto e forte. Foi assassinado em 2001.
Então, trouxeram os sul-africanos para fazer um exame forense imediatamente depois, e eles disseram que as evidências das pegadas e poeira e assim por diante, umas tretas, na verdade ele foi atirado do topo numa área muito empoeirada, mostraram que ele resistiu tanto que foram necessárias três pessoas para atirá-lo por cima da parede da escadaria. Quando houve uma investigação e um juiz realmente nomeou o homem que ele disse ter ordenado esses assassinatos, foi tomada a decisão de não o processar. E, uma vez tomada a decisão de não processar, os oligarcas perceberam que podiam fazer o que quisessem.
Ao mesmo tempo, descobriu-se que Moçambique se tinha tornado um importante centro de trânsito de heroína. As drogas vinham do Afeganistão por barco, eram transportadas através de Moçambique em carros e depois levadas para a África do Sul, onde eram enviadas para a Europa. O que aconteceu foi que as pessoas envolvidas no combate às drogas sabiam disso, os embaixadores sabiam disso e ninguém disse nada. Publiquei artigos sobre isso e, basicamente, eles negaram que isso estivesse a acontecer. Na altura, era gerido pela Presidência, ou seja, ao mais alto nível. O que acontece é que, se nos é permitido traficar drogas ao mais alto nível, a partir do topo, sentimos que isso faz parte do mercado livre.
Então, dizemos: «Está bem, o FMI e o Banco Mundial criaram um sistema em que podemos traficar drogas e matar pessoas como parte do mercado livre». E isso teve o efeito de corromper totalmente o Estado.
Estamos a falar de qual presidência, de que período?
Bem, pelo que sabemos, foi no período de Chissano que isso foi descoberto pela primeira vez, mas, pelo que sabemos, não é necessariamente gerido pelo presidente, tenho de dizer isso, mas através da Presidência, pelas pessoas que estão no gabinete do presidente, ao mais alto nível.
Essa é uma das razões pelas quais em Moçambique nunca houve guerras de drogas, porque há várias pessoas que controlam o tráfico de drogas e elas são organizadas por alguém na presidência para garantir que cada uma receba uma parte e assim por diante. Portanto, não há guerras de drogas. O que acontece então é que isso cria um clima em que, como parte do que agora é definido como mercado livre, você pode fazer o que quiser.
Isso cria um clima de corrupção. Agora, o passo final disso é a parte da recolonização, porque até agora, o FMI e o Banco Mundial criaram um conjunto de oligarcas, um conjunto de pessoas corruptas. Mas o que acontece então é que se descobre recursos, tanto no norte em Cabo Delgado, mas também em Tete e noutros lugares, e esses recursos são importantes para países estrangeiros, para empresas estrangeiras.
Assim, os oligarcas tornam-se os intermediários entre Moçambique e estas empresas estrangeiras que ganham o controlo dos recursos. É uma forma de colonização por empresas estrangeiras, que é exatamente a forma original de colonização. Quero dizer, se voltarmos à Companhia Britânica das Índias Orientais e assim por diante, mas também para Moçambique, Moçambique foi originalmente colonizado por empresas privadas, o caso da Companhia de Moçambique, a Companhia do Niassa, e isso foi no início do século XX. Portanto, este tipo de colonização corporativa já existiu antes em Moçambique. A diferença aqui é que as pessoas que são os administradores coloniais são agora moçambicanos.
Agora são os oligarcas, e eles controlam a terra. Por exemplo, se olharmos para as minas de rubis, que são controladas pelo general Pachinuapa, que até muito recentemente era membro da Comissão Política, mas também tinha sido general na Guerra de Libertação. Ele, devido à sua posição, conseguiu obter os direitos sobre grandes extensões de terra em Cabo Delgado, onde descobriu rubis.
Raimundo Domingos Pachinuapa é um antigo combatente da luta de libertação de FRELIMO em Moçambique contra o regime colonial português, natural de Cabo Delgado; ocupa uma posição de relevo no partido FRELIMO, sendo membro da Comissão Política do partido. Representa uma geração dos combatentes da independência em Moçambique que continuaram na política e na economia pós-independência. Um estudo do Centro de Integridade Pública (CIP) mostrou que a sua empresa Mwiriti Mining Limitada, da qual Pachinuapa detém 60 %, possui um número significativo de concessões mineiras na província de Cabo Delgado - 7% das concessões naquela província. Além disso, Pachinuapa foi apontado como ligado à empresa Montepuez Ruby Mining (MRM), que explora rubis em Montepuez, tendo sido descrito como uma "PEP - Politically Exposed Person" , pessoa publicamente exposta. Estas ligações levaram a críticas sobre potenciais conflitos de interesse entre o cargo político/militar e os negócios privados. Em contextos como o de Moçambique, as ligações entre poderes políticos, militares e económicos são complexas e suscitam debates sobre transparência e desenvolvimento.
Continua Joseph Hanlon:
Ele então cria uma empresa para controlar essas terras e vende três quartos dessa empresa à Gemfields (empresa britânica especializada em mineração e comercialização de pedras preciosas coloridas, principalmente esmeraldas, rubis e ametistas, uma das maiores do mundo nesse setor). A Gemfields explora a mina moçambicana de rubis, em Montepuez e entao passa a realizar a exploração mineira propriamente dita. Assim, ele torna-se um intermediário entre a Gemfields e o lado moçambicano, pois controla as terras e é membro da Comissão Política. Isso repete -se com todos os recursos de várias maneiras, e nem sempre com precisão. Sobre o gás, o grafite, o carvão e esses recursos, são eles os intermediários, os oligarcas moçambicanos, e eles tornaram -se efetivamente os administradores coloniais.
Mesmo que eles próprios não sejam os colonizadores?
Acho que os colonizadores são estrangeiros. O ponto principal da colonização é que o país está a ser controlado por agências estrangeiras, neste caso por empresas estrangeiras, com o apoio do FMI e do Banco Mundial e assim por diante. Mas são os moçambicanos que estão a administrar isto, por isso não são administradores coloniais estrangeiros. São os moçambicanos que estão a agir como administradores coloniais, mas os colonizadores que controlam os recursos e que estão a retirar os recursos são estrangeiros.
Qual é o impacto de tudo isto na vida quotidiana das pessoas comuns?
O que aconteceu, especialmente na última década, foi um enorme aumento da pobreza e da desigualdade, com a riqueza concentrada no topo, a criação de uma classe média, uma pequena classe média que está melhor, e depois, para a maioria, um aumento da pobreza. A maioria dos moçambicanos não ganha nada com esses recursos, com o gás, com os rubis, com o carvão, eles não ganham nada.
A maioria dos funcionários públicos vive abaixo do limiar da pobreza, por exemplo. Novamente, há 30 anos, o FMI, como parte da privatização dos serviços, empurrou os funcionários públicos de nível inferior para abaixo do limiar da pobreza absoluta, e esse é o limiar da pobreza em que não se consegue alimentar os filhos, e isso afetou enfermeiros, professores e assim por diante. Então, criou-se um sistema em que enfermeiras e professores tinham que aceitar subornos ou dinheiro de pais e pacientes, entre outros, e esse sistema continua até hoje.
Então, mais uma vez, o FMI está a impor uma privatização social desses serviços públicos, e os salários foram aumentados para que as pessoas, professores e enfermeiros possam sobreviver, eles não precisam desse dinheiro extra para sobreviver, mas isso foi incorporado ao sistema. E o pilar final disso é, especialmente na educação, que se você quer uma promoção agora, você tem que fazer parte da FRELIMO, você tem que fazer o que a FRELIMO manda fazer. A FRELIMO controla completamente o Ministério da Educação e, por exemplo, em época de eleições, as aulas são suspensas, porque todos os professores e todos os funcionários da educação têm de trabalhar na campanha eleitoral da FRELIMO.
Portanto, se quiser um emprego melhor e ganhar um salário mais alto, tem de passar pelo partido. E isso criou uma estrutura, um sistema de clientelismo, no qual os principais patronos são os oligarcas e o partido, que se sobrepõem bastante, e servem tanto os interesses da elite como os interesses dos colonizadores.
Se o país está, como argumenta, a ser recolonizado, podemos dizer que Venâncio Mondlane está a liderar, de alguma forma, um novo movimento de independência?
Ainda não, ainda não estamos a ver isso. Quero dizer, o que aconteceu com Venâncio Mondlane é que ele captou o sentimento de que os jovens estão a opor-se. E se olharmos globalmente, Moçambique é semelhante a muitas das revoluções da Geração Z. Nepal, Madagáscar muito recentemente, Bangladesh, Sri Lanka, esses são casos em que os governos foram realmente derrubados pela geração mais jovem nos tempos mais recentes. Mas se olharmos para muitos outros lugares, o Peru está agora a ter protestos da Geração Z que provavelmente derrubarão o governo. Então, o que estamos a ver em Moçambique é, mais uma vez, a Geração Z. Este é o grupo que está nas ruas a protestar. Agora, a parte organizacional da Geração Z, o que define socialmente a Geração Z, é que ela é a primeira geração que foi realmente afetada globalmente pelo neoliberalismo, pelas mudanças económicas pós-Guerra Fria. E então todos eles estão a protestar contra a mesma coisa, que é basicamente a corrupção no governo, a falta de empregos e a falta de futuro. E isso é o que podemos ver em Moçambique também.
E então o que se está a ver agora, e a outra coisa sobre a Geração Z, é que eles são a primeira geração das redes sociais. Portanto, todas essas revoluções da Geração Z foram organizadas nas redes sociais. Agora, Venânmcio Mondlane é o primeiro político moçambicano sério que capturou esse movimento, que se tornou um líder desse movimento da Geração Z.
Mas também não está no controlo dele. É o seu porta-voz, se quiser, mas não está realmente no controlo do que se passa nas ruas. E isso torna Moçambique um pouco diferente de alguns dos outros países da Geração Z. E isso leva-nos a perguntar: será que o Venâncio Mondlane protagoniza um movimento de independência ou não? Quero dizer, ninguém pensou nisso ainda, porque estamos numa fase inicial em que os jovens protestam contra a corrupção no governo e contra a falta de futuro. E isso, claro, também está na origem da guerra civil em Cabo Delgado. Até agora, o que aconteceu é que a FRELIMO acredita que pode permanecer no poder, que pode roubar as eleições e, até agora, tem conseguido permanecer no poder. O que eles argumentam é que estão no poder por direito, porque conquistaram a independência há 50 anos. Além disso, dizem que o que os jovens chamam de corrupção não passa do mercado livre. E, portanto, toda a sua acumulação de riqueza é apenas o mercado livre.
E dizem que ganharam as eleições, pelo menos oficialmente...
Sim, dizem que ganharam as eleições. No entanto, uma das coisas que tenho feito de várias formas em Moçambique é reportar todas as eleições multipartidárias. E, ao longo dos anos, desenvolvemos um sistema de correspondência. Nos últimos anos, tenho trabalhado com o Centro de Integridade Pública em Maputo. Nas duas últimas eleições, as eleições locais em 2023 e as eleições nacionais no ano passado, em 2024, tivemos 500 correspondentes, mais de três em cada distrito, que nos enviaram reportagens pelo WhatsApp, porque também usamos as redes sociais. E eles contaram-nos a história do roubo. E então, o que vemos é que, em 2023, pudemos provar que Venâncio Mondlane foi eleito presidente da câmara de Maputo. Em 2024, a fraude e a corrupção foram tão grandes que ninguém sabe quem ganhou essa eleição. Nem mesmo a FRELIMO sabe quem ganhou essa eleição, porque provavelmente os documentos que eles recolheram já eram fraudulentos na base. Portanto, não temos ideia do que aconteceu no ano passado. Mas dizem que ganharam. E isso porque FRELIMO, nos termos da Constituição, controla os tribunais. E assim os tribunais decidiram que FRELIMO ganhou as eleições. E tudo bem.
Agora, eles acham que podem continuar assim. Só que o que aconteceu pela primeira vez foi que, após as eleições nacionais, em outubro passado, começou a revolta. E assim, em outubro, novembro e dezembro, milhares de jovens saíram às ruas para protestar contra as eleições.
Mas o que aconteceu durante as férias de Natal foi que o clima mudou. E quando os protestos continuaram em janeiro, fevereiro e março deste ano, eles passaram a ser muito mais anticorrupção, dizendo que não temos futuro, não temos empregos. Assim, o movimento tornou-se muito mais amplo e passou a ser contra a elite de FRELIMO, contra o que eles chamavam de corrupção.
Então, a questão é: o que acontece agora? A FRELIMO acredita que conseguiu parar os protestos e que, por meio de vários diálogos muito artificiais e assim por diante, pode manter o controlo, pelo menos até as próximas eleições. Portanto, não precisa fazer nenhuma mudança significativa.
No seu livro, fala do aumento da desigualdade, como mencionou, da concentração do poder político e económico por uma elite corrupta, da falta de democracia. Acha que tudo isto nos pode levar ao que enquadra como a revolução Jacarandá?
Acho que ainda há duas possibilidades. E acho que o que vai acontecer agora depende muito dos moçambicanos e de como eles vão resolver isso. E mesmo dentro da FRELIMO, ou ligados ao partido, ainda há pessoas progressistas que estão a tentar convencer o presidente de que o importante é realmente conversar com as pessoas. E não se trata de um diálogo formal.
Trata-se, na verdade, de dialogar com os jovens. E deve começar com a FRELIMO a dialogar com os seus próprios filhos e netos, que, na verdade, não gostam do que está a acontecer. E deve começar por fazer perguntas sobre por que estão a protestar? Por que estão zangados? E eles dirão: bem, o mais importante é que queremos empregos.
O que é interessante sobre Cabo Delgado é que esta guerra já dura há oito anos. E os governos têm dito: «Bem, nós não dialogamos com terroristas». Agora, o que aconteceria se realmente dialogássemos com os insurgentes? Eles diriam: «A nossa exigência é que queremos um emprego"; porque...
Não é apenas uma insurgência islâmica?
É islâmica no sentido de que é uma área islâmica. Então, quero dizer, os insurgentes são na sua maioria, mas não todos, islâmicos. E então, o que foi dito originalmente pelos pregadores que estavam por trás de parte da organização disso foi que a FRELIMO está a roubar a riqueza dos recursos. A FRELIMO está a levar a riqueza dos recursos. E que se tivéssemos a lei Sharia, a lei Sharia é equidade, socialismo, todos partilharíamos a riqueza. E o que é interessante nisso é que é exatamente a mesma mensagem que a FRELIMO pregava há 60 anos. A FRELIMO dizia durante essa revolução, eles não enquadravam isso em termos islâmicos, mas diziam, bem, vocês sabem, os portugueses estão a roubar a riqueza, temos de ter independência para que possamos partilhar a riqueza. Agora, temos em Cabo Delgado, uma área que é islâmica, que está a usar terminologia islâmica para dizer exatamente a mesma coisa. Se tivéssemos a lei Sharia, que eles apresentam como sendo socialismo, então teríamos realmente uma parte da riqueza e FRELIMO não teria permissão para partilhar a nossa riqueza. Mas o mais importante é que a maioria dos insurgentes está a ser paga. Eles vêem isso como um trabalho. E se a FRELIMO falasse com eles, perceberiam que o que eles querem é um emprego. E que se fossem criados alguns milhares de empregos em Cabo Delgado, a guerra acabaria, não haveria insurgentes. E o que se vê no sul, e bem, nas cidades, é que se fossem criados empregos, não haveria manifestantes nas ruas, porque tudo o que eles querem é um emprego. E é a FRELIMO a dizer: «Está bem, mas se criássemos empregos, haveria menos dinheiro para nós». E assim, a desigualdade torna-se cada vez mais importante, porque a elite do FRELIMO e parte desta nova classe média acreditam que têm o direito de ser ricos. Se faz parte da classe média, se é um alto funcionário da burocracia, então tem direito a um carro e a um bom salário. E você manda os seus filhos para escolas e hospitais privados, sem se preocupar com a má qualidade deles. E eles dizem: isso é nosso direito. É disso que se trata o mercado livre. Mas para 70 ou 80% da população, eles estão realmente mais pobres do que estavam há 20 anos. E para esta geração mais jovem, trata-se de perceber que eles não têm futuro. Eles não conseguem arranjar um emprego que lhes permita ganhar dinheiro suficiente para constituir família, comprar uma casa, montar um lar.
Portanto, eles estão presos. Aprisionados. Não têm futuro. E essa foi uma das razões pelas quais os manifestantes, especialmente este ano, estavam dispostos a correr grandes riscos, porque não tinham futuro. A polícia matou 350 manifestantes a tiros, um número bastante elevado para Moçambique. Mesmo assim, os jovens estavam dispostos a continuar a protestar, a correr esse tipo de risco, porque estão mais dispostos a correr esse risco por não verem nenhuma alternativa. Eles não veem um futuro para si mesmos dentro do sistema. E esse é o ponto crucial.
Vou usar alguns dos seus dados do livro, especificamente sobre Cabo Delgado, e bem, apenas 52% das famílias têm cadeiras e apenas 30% têm mesas. Os níveis de alfabetização, a frequência escolar e, em nível nacional, os níveis de pobreza entre os moçambicanos, que aumentaram de 46% há 10 anos para 68% em 2019/2020.
O que é que vem a seguir, professor? Prevê um aprofundamento da crise ou existe uma saída? E qual seria essa saída?
Os moçambicanos têm de resolver este problema por si próprios. E isso só pode acontecer através de algum tipo de diálogo. Existe um diálogo nacional formalizado, mas é demasiado rígido e formal, e não aborda as questões que os jovens nas ruas estão a fazer. Ora, a questão é que... eu não consigo prever o futuro. Mas se olharmos para muitas outras gerações e para coisas que começaram como manifestações de jovens, acabaram por culminar no colapso do governo. Se olharmos para o Nepal, por exemplo, o governo caiu em dois dias e todos abandonaram o poder. E os manifestantes usaram as redes sociais durante dois dias para escolher a pessoa que queriam como primeiro-ministro. E assim, tudo aconteceu de forma surpreendente em apenas quatro dias. Agora, chamo-lhe aqui a Revolução das Jacarandás, porque se voltarmos à Revolução dos Cravos em Portugal, a Revolução dos Cravos aconteceu porque nenhum tiro foi disparado, e colocaram cravos nas armas. E isso porque o governo simplesmente entrou em colapso. E, de repente, não havia mais governo. E não, o exército não estava a apoiar o governo. O governo entrou em colapso e desapareceu. E eu acho que esse é o perigo em Moçambique, que de repente, se a crise ficar séria o suficiente, quero dizer, você olha para as elites, e todas elas têm cofres escondidos em Durban, na Cidade do Cabo, em Doha e em Dubai.
E veja só essas pessoas, muitas delas têm casas em Portugal. E, por isso, podem sair de Moçambique com pouquíssimo aviso prévio. E acho que o perigo é que, se as manifestações se tornarem sérias, o governo simplesmente entrará em colapso, porque o exército não vai defendê-lo.
Isso geralmente cria problemas sérios. Então, seria mais sensato se a elite da FRELIMO pudesse usar alguns dos intermediários progressistas para tentar conversar com os jovens e com a classe média e dizer: "Ok, o que podemos fazer para evitar um colapso em Moçambique? Como podemos criar empregos? Como podemos reduzir a corrupção?" E acho que ainda é possível. Quer dizer, acabei de voltar de Moçambique e é evidente que todos que conheço estão preocupados com um possível colapso. Mas também existe a sensação de que, se a elite de FRELIMO estivesse disposta a realmente conversar com os manifestantes, se estivesse disposta a responder a algumas dessas demandas, então uma mudança rápida poderia ser possível. E isso evitaria uma revolução. A questão é que a mudança rápida seria significativa.
É um tipo diferente de revolução Jacarandá, porque seria uma revolução florida na qual houvesse algum tipo de acordo sobre uma transição. E acho que é isso que precisa acontecer agora. Mas como fazer isso? Está a FRELIMO preparada para isso? O presidente Chapo teria permissão do seu próprio partido para fazer isso? Não faço ideia. Mas penso que essa é a única alternativa. Caso contrário, veremos o governo entrar em colapso nalgum momento, eu creio.
