Um país, dois presidentes. Eis o nível de estranheza a que podemos chegar sobre a situação política de um país. Juan Guaidó autoproclamou-se Presidente mas Maduro garante que o povo é quem mais ordena e recusa-se a abandonar o cargo. Como é que Venezuela chegou aqui?
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Dizer que a crise na Venezuela já vai longa é manifestamente curto para explicar o que se está a passar num dos mais importantes países da América Latina. Para não termos que ir mais atrás, talvez possamos rebobinar o filme até ao início do primeiro mandato de Nicolás Maduro. À crise económica seguiu-se uma crise social que se tem vindo a agravar a cada dia que passa. E, perante isto - como se na Venezuela isto fosse preciso - a crise política era inevitável.
De um lado, está a oposição que tenta colocar um ponto final na presidência de Maduro e, com isso, acabar com a forma como o chefe de Estado venezuelano tem comandado o país. Ao lado dos opositores de Maduro, tem-se vindo a acumular um grupo crescente de países que vêem em Guaidó uma saída para um problema complexo.
Do outro, está um Nicolás Maduro que se recusa a deixar o cargo e que vai tentando impedir na justiça uma queda já antecipada por muitos. Mas, afinal, como é que a Venezuela chegou aqui?
1 - A crise económica e social
O petróleo pode muito bem ser o primeiro prego no caixão político do regime chavista. A crise política e social extrema que a Venezuela enfrenta hoje nasceu na grave recessão financeira, em 2014, quando a cotação do "ouro negro" caiu a pique. Isto, num país onde a indústria petrolífera corresponde a mais de 90% das exportações, só podia ter um impacto enorme na economia.
Estávamos perante o início de toda uma crise que ajuda a explicar, em parte, o estado atual da Venezuela. Durante cinco anos o nível do desemprego foi-se agravando, milhares de venezuelanos fugiram do país e, os que ficaram, acabaram em muitos casos entregues à fome e à violência. A partir daqui, o ciclo vicioso não parou mais: o desgaste do país levou ao desgaste do Governo, o desgaste do Governo desgastou cada vez mais o país.
As tentativas frustradas de travar o caos
As tentativas de Nicolás Maduro para superar a hiperinflação em que o país está submerso têm sido todas mal sucedidas. A primeira tentativa do Presidente da Venezuela, para combater o problema, foi criar o petro, uma criptomoeda ancorada no preço do barril do petróleo e que - nas palavras de Maduro - seria capaz de ajudar a economia a crescer.
Mas a estratégia da moeda digital não correu como esperado. Bem pelo contrário. Donald Trump foi um dos primeiros entraves: proibiu as empresas e cidadãos norte-americanos de usarem o petro do Governo venezuelano.
Poucos meses depois, Maduro vê-se obrigado a apresentar um plano radical para tentar reverter a situação. Avançou com uma reconversão monetária, um aumento extraordinário do salário mínimo e a vinculação da nova arquitetura ao petro. Mas, mais uma vez, falhou. As soluções do Presidente venezuelano estiveram longe de fazer brilhar a economia ou sequer de colocar o comércio no caminho certo.
Perante este cenário, as autoridades estrangeiras acreditam que o Governo venezuelano pode ficar sem dinheiro em breve para atender às necessidades básicas, o que pode tornar a situação do país ainda mais grave.
A fuga de um país sem rumo
Grande parte da população da Venezuela luta contra más condições de vida, de tal forma que, calcula-se, todos os dias saem do país em média cinco mil pessoas em direção ao Brasil, à Colômbia e a outros países sul-americanos e europeus. Um dos países de fuga é Portugal, mais precisamente a Madeira, para onde têm regressado muitos lusodescendentes.
Em 2015 - ano em que a crise já se fazia sentir - havia cerca de 700 mil emigrantes venezuelanos. Agora estima-se que sejam cerca de três milhões de pessoas a deixar o país, muitas delas em situação extrema de pobreza.
2- A crise política
O "passarinho pequenino" de Hugo Chávez que, segundo Nicolás Maduro, o abençoou na campanha e o ajudou a tornar-se seu sucessor na presidência, na verdade, não parece ter ficado durante muito tempo para abençoar o Presidente. A guerra com a oposição dura já há vários anos e atirou muitos dos opositores para a cadeia.
Dois anos depois de se tornar Presidente da República, Maduro deparou-se com uma vitória da oposição na Assembleia Nacional Legislativa, o Congresso da Venezuela. Acabou por aceitar os resultados mas estávamos perante o primeiro enfraquecimento do Presidente do país. Nessa altura, Maduro decidiu anunciar a criação de uma instituição paralela que imita as competências da Assembleia Nacional para controlar o poder legislativo.
Os avanços e recuos em que Maduro tem levado a melhor
Houve tentativas de revogação do mandato de Maduro, abandonos de cargos na Assembleia Nacional e alternativas usadas pela oposição para tirar o líder da Venezuela da presidência. Mas Nicolás Maduro ainda tinha mais uma finta política para fazer à oposição: convocou uma Assembleia Nacional Constituinte e conseguiu com isso manter-se agarrado ao poder.
Daí à marcação de eleições para a Assembleia Constituinte, foi um pequeno passo. Num ato muito criticado e considerado ilegal, a Procuradora-geral do Estado chegou mesmo a pedir uma investigação a possíveis manipulações. Maduro classificou a atitude de Ortega Diaz como uma forma de se unir às forças contra o regime.
Guerra de palavras à parte, as eleições foram mesmo marcadas e antecipadas para maio de 2018. Nicolás Maduro foi reeleito com quase 70% dos votos para um segundo mandato. De nada valeram os protestos da oposição que alegou irregularidades e falta de respeito pelos tratados de Direitos Humanos ou pela Constituição da Venezuela.
A instabilidade não só continuou, como se foi agravando. A oposição não reconheceu legitimidade ao novo mandato de Maduro. Nada que o impedisse de tomar posse, no início de janeiro, como Presidente da Venezuela. O líder da oposição e presidente do Parlamento não demorou a reagir e mostrou-se disponível para assumir a Presidência da Venezuela, dando assim continuidade a um movimento, que já estava nas ruas, contra Maduro.
Uma oposição fracassada que tenta renascer das cinzas
Guaidó é dos poucos rostos da oposição que não está preso. O modus operandi de Maduro passa por perseguir e destruir a oposição, tentando prender o maior número de críticos possível. Os que não acabaram na cadeia não tiveram outro remédio que não fosse fugir para o asilo. No entanto, parece agora haver uma luz ao fundo do túnel para os opositores.
Nos últimos dias os protestos foram-se multiplicando, milhares de venezuelanos têm saído às ruas - de ambas as partes - e o presidente do Parlamento, Juan Guaidó, é neste momento a voz da revolução. Foi ele que, esta quarta-feira, se autoproclamou Presidente interino da Venezuela.
Perante milhares de pessoas, em Caracas, o presidente da Assembleia Nacional da Venezuela jurou "assumir formalmente as competências do Executivo nacional como Presidente interino da Venezuela" e vários países não tardaram a reconhecer Guaidó como Presidente do país. Nicolás Maduro não demorou a reagir, recusou sair do poder e, da varanda do Palácio de Miraflores, garantiu que "só o povo dá, só o povo tira".
Juan Guaidó tem de 35 anos, assumiu a liderança do parlamento, o último órgão oficial sob controlo da oposição e tornou-se no principal rosto do movimento que quer tirar Maduro do poder. Militante do Vontade Popular, foi um dos mais destacados ativistas juvenis e, apesar de ser, até então, uma figura pouco conhecida dentro e fora da Venezuela, é o homem de quem se fala, o político que acredita estar em condições de ser Presidente da Venezuela.
3 - A pressão externa
Nicolás Maduro está cada vez mais isolado, o que tem prejudicado o diálogo externo da Venezuela. O Grupo de Lima, composto por países da América Latina com governos de tendência mais à direita (Argentina, Brasil, Chile, Colômbia, Costa Rica, Guatemala, Guiana, Honduras, Panamá, Paraguai, Peru e Santa Lucia), foi dos primeiros a virar as costas a Maduro.
As sanções impostas pelos EUA à Venezuela e o reconhecimento por parte de Donald Trump de Guaidó como legitimo Presidente, veio agravar ainda mais as relações externas.
Pouco depois da tomada de posse de Maduro, já a União Europeia vinha lamentar que ele iniciasse um novo mandato "com base em eleições não democráticas" ameaçando, ao mesmo tempo, que a Europa "continuará pronta para reagir com medidas apropriadas diante de decisões e ações que prejudiquem ainda mais as instituições e princípios democráticos, o Estado de Direito e os direitos humanos".
Após Juan Guaidó se ter autoproclamado Presidente interino e começar a receber o apoio de vários pontos do mundo, Nicolás Maduro anunciou o corte de relações com os Estados Unidos e deu 72 horas aos diplomatas norte-americanos para saírem da Venezuela.
A Venezuela está perante uma encruzilhada da qual ninguém sabe muito bem quando e, sobretudo, como vai sair.