"O sistema de saúde em Gaza colapsou, é um beco sem saída, as pessoas nem num hospital se sentem seguras"
Um Dia de cada Vez: Histórias Reais da Medicina de Emergência Humanitária é o nome do livro. Nelson Olim, o autor é médico-cirurgião português. Viveu em Israel e na Faixa de Gaza. O que se passa no terreno é já uma catástrofe humanitária.
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Um Dia de cada Vez: Histórias Reais da Medicina de Emergência Humanitária é o nome do livro. O autor é médico cirurgião licenciado pela Universidade Lisboa. Fez a Trauma Fellowship no Rambam Medical Center, em Haifa, Israel. Partiu para lá a 11 de Setembro de 2002, um ano exato após os atentados contra as Torres Gémeas em Nova Iorque. É conselheiro regional da rede de Equipas Médicas de Emergência da Organização Mundial de Saúde no Médio Oriente e coordenador de trauma também da OMS para Gaza. Entrevista na TSF.
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Como é que vê o que está a acontecer em Gaza?
Esta é claramente uma situação nunca vista antes, pelo menos nestes últimos anos. Acho que já ultrapassou todos os nossos piores cenários e, portanto, é aquilo que claramente caracteriza uma catástrofe humanitária. Isto é um text book mesmo.
Ou seja, não é uma catástrofe humanitária que está em vista, que está no horizonte. Na sua opinião, já está a acontecer...
Sim, sim, sim, já está a acontecer. O sistema de saúde colapsou. E não só. O sistema de saúde colapsou, como o fornecimento de água foi foi interrompido, eletricidade interrompido.
Mas aqueles hospitais parecem resistir a cortes de energia determinados por Israel...
O que acontece é que muitos dos hospitais em Gaza estão preparados com painéis solares. E isto foi um projeto da OMS que que começou aqui há uns anos para tentar equipar estes hospitais com um sistema de produção de energia que fosse independente dos geradores, sendo que a capacidade de produção é muito limitada e portanto, nós sabemos que aquilo está desenhado essencialmente para conseguir aguentar os ventiladores nos cuidados intensivos e pouco mais do que isso.
Temos visto colegas seus dizer que é absolutamente impossível evacuar aqueles doentes que estão em camas de hospital ou bebés em incubadoras. Como é que se transfere isto para a estrada? É de facto impossível? Transportar aquelas pessoas, fazer uma evacuação daquelas pessoas, ainda que os quilómetros não sejam muitos, não será condená-las à morte?
Eu tenho dito nos últimos dias que chegámos a um beco sem saída e acho que é preciso, de facto, dizer as coisas como elas são. Este é um beco sem saída. Aquilo que está a ser pedido não é plausível, não é possível. E não é possível por várias razões. Primeiro porque eu, para tirar um doente que está numa unidade de cuidados intensivos, só consigo transferi-lo para outra unidade de cuidados intensivos. Não existem. As outras que existem estão completamente sobrelotadas. Mesmo que eu quisesse transferir doentes para para um outro hospital e vamos assumir que não são doentes cuidados intensivos, mas são doentes que estão acamados ou porque passaram por cirurgia ou porque estão à espera de cirurgia. O que quer que seja, eu preciso. de uma cama para os receber. E neste momento também já não há camas para os receber. Portanto, a primeira questão é transferi-los para onde? E mesmo que nós chegássemos a um ponto onde dizemos ok, temos aqui um sítio para onde os podemos transferir, a questão é: agora como? Porque estamos a falar de mais de 1000 camas que existem no norte que teriam que ser transferidas para o sul, onde a capacidade é muito menor do que isso. No Sul, existem basicamente quatro hospitais do Ministério da Saúde que têm um serviço de urgência e que têm alguma capacidade de internamento, mas todos juntos - estamos a falar de Al-Najar, Al-Quds, Nasser que é o maior e que tem 360 camas, mais coisa menos coisa, e o European Gaza Hospital. Esses quatro em conjunto têm menos de 800 camas e estão cheias já neste momento., porque os bombardeamentos têm sido a Norte e a sul. Portanto, aquilo que se está a pedir é tirar doentes que estão num hospital sem que haja um sítio para os colocar. E , portanto, é uma tarefa impossível. A questão aqui já não é 'como', é que não é possível.
Sendo que não há propriamente um aeroporto em Gaza que permita tirar as pessoas por uma ponte aérea...
O aeroporto está lá, está danificado, mas ele existe junto, junto a Karim Shalom, no Sul, em Rafa. Há um aeroporto que existia do tempo do mandato britânico, cuja pista foi danificado, entretanto. Mas ele está lá e atenção há uma fronteira com o Egito que na verdade não se pode esquecer.
Será essa a única solução possível? Mas depois volta a questão dos doentes cujo estado de saúde não permite fazer aqueles quilómetros...
Sim. Essa é outra questão. Vamos assumir que nós temos um sítio para onde os podemos transferir. A questão seguinte é como? Temos ambulâncias suficientes? Não. A maior parte das ambulâncias neste momento está a fazer transportes primários e, portanto, estão a transportar transportar feridos do ponto onde são feridos até ao hospital. Tínhamos que reconverter estas ambulâncias para fazer transportes secundários, ou seja, entre hospitais; não há sequer ambulâncias suficientes que permitam fazer isso. Não há. Por isso é que eu digo que a um beco sem saída. Não vai acontecer. Estes hospitais não vão ser evacuados. Mesmo porque, ainda por cima, como nós sabemos, a maior parte destes hospitais hoje em dia são vistos por grande parte da população como pequenos santuários, ou seja, áreas onde, em princípio, não serão atingidos. Só em Sifra, que é o maior hospital da cidade de Gaza, há mais de 30.000 pessoas neste momento dentro do perímetro do hospital. E estes não são doentes, são 30.000 pessoas que estão lá à procura de refúgio.
(Já depois desta entrevista ter sido feita, aconteceu o bombardeamento ao Hospital Batista em Gaza. Voltei a ligar a Nelson Olim)
Esse hospital é um dos hospitais mais antigos de de Gaza. Na verdade fica mesmo ao sul da cidade propriamente dita. É um hospital que vem do tempo do mandato britânico da Palestina. É e é um hospital que é gerido por uma organização não governamental religiosa num bairro de alta densidade, conheço-o de o ter visitado há uns anos. Nunca trabalhei lá. Mas de facto termos hospitais a ser atingidos nesta fase, é o pior dos cenários, claramente. Independentemente de onde veio o disparo, porque essa é quase uma discussão que nesta fase é quase clubística, não é? Isto é, aquela visão do penálti visto de um lado ou visto do outro. A questão é como é que uma população que está claramente em fuga, que está assustada, que procura refúgio naquilo que é suposto ser um santuário, que é o local mais sagrado numa guerra, diríamos assim, que é um hospital, e ainda assim é atingida? Isto retira de facto toda e qualquer esperança, não é? Isto é o deitar a dignidade por terra, isto é lançar as pessoas no desespero. Eu acho que essa é a grande questão. É pensar: o que é que vai na cabeça daquelas pessoas agora, quando querem encontrar um lugar que seja minimamente seguro, porque simplesmente querem proteger-se a si e sua família e porque acham que esta guerra não tem nada a ver com eles; ainda assim não estão seguros.
Como é que foi a sua a sua experiência no terreno em Gaza e na Cisjordânia? Creio que foi em 2018, 2019?
Em 2018 fui colocado em Gaza como coordenador de trauma. Na altura em que começaram as manifestações. E aquilo que me foi pedido na altura, como coordenador do trauma, era que tentássemos montar um sistema que permitisse dar resposta ao elevado número de vítimas que tínhamos todas as sextas feiras, nas manifestações que ocorriam junto ao muro. Nós sabíamos exatamente o que ia acontecer e como e quando. E, portanto, aquilo que nós fizemos foi de facto, desenvolver um sistema que permitisse nas cinco regiões, portanto, no Norte, Gaza City, depois Midway Area, Khan Younis e Rafa. Montámos aquilo que nós chamamos os TSP, que eram Trauma Stabilization Points, portanto, pontos de estabilização de trauma que permitissem que assim que um indivíduo era atingido - e ali estamos a falar essencialmente de baleados -, tivesse um primeiro socorro imediato e tivesse uma estrutura de saúde temporária, porque é uma estrutura em tendas onde ele pudesse ser reanimado, ressuscitado e a partir dali, transferido para o hospital. E utilizávamos essas estruturas também para tratar todos os doentes que tinham ferimentos ligeiros e que não precisavam de ir para o hospital. Isto teve um impacto enorme no sistema de saúde, porque a montagem destas estruturas nestes locais não só permitiu salvar vidas (e há um estudo entretanto publicado sobre isso que se chama "Trauma Response to Gaza Demonstrations" e uma publicação da OMS que o demonstra); mais de 1000 vidas foram salvas porque o sistema estava em funcionamento. Mas não só. Permitiu tirar muita pressão dos hospitais, porque o facto destas estruturas tratarem doentes ligeiros, eles já não precisavam de ir para o hospital, e portanto foi um ano e meio de loucura, porque sabíamos que às sextas feiras ia haver gente baleada. Foi assim todas as sextas-feiras, em determinado local. Isto é uma coisa inacreditável, não é? Mas no total, foram mais de 20.000 feridos durante um ano e pouco e quase 7000 dos quais baleados. O que é um número perfeitamente incompreensível.
:Dessa sua experiência de vida na Faixa de Gaza, diria que os civis palestinianos são reféns do Hamas ou estão com o Hamas?
Eu não queria, claramente, entrar nessa discussão. Eu tenho feito um esforço enorme de dizer a todas as pessoas: ponham de lado as vossas convicções políticas e religiosas. Passemos para o plano humanitário, onde somos todos iguais e onde não há bons e maus. E aquilo que eu posso dizer é que, como em todo o lado, as populações civis são sempre as grandes vítimas destes, destes processos e daquilo que é do meu conhecimento, a maior parte deles querem é poder viver em paz e não estão muito alinhado com nenhum grupo ou com nenhuma ideia por aí além.
Nós sabemos que sabemos que a Palestina está ocupada há longas décadas, praticamente desde a fundação do Estado de Israel. Sabemos também que unilateralmente, Israel saiu da Faixa de Gaza em 2005 e depois das eleições que o Hamas venceu, não reconhecidas internacionalmente, passou a governar o território. Sente que, no geral, há uma população cansada de toda esta situação motivada pela ocupação e também pela divisão interna entre os grupos palestinianos?
Eu aquilo que eu vejo, pela minha experiência, é que esta é apenas mais uma população cansada. Se nós formos a Nagorno-Karabakh, vamos encontrar uma população cansada. Se formos ao Iémen, vamos encontrar uma população cansada. E se formos à Somália, a mesma coisa e ao Congo e à Nigéria e ao Sudão. O mundo está cheio de populações cansadas. Que os seus governantes tomem decisões que os prejudicam.
Nos nos seus direitos mais fundamentais...
Nos seus direitos mais fundamentais. Aquelas crianças, aquelas crianças em Gaza e que nós vemos agora na televisão, não é? Que culpa têm ela que o Hamas tenha decidido fazer um ataque, uma coisa perfeitamente escabrosa a Israel, da forma que o fez? Que culpa que aquelas crianças têm? Não têm, não têm ponto. Mas sim, são crianças que obviamente crescem neste neste modelo e obviamente, acabam por, Inevitavelmente, eu diria, na sua cabeça formar os seus próprios inimigos e já sabem agora quem é o inimigo, não é? Porque são aqueles que lhes cortaram a água e cortaram a eletricidade. Portanto, isto é uma bola de neve, onde a população civil é enrolada, eu diria sem ter a opção de escolha. Isso, de facto, é a parte mais mais triste.
Muitos anos antes, em 2002, como disse no início, viajou para Israel, trabalhou em Haifa. Viver em Israel, no território israelita, é também viver constantemente sob o receio de atentados. E muita gente já com histórias de violência próximas a afetá-la a si ou aos seus parentes, aos seus vizinhos...
Nomeadamente em 2002. Sim, eu aterrei em Israel em plena segunda Intifada, onde havia atentados. Eram quase semanais em Haifa, em Jerusalém, em Telavive. Na altura, com muita frequência, aqueles atentados dentro dos autocarros e, portanto, em que o passageiro embarcava e depois explodia-se.
Os chamados bombistas suicidas. Eu tinha estado lá uns meses antes. E lembro me de de ir com um amigo a um centro comercial em Telavive e o carro ter que ser inspecionado, carro a carro, paravam os carros antes de entrarem no parque de estacionamento do shopping...
É, em 2002 era assim, sendo que, ainda por cima, o Rambam é o maior centro de trauma de Israel e cobre todo o norte, cobria também toda a região da fronteira com o Líbano e com a Síria, onde havia também esporadicamente conflito. Portanto, aquilo era dos hospitais mais movimentados. Mas, por outro lado, Haifa é uma cidade muito especial, e aquele hospital em particular porque o staff era muito multiétnico. E, portanto, nós tínhamos judeus, obviamente, mas havia cristãos, cristãos árabes, havia drusos, um pouco de tudo. E Haifa sempre foi reconhecida, aliás, como sendo uma cidade muito, muito, multicultural e com uma grande componente, apesar de tudo, árabe, coisa que não se vê tanto em Telavive, por exemplo. Mas sim, foi uma época complicada. Eu vivi dentro de um lar de enfermagem que ficava no perímetro do hospital e, portanto, a minha vida era estar praticamente ali 24/24 horas naquele percurso. E obviamente, como foi o meu primeiro contacto, fui aprendendo o que é que era a visão daquele lado, do lado israelita, sobre o conflito. E depois, anos depois, paradoxalmente, acabo a trabalhar do outro lado do muro e a perceber o que é a visão do outro lado. E por isso é que eu digo que chega-se a um ponto onde se percebe que as coisas não são preto e branco e há aqui muito cinzento. E se isto fosse fácil já estava resolvido há muito tempo. Não é fácil.
Nelson, certamente que as suas filhas Leonor e Lara lhe vão perdoar as ausências, como manifesta disso esperança na dedicatória do livro. Mas ainda acredita que lhes seja possível deixar um mundo melhor, como também escreve na dedicatória?
Eu acho que sim, porque eu acho que há muitas pessoas que têm opiniões formadas, há pouca gente que tem opiniões informadas e eu acho que cabe a todos nós, aqueles que felizmente, temos a capacidade de nos colocar num outro plano e olhar para a questão, para as questões do ponto de vista humanitário e cada vez mais distanciarmo-nos desta noção de que há bons e maus e que há filiações políticas. Quando nos colocamos neste plano de Humanidade, e somos cada vez mais, eu acredito cada vez mais. E a comunicação social também tem um pouco essa função de nos mostrar onde somos todos iguais, onde somos todos homens e mulheres e com os mesmos direitos e com a mesma dignidade. Portanto, eu acho que sim. É um trabalho longo, obviamente, e que vai durar gerações e gerações. Mas acho que a pouco e pouco caminhamos para lá. Nós estamos melhor hoje do que estávamos há 500 anos do ponto de vista do que são direitos fundamentais. E isso não existia nada há 500 anos. E, portanto, fizemos um percurso. Estamos a fazer um percurso enquanto sociedade, enquanto humanidade. E, portanto, eu tenho esperança que daqui a 500 anos vamos olhar para trás e dizer: 'aqueles bárbaros do ano 2000, que coisa louca andavam a fazer guerras, uma coisa que nós já extinguimos na Terra'. Espero que cheguemos a esse ponto. Era bom.