O Domínio do Poder, livro de Filipe Arnaut Moreira, major-general. Conceituado analista de estratégia política e militar, ajuda a compreender causas e interesses da geopolítica mundial. Entrevista na TSF.
Corpo do artigo
Vê o Irão e a Rússia como os pirómanos do mundo atual que fazem atear as labaredas no Médio Oriente e a China como o rapaz que vai roubar uvas, mas que fica em cima do muro a ver o que acontece, sem largar o grupo, mas sem arriscar em demasia. Em O Domínio do Poder, Filipe Arnaut Moreira (conhecido do grande público pelas análises que tem que tem feito nas televisões à guerra na Ucrânia) procura compreender as causas e os interesses da geopolítica mundial (chancela da Planeta): "este não é um livro sobre relações internacionais: isto é um livro sobre a humanidade".
Arnaut Moreira é major-general, licenciado pela Academia Militar e pelo Instituto Superior Técnico. Oficial de intelligence da NATO em Madrid, subdiretor geral de Política de Defesa Nacional, chefe de Gabinete do Ministro da Defesa Nacional, Diretor de Comunicações e Sistemas de Informação do Exército. Professor de Geopolítica Geoestratégica e de Geoestratégia no Instituto de Altos Estudos Militares e na Universidade Nova. Grande entrevista na TSF.
TSF\audio\2023\10\noticias\22\22_outubro_2023_entrevista_ricardo_alexandre_major_general_filipe_arnaud_moreira
O que é que se vê do mundo quando se sobe a montanha e a montanha o leva até o Forte do Cego?
É verdade é que essa é uma experiência muito interessante, porque nós estamos muito habituados a ver os acontecimentos de perto, no seu detalhe, e muitas vezes perdemos aquilo que é a dinâmica geral que condiciona todos estes acontecimentos. E quando nós subimos a uma montanha, deixamos de ver os detalhes, passamos a ver as grandes linhas que definem as montanhas, os rios, as cidades, etc. Quando nós descemos outra vez ao vale, tudo o que vemos são detalhes. E todos esses detalhes são diferentes uns dos outros. Muitas vezes, para nós percebermos as dinâmicas que alimentam as relações internacionais, temos que ter um distanciamento em relação a cada um dos acontecimentos, porque os acontecimentos são muitas vezes enganadores. Escondem dinâmicas que estão a ser desenvolvidos. Porque na arte estratégica, dissimular é um dos grandes fatores que pode conduzir ao sucesso. E, portanto, é muito natural que muitos dos pequenos acontecimentos que nós vemos nos enganem, nos deem uma perceção diferente daquilo que está a acontecer. O que eu procuro aqui ao subir a montanha é ver as grandes dinâmicas que alimentam as relações internacionais.
Consegue esse distanciamento porque é um local que o inspira a reflexão ou porque nos remete para outras batalhas, no caso, para as invasões francesas, já que se trata da primeira defesa das Linhas de Torres?
Esta reflexão é feita do topo da montanha, porque as montanhas convidam-nos também a um certo distanciamento. Isto é, nós, quando vivemos nas cidades, não temos também tempo para ver as coisas. Nós, quando subimos as montanhas, somos inspirados por toda aquela natureza e, sobretudo, levantam-se-nos questões que são fundamentais para percebermos a sociedade. Porque este não é um livro sobre relações internacionais: isto é um livro sobre a humanidade. Como é que nós, a partir do ser humano, da criação, fomos sucessivamente construindo organizações sociais mais complexas? Como é que passámos do indivíduo e da família para a nossa comunidade de valores? Como é que as comunidades se uniram e formaram nações? Porque é que as nações entraram em guerra e se formaram as pátrias? E porque é que no final de todo este percurso muito complexo, fomos obrigados a criar o Estado, que é uma entidade absolutamente artificial, porque se rege por leis em vez de se reger pelos valores das comunidades. Isto faz toda a diferença.
Tão artificial quanto as fronteiras.
As fronteiras foram uma necessidade para delimitar os valores, isto é, os processos de identificação das comunidades levaram ao sentimento de que nós não somos iguais aos outros. E a fronteira era exatamente esse marco, o que mostrava os que estava de um lado e que se auto identificavam com uma determinada nação e os que estavam do outro lado e eram os outros. O que acontece é que o processo das fronteiras foi evoluindo ao longo dos tempos e muitas das fronteiras que nós temos hoje em dia já não correspondem aos estados nação. Há muito poucos estados nação e não resultam por causa dos mecanismos de poder que eu explico aqui no livro.
Dá como exemplo, o Sudão que foi atravessado e as suas fronteiras não contemplam propriamente um Estado nação. Não é uma fronteira natural. Há vários casos desses suscitados por aquilo que foi desenhado quase a régua e esquadro na Conferência de Berlim, no final do século XIX.
Exatamente. A Conferência de Berlim é um exemplo muito claro dessa enorme confusão sobre as fronteiras, porque o que estava em causa na Conferência de Berlim era evitar que as potências europeias transferissem as suas guerras internas na Europa também para a África e, portanto, era necessário estabelecer quais eram os domínios de influência e certificá-los numa grande conferência europeia para evitar que os conflitos europeus acabassem também por ir para África. O que é que resulta daqui? Resulta que dentro das mesmas fronteiras que, como eu disse, do ponto de vista natural, deveriam corresponder às nações, ficaram umas vezes várias nações dentro das mesmas fronteiras e outras vezes apenas pedaços de nações. Nós, quando olhamos, por exemplo, para os curdos, vemos que toda a população curda e que se identifica como sendo a nação curda ficou sem um Estado e está dividida em vários estados, o que leva naturalmente a que nos sítios onde é mais forte, procure influenciar depois as suas populações que estão nos outros Estados para constituírem e conseguirem um conjunto de graus de autonomia que, infelizmente para os curdos, nunca foi conseguido.
O livro está dividido em três partes. A primeira apresenta as figuras centrais internacionais, os seus objetivos e interesses. A segunda centra-se sobre os conflitos atuais e a terceira mostra uma nova abordagem da geopolítica focada nas ameaças globais. Logo no início do primeiro capítulo do livro, "Os Interesses e as Causas", fala-nos da importância dos líderes que interpretam os anseios dos seus associados e transformam-nos em objetivos a atingir. Diz que não há organizações sociais perfeitas porque são constituídas por pessoas na sua base e chefiadas por pessoas no topo. Pergunto-lhe se acha que estamos num momento em que hoje os principais países ou as principais organizações não são dirigidos por pessoas competentes para as tarefas que têm em mãos, dada a imensidão de problemas que o mundo enfrenta.
Eu julgo que as capacidades humanas hoje não são muito diferentes daquelas que eram, por exemplo, nas lideranças que vimos durante a Segunda Guerra Mundial. Nós, em termos de capacidades, temos as mesmas capacidades. O que nós temos é um mundo mais complexo e é isso que eu também procuro explicar neste neste livro. Porquê? Porque nós, sobretudo a partir do século XVII, na Europa, investimos numa ideia de que o Estado era o verdadeiro representante e único representante da vontade das nações e das populações que lá se encontravam. O Estado foi, de alguma maneira, eleito por si próprio como o príncipe das relações internacionais. As relações internacionais faziam-se entre Estados. Isto tinha uma enorme vantagem. É que, à medida que nós diminuímos no sistema internacional o número de atores, também evitamos a complexidade do sistema internacional. Não é a mesma coisa reger um sistema internacional com 200 atores ou com 2000 atores.
Mas sob esse prisma, quando criámos as organizações multilaterais, ainda poderia ser mais simples. Poderia ser, mas não é.
Mas não é. Porque, na verdade, os Estados são confrontados hoje em dia com dois desafios: um que está ao seu nível, que é o aparecimento de um conjunto de atores não estatais, mas que têm o mesmo poder dos atores estatais. Esta disseminação do poder ao nível daquilo que é a confrontação dos atores estatais está bem visível naquilo que é a confrontação hoje em dia entre Israel e o Hamas, ou entre Israel e o Hezbollah, ou o papel que determinadas personalidades podem ter de influência no próprio decurso das operações militares, como Elon Musk, que decidiu desligar a rede Star Link para impedir uma operação da Ucrânia. Portanto, o poder hoje em dia não está apenas ao nível dos Estados. Nos Estados apareceram exatamente com o mesmo nível de poder um conjunto de outros atores que não são Estados. Ora, qual é o problema destes novos atores? Do ponto de vista dos Estados, é que enquanto nós tínhamos Estados, tínhamos montado um sistema de regalias e de e de castigos que funcionam sobre os estados...
Regras, no fundo...
Exatamente. Mas este sistema de regalias e de castigos não funciona sobre os outros atores, porque não têm a mesma essência política que têm os Estados. Portanto, neste nível, os Estados perderam relevância a nível internacional. Mas não foi só aí. E este livro também traz este problema para aqui. É que quando nós falávamos de Estados, estávamos sobretudo a discutir interesses. Ora, entretanto, apareceram no interior dos Estados e na sociedade global as causas. E as causas são uma outra forma de retirar poder dos Estados.
E por vezes, as causas no interior dos Estados entram em choque com os próprios interesses dos Estados.
Exatamente. É muito isso, é cada vez mais frequente. Porquê? Porque há causas que são causas específicas, muito localizadas. E essas sempre as outras houve. Mas neste mundo digital, neste ciberespaço global, as causas também adquiriram uma dimensão global, isto é, passa a haver não apenas os habitantes de um determinado Estado a contestarem qualquer coisa, mas essa contestação assume um poder global. Há muita gente envolvida e a alimentar estas causas. E o alimentar as causas é muitas vezes através da militância, mas é também através dos fundos que são encaminhados para alimentar todas estas causas. Eu, aliás, mostro aqui, por exemplo, a importância que hoje em dia têm as ONGs em termos daquilo que é o volume de emprego que que em alguns países representam vários pontos percentuais do emprego criado; os empregos são criados através de ONGs. Estas ONGs são financiadas sobretudo através de pessoas que contribuem voluntariamente, anualmente ou periodicamente para as alimentar, isto é, naquilo que é a sociedade internacional. Hoje em dia não temos apenas aquela visão clássica dos interesses dos Estados que se confrontam entre si. Temos também novos atores com o mesmo poder dos Estados que trabalham no sistema internacional, mas também muitas causas, muitas delas fraturantes, que vão tentar destruir aquilo que é a solidez daquele edifício que o Estado pensava assente numa determinada nação que constituía, digamos, a sua base de poder. Essa base de poder também está a ser erodida pelas causas que vão aparecendo.
Quando nos fala nos interesses, fala nos interesses específicos que acabam por conferir alguma previsibilidade ao sistema. Não resisto a citar aqui uma passagem do livro: "Os EUA não abdicam da liberdade de circulação marítima, o Reino Unido não cessa de desconfiar das alianças continentais, a Rússia não deixa de olhar para os mares quentes, a Suíça não abandona a sua tradicional neutralidade, Portugal identifica-se com o Atlântico, a Turquia oscila entre a Europa e a Ásia, o Brasil não quer alianças militares externas atuando no Atlântico Sul. Todos estes interesses específicos possuem uma forte fundamentação geográfica e a perenidade de muitos destes interesses resulta do facto de a geografia permanecer a mesma. A geografia é a grande força geradora dos interesses específicos dos Estados. Ou seja, estamos, e como dizia o Tim Marshall no seu livro, Prisioneiros da Geografia?
Nós sempre estivemos prisioneiros da geografia. Toda a nossa evolução histórica está muito condicionada pela geografia. É claro que hoje em dia existe um outro grau de liberdade maior que a geografia, porque o ciberespaço tornou-se global e, portanto, a capacidade de influenciar, de estabelecer relações de poder para além da geografia. Eu, no livro, mostro que há dois tipos de interesses num Estado. Por um lado, há os interesses comuns dos Estados. Todos os Estados têm esses mesmos interesses, são a preservação da sua soberania, a liberdade de ação dos seus órgãos políticos, o desenvolvimento das populações, tudo isso são interesses que são comuns a todos os Estados. Mas depois há os interesses específicos e esses é que são interessantes do ponto de vista da análise que eu faço aqui neste livro, que é perceber como é que surgiram interesses específicos que são diferentes. E a razão para tudo isto está, evidentemente, na geografia. É por causa da geografia que estes interesses específicos surgem. É claro que a geografia atua de muitas formas. Não atua apenas pelas dimensões, pela posição, etc. Atua também do do ponto de vista da forma como nós nos olhamos, porque uma das funções da política é interpretar a vontade nacional, que é uma coisa que é muito difícil de ler. É por isso que muitas vezes nós temos que ir aos poetas, que são, quem sabe, ler estas mensagens da vontade de encontrar o sentido.
Mais que as sondagens. Pensa que há uma tendência crescente para as crises se transformarem em conflitos e os conflitos se transformaram em guerras?
Sim, completamente. Aliás, um dos pontos talvez mais fortes deste deste livro é explicar que nós estamos a libertar-nos de um determinado modelo que vigorou, que era o modelo dos compromissos e dos tratados.
Estamos a entrar num novo modelo de relações da Guerra Fria?
Muito típico da Guerra Fria. E estamos a entrar num outro tipo de era que é dominada pelo poder. Eu explico isto muito sucintamente. Nós quando olhamos para aquilo que foram os grandes instrumentos que, de alguma maneira, acrescentaram previsibilidade ao sistema, o que é que encontramos? Encontramos um volume muito grande de tratados, muitos deles desenvolvidos durante a Guerra Fria e que pretendiam estabilizar a relação de força entre os atores. Porquê? Porque os atores eram suficientemente fortes, dominavam uma parte muito grande da esfera mundial, exerciam a sua influência sobre praticamente todo o mundo e sentiam-se confortáveis nessa posição; e, portanto, ao sentirem-se confortáveis, procuraram congelar as situações através dos tratados. Agora, o que é que nós verificamos hoje em dia dos tratados e das organizações multilaterais que tinham a missão de garantir a paz eterna no planeta Terra? Agora, ao que é que nós assistimos? Assistimos que os tratados internacionais têm caído todos. Mesmo os tratados que não caíram ou não são respeitados, ou os presidentes, os líderes dos países vêm dizer que estão suspensos e 'nem percebo porque é que nós nos auto-limitamos nisto'. Ora, esta frase do auto-limitar é muito importante. Significa que nós estamos a libertar outra vez para as relações internacionais os instrumentos de poder que achámos que deveriam ser regulados. Deixou de haver outra vez regulação, quer do ponto de vista do equilíbrio nuclear, quer até do ponto de vista das forças convencionais, etc. Por outro lado, as organizações multilaterais que nós acrescentámos ao sistema para o regular e o tornar mais previsível desapareceram completamente do sistema internacional. Ou seja, alguém já ouviu falar da OSCE recentemente? Está morta. E as Nações Unidas? A única coisa que fazem neste momento é serem uma espécie de porta-voz da ajuda humanitária, que é preciso para ajudar os conflitos. Mas essa não era a missão das Nações Unidas. A missão da ONU era prevenir e evitar os conflitos. Nesta altura ela não está a agir sobre as causas, que era para isso que ela foi criada, mas apenas sobre as consequências.
Na altura em que estamos a falar, o secretário-geral das Nações Unidas, António Guterres, esteve há poucos minutos, na passagem de Rafah, no sul da Faixa de Gaza, fronteira com o Egito. Isso leva-me a perguntar-lhe como é que vê, neste momento atual, o conflito do Médio Oriente?
Este conflito? Eu posso desiludir muita gente, mas pronto, é mesmo assim. Este conflito tem mais de 2000 anos. A Esplanada das Mesquitas foi construída sobre aquilo que era o templo de Herodes. Só ficou do templo de Herodes uma pequeno pedaço de muralha, onde os judeus vão fazer as suas orações. Portanto, durante 2000 anos procurámos soluções para este conflito. Talvez esteja na altura de pensarmos que não há soluções para determinado tipo de conflitos. A única coisa que nós fazemos é procurar que não haja labaredas. Isto é, semear um bocadinho de areia sobre as cinzas no sentido de as acalmar. Mas nós nunca fomos capazes de resolver um conflito que que assenta em civilizações e culturas muito distintas.
É curioso porque aquilo que muitas análises apontam que seria algo extremamente negativo na guerra da Ucrânia, que era a guerra se transformar num conflito congelado, se calhar desejamos isso para Israel e Palestina.
Exatamente. Eu gostava que que o que os nossos ouvintes um dia perdessem um bocadinho de tempo para ver as missões das Nações Unidas que continuam espalhadas pelo mundo.
A UNRWA, da Palestina, é a mais antiga.
Tem dezenas e dezenas e dezenas de anos. Qual é a sua função? É, basicamente, hoje em dia, contar o número de granadas que passam na fronteira para um lado e para o outro. Isto é, nós mantemos em funcionamento missões que não estão a cumprir a sua missão, porque a sua missão não é contar o número de granadas que passa para um lado e para o outro. Era evitar que essas granadas passassem de um lado para o outro e, portanto, isto é um falhanço das instituições que nós criámos a pensar que iríamos garantir a paz perpétua. Onde é que eu quero chegar com isto? É que é bom que acordemos. Isto é um livro ocidental. Este não é um livro que que defenda qualquer modelo de civilização. Não. Defende claramente o modelo ocidental e procura ser um contributo para que o Ocidente acorde, porque o Ocidente está sob cerco neste momento e não pode continuar a depender exclusivamente do instrumento económico como instrumento de poder. Hoje em dia, libertaram-se instrumentos mais violentos e temos que ser capazes de estar preparados para isso,
Sob o cerco dos regimes autocráticos?
Exatamente. Qual é a linha que nós interpretamos como a linha do conflito? Nós sempre pensámos e quando digo nós, eu falo sempre em Ocidente, sempre pensámos que a linha que nos dividia dos outros era a linha da democracia, isto é, que de um lado tínhamos as democracias, sobretudo as democracias liberais e do outro lado tínhamos todas as formas de usurpação do poder e de utilização do poder ao serviço de grupos de pessoas e de gente que se sente especialmente iluminada para dirigir o destino dos outros. Portanto, teocracias, autocracias, etc. E nós pensámos que era esta a linha de divisão e todos os nossos argumentos e toda aquela que foi a luta do Ocidente foi no sentido de convencer os regimes autocráticos que estavam errados e que era preciso transformarem-se em democracias. Qual foi o instrumento que utilizámos para isto? Foi o instrumento económico. Nós, através da globalização, o que fizemos foi espalhar o nosso modelo económico para outros lugares do mundo, na esperança de que o modelo económico da economia de mercado suscitasse e fizesse aparecer os movimentos de natureza democrática nesses países autocráticos. Ora, isso não aconteceu. Não aconteceu porque a China percebeu que bastava mudar o nome. Em vez de chamar lhe capitalismo, passou a chamar lhe socialismo com características chinesas e, portanto, utilizou tudo aquilo que foram os proveitos desta nova forma de economia inventada pelo Ocidente para fortalecer o seu poder interno de domínio sobre as respetivas populações. E, portanto, neste sentido, o Ocidente acabou ele próprio, também por transferir, com a globalização, poder para outros lados do mundo.
Na China, esta semana XI Jinping no Fórum da Rota e da Faixa, dizia que que a China está a elevar o patamar de conhecimento de alta qualidade para o nível global. Portanto, todo um discurso de de otimismo para o mundo lançado a partir da China. A China apresenta-se nesta altura e numa altura em que algumas democracias ocidentais tendem a fechar- se mais, embora desde a chegada de Biden à Administração norte-americana isso foi um pouco atenuado do lado dos EUA. Mas a China quer apresentar se como o campeão da globalização...
E a China tem algumas razões para isso, mas também o seu otimismo é exagerado. O otimismo é exagerado por questões de natureza geográfica. Isto é, a China para ser uma nação com domínio global precisa ter o domínio dos mares. E esse domínio não é chinês. Pelo contrário, a China, do ponto de vista geográfico, está completamente cercada por um conjunto de penínsulas e de ilhas: Península da Coreia, Japão, as Filipinas, a Indonésia, o Vietname, todos eles estão assustados com aquilo que é a perspetiva de a China se transformar numa potência militar com capacidade de expansão naval. E eles serão as primeiras vítimas. E, portanto, o domínio dos mares é fundamental para assegurar o comércio marítimo, porque é pelo comércio marítimo que se faz a globalização. Não é pelo comércio terrestre, porque o comércio terrestre tem custos imensos. Tudo nos chega através do comércio marítimo, através dos contentores e de milhares e milhares de barcos a passar nos estreitos. Ora, este domínio marítimo continua basicamente a ser ocidental e é por isso que a China está a procurar fazer, em contraciclo a este poder marítimo, a sua expansão através de rotas continentais, investindo milhões em infraestruturas que está muito longe ainda hoje em dia, de se pensar que possam ser elas próprias rentáveis. O que acontece neste momento é que a China é ainda vista por muitos países como o Eldorado. Isto acontece sempre no início destas fases. Porquê o Eldorado? Porque enquanto nós, Ocidente, estamos condicionados politicamente a fazer um conjunto de empréstimos para obter um determinado conjunto de resultados de natureza política, para a China tanto faz que quem recebe o dinheiro, seja um regime autocrático ou não. É como eu digo no livro: muitas vezes o que ouvimos quando estamos em África é 'a Europa dá-nos dinheiro, certo, mas sempre acompanhado de lições de moral, a China oferece-nos os aeroportos e, portanto, nós aqui vamos'. Por isso, simplesmente ainda não chegámos à altura em que a China vai ter que cobrar esse dinheiro porque a China não está a trabalhar para que as outras nações sejam felizes. A China está a trabalhar porque ela precisa de mercados. A sua economia cresceu de tal maneira que é preciso encontrar alguém que lhe compre também os produtos e, portanto, está a suscitar um conjunto de infraestruturas que permita desenvolver o comércio para meter lá os seus produtos. Ora, isto pode não correr bem, porque a certa altura, estes países que nunca foram capazes de pagar ao FMI, como é que de repente passam a ser capazes de pagar à China? Ainda estamos na fase do início dos empréstimos, portanto, esta é a fase feliz em que ainda não foi preciso começar a pagar. Mas vai ser preciso pagar. E estes países que receberam estas infra estruturas não foi de de graça. Vão ter que pagar estes investimentos.
Está no contrato, nas letras pequeninas...
E as letras pequeninas dizem em qualquer altura a China pode querer acabar com o contrato e receber o dinheiro que emprestou. E, portanto, nós ainda estamos na fase feliz em que a China ainda está a dar dinheiro. Mas quando chegarmos à fase em que a China vai ter que cobrar este dinheiro, esta fase muito feliz que se vive com alguma ilusão em alguns países, vai trazer outra vez estes países ao FMI.
Termina o livro dizendo que estamos na época do domínio do poder. Não posso acabar esta conversa sem nos centrarmos um pouco nos nos dois grandes conflitos que o mundo tem atualmente, já abordamos de passagem no Médio Oriente. O que é que estima que possa acontecer nos próximos tempos?
O Ocidente vai ser confrontado com outras formas de poder. Nós estávamos habituados a responder às formas de natureza económica. Vamos ter que ter que responder à utilização pelas autocracias, de formas de poder violentas. E o que nós, de alguma maneira, estamos ainda a fazer é, basicamente, apagar fogos, mas ainda não tratámos dos pirómanos. Isto é, nós estamos a gastar todas as nossas energias e todas as nossas discussões a tratar dos fogos que os pirómanos lançaram. E esses pirómanos são a Federação Russa e o Irão. Esses são os pirómanos do sistema internacional neste momento. E nós andamos a correr, a fazer de bombeiros, a apagar aqui e ali, sem tratar da questão principal que é eliminar os pirómanos antes.
Pensei que no caso do Médio Oriente estava a dizer que tanto o Hamas como Netanyahu são pirómanos, embora em patamares ou dimensões diferentes.
Sim, sim, sim. Mas eu não consigo comparar um com o outro. Porquê? Porque enquanto sobre um se exerce uma enorme observação e crítica, quer interna, quer externa, sobre o outro não se exerce crítica absolutamente nenhuma, enquanto um tem que prestar contas, pelo menos eleitoralmente, o outro faz golpes de Estado para tomar o poder à Autoridade Palestiniana. E, portanto, eu não consigo comparar ou colocar no mesmo patamar o Hamas com Netanyahu. Do ponto de vista da gestão política, podemos apontar certamente defeitos a Netanyahu. Como podemos apontar defeitos, também, às lideranças europeias e ao apoio que nós temos dado a tudo isto. Mas, na verdade, nós ainda não descobrimos nada tão eficaz como as democracias. Porque nós, com as democracias, damos o poder às pessoas. Deixamos as pessoas escolher e não nos transformamos de repente, numa espécie de gente que se considera superior às outras, mais inteligente do que as outras e que acha que o bom dos outros é por eles decidido. Isso é que eu acho que nós não devemos deixar cair.
Não há dúvida que Israel é uma democracia. A minha pergunta é se Israel é uma democracia na sua relação para com os palestinianos?
A relação com os palestinianos é uma relação que tem estado envenenada pelo período histórico onde nós olhamos este conflito. Enquanto nós nos limitarmos a dizer que este conflito tem 70 anos, nós nunca vamos perceber nada disto, porque, na verdade, os judeus viviam também na Palestina há tanto tempo...
Os tais 2000 anos...
Há tanto tempo como os palestinianos. De repente apareceu esta narrativa de que a Palestina é dos palestinianos. Só pelo nome, porque na verdade, o povo judeu sempre viveu ali. Portanto, esta questão de encontrar uma pátria, de encontrar um conjunto de fronteiras de segurança que garantisse a estabilidade do povo judeu, é um problema que tem 2000 anos e ainda não encontrou solução. Não sei se encontrará a solução porque a especialidade da comunidade internacional não é a de encontrar soluções ou de resolver conflitos, é apenas distinguir as labaredas à espera que os pirómanos deitem fogo num outro lado qualquer.
Enquanto não se tratar dos pirómanos a que refere, e citou a República Islâmica do Irão e a Federação Russa, o que é que acha que vai acontecer a Gaza?
O que vai acontecer? Para já, é uma tragédia. O que vai acontecer é certamente uma tragédia. A Rua Árabe está toda solidária com os palestinianos, mas ninguém quer os palestinianos. Isto é, os palestinianos, a partir do momento em que são administrados, não pela Autoridade Palestiniana, mas pelo Hamas, perderam a sua influência naquilo que são as mentes ocidentais. Um bocadinho também como os curdos. A questão dos curdos é que eles são representados pelo PKK, Partido dos Trabalhadores do Curdistão, que é uma organização também de natureza um pouco terrorista, isto é, não é possível ter simpatia com o povo curdo quando o povo curdo dá voz e sustenta aquilo que é o PKK, que é contrário às nossas noções do que deveria ser o seu representante. Ora, com o Hamas está a passar-se exatamente a mesma coisa. O povo palestiniano estava perto de uma solução, ou pelo menos, de uma solução de compromisso. A Autoridade Palestiniana tem-se revelado muito responsável naquilo que é o estabelecimento de um conjunto de acordos naturalmente negociados com Israel no sentido de promover uma convivência de natureza pacífica. Ora, é aí que o Irão intervém. O pirómano não podia aceitar que entre a Autoridade Palestiniana e Israel e entre a Autoridade Palestiniana e a União Europeia, todas as forças ocidentais se estabelecessem relações de cooperação, de entendimento e que permitissem, portanto, acalmar esta situação. É por isso que o poder é tomado pelo Hamas em Gaza; para destruir a Autoridade Palestiniana e depois de assumir Gaza. Certamente os esforços do Irão estão neste momento concentrados em destruir a Autoridade Palestiniana na Cisjordânia e substitui-la por um outro modelo que não ceda a compromissos. O objetivo estratégico do Irão é a eliminação do Estado judeu. E porquê? Por duas razões principais. Vou ser muito sintético nisto. Primeira razão porque Israel é, na região, o único país que tem capacidade de natureza militar e tecnológica para enfrentar o Irão. Isto é, o desaparecimento de Israel daria uma hegemonia regional ao Irão nesta parte. Segunda questão: o desaparecimento de Israel, de acordo com o pensamento estratégico do Irão, iria desincentivar a presença dos Estados Unidos na região, Isto é, os EUA, de acordo com o pensamento iraniano, estão na região do Médio Oriente para defender Israel. Se Israel não existisse, também os Estados Unidos não teriam esta presença, nem a preocupação com o Médio Oriente.
Mas haveria sempre um confronto Irão versus Arábia Saudita, aliás cada vez mais armada e haveria sempre o histórico cisma, se quisermos, entre xiitas e sunitas.
A Arábia Saudita e o Irão estão neste momento num período de congelamento das suas hostilidades...
Muito promovido pela República Popular da China...
Sim. Mas não é só isso. É que a Arábia Saudita não tem, neste momento, influência sobre a rua árabe. Quem está a ganhar preponderância na exaltação dos ânimos e, sobretudo, na radicalização dos jovens em todo o mundo, sobretudo nas cidades europeias, é o Irão e, portanto, o Irão quer transformar-se também - faz parte da construção dos instrumentos de poder - no verdadeiro porta voz daquilo que são os anseios dos árabes em todo o mundo. Por ridículo que pareça, o Irão não é um povo árabe, é persa e, portanto, isto é muito estranho como estes instrumentos de poder se podem servir de muitas roupagens para poderem atingir os seus objectivos.
Temos falado dela menos nas últimas semanas, nomeadamente desde o dia sete, mas a Guerra da Ucrânia continua. Como é que vê o actual momento do conflito?
A guerra na Ucrânia perdeu visibilidade, mas não perdeu intensidade. As duas coisas são muito diferentes. Nós, às vezes, porque não temos notícias, não somos alimentados com imagens terríveis, temos a noção que na Guerra da Ucrânia não aconteceu nada, não acontece muita coisa, mas na verdade continua a acontecer grande violência em todas as operações ofensivas da Ucrânia e da Federação Russa. Simplesmente, o conjunto de imagens terríveis que havia foram entretanto substituídas pelas imagens das tragédias desta confrontação entre Israel e o Hamas. E, portanto, na opinião pública, a guerra da Ucrânia passou a ser uma coisa dada por adquirida e deixou de sustentar as nossas preocupações. Isto faz parte também da manobra global contra o Ocidente. Essa manobra global passa por incendiar em sítios geograficamente diferentes a situação, por forma a dividir os apoios. Nós sabíamos e isso é claro, isso nunca foi escondido pelas nações ocidentais, da dificuldade em continuar a alimentar neste ritmo, em armamento, munições, etc, aquilo que são as necessidades da Ucrânia. Pois de repente, incendeia-se a situação em Israel e nós somos obrigados não só a continuar a alimentar a Ucrânia para exercer a sua necessidade de defesa, como também preocupados com aquilo que se passa em Israel. A Federação Russa está muito satisfeita com esta situação. Quanto à China, é como eu já disse várias vezes, a China é aquele miúdo que quando se vai às uvas fica em cima do muro, isto é, ele nem vai às uvas nem deixa de ir às uvas. Fica à espera de ver o que é que isto vai dar? E essa é a posição sempre expectante da China. Porquê? Porque a China nunca não quer ter nenhuma derrota global nem a nível regional e, portanto, não vai investir em nenhum dos atores sem saber qual é o ator que vai prevalecer. Ora, quer no caso da Ucrânia, quer no caso do conflito de Israel com o Hamas, ainda não é claro quem é que vai prevalecer. A China mantém se sentado em cima do muro.
"O Domínio do Poder: compreender as causas e os interesses da geopolítica mundial", de Filipe Arnaut Moreira.