Valores conquistados nos anos 60 - igualdade, liberdade, luta contra o racismo - são hoje postos em causa
Está aí Exílio Sem Saudade, o segundo volume das Memórias Em Tempo de Amnésia, trilogia de Álvaro Vasconcelos. Entrevista na TSF com um dos nomes históricos na análise da política internacional.
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O exílio não deixa saudades, certamente. Mas pergunto lhe Álvaro Vasconcelos se não houve coisas boas nesse exílio? As tertúlias, as amizades, os sonhos escritos ou planeados?
Não, eu no exílio, não tinha saudades de Portugal ou do período colonial em que vivi em África e recusava a ideia da saudade. Porque a saudade era o instrumento de propaganda da política salazarista para manter os emigrantes ligados a Portugal, para continuarem a mandar as suas remessas que serviam em grande parte, para sustentar a guerra colonial. Agora eu tenho saudades dos tempos do exílio. Tenho saudades porque vivi em Paris, porque em Paris casei, em Paris tive dois filhos. Era um ambiente extraordinário. O ambiente que se seguiu a maio de 68 e mesmo o período de maio de 68, os meus tempos de escola de cinema, os tempos de descoberta da vida em democracia. Para nos lembrarmos que eu tinha vindo da África colonial de Moçambique, onde, evidentemente, não só não havia democracia nem liberdade, mas havia uma opressão terrível sobre o homem negro. E eu encontrei em Paris a cidade da Liberdade, com que eu tinha começado a sonhar em África.
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Paris ainda é uma das suas principais cidades?
É, sem dúvida, uma cidade a que eu volto muitas vezes. Tenho família que vive em Paris e continua a ser um grande centro de debate intelectual, de debate cultural. É uma cidade com muitas livrarias. É uma cidade que ainda tem muitos cinemas, cinemas de rua, cinemas de bairro. E eu sempre tive uma grande paixão pelo cinema e, portanto, esse aspeto de Paris, que já era o aspeto que me encantava antes de ter chegado nos anos 60 a Paris, continua a ser uma cidade de referência para mim. De certa forma, sinto-me um pouco parisiense.
Mas ainda é Paris, a cidade das liberdades, quando proíbe manifestações de apoio aos palestinianos, porque as autoridades entenderam que seria a apologia do Hamas?
É algo que mudou muito, de uma forma dramática em França e na Europa em geral. Quando cheguei à Europa, aliás, primeiro cheguei a Bruxelas, só depois fui para Paris, em 1967, a França, a Bélgica, a Europa em geral, a Europa democrática era uma terra de asilo que recebia imigrantes e refugiados, em particular refugiados de todas as regiões do mundo. Eu conto no meu livro, como em Paris, na Livraria Maspero, que era uma livraria extremamente importante de Paris dos anos 60 e 70, se encontravam publicações de todos os movimentos de libertação, de oposição de Portugal, da Espanha, do Brasil, que também vivia a ditadura, da Argentina. Um pouco do mundo inteiro. E hoje a França já não se pode dizer que seja uma terra de asilo. É uma França... a Europa democrática em geral, fechou se muito em relação aos imigrantes e refugiados. Cresceram correntes de extrema-direita que questionam mesmo a ideia do asilo, essa ideia de hospitalidade. O valor importantíssimo da hospitalidade, que era um orgulho enorme dos franceses desde a Revolução Francesa de 1789, a ideia de que o refugiado perseguido deve ser recebido fazia parte de todas as constituições e de todos os grandes tratados que a França assinou. Hoje, com o crescimento da Marine Le Pen, da extrema-direita, quase com 40% dos votos, esta ideia da Europa terra de asilo, da França terra de asilo, está posta em causa.
Hoje, voltamos a reencontrar‑nos na preocupação sobre os destinos da França e da Europa. Na ascensão da extrema‑direita. No racismo e na xenofobia. Cinquenta anos depois de Abril, cá e lá, ainda temos combates por travar. Este livro é também sobre isso. O autor conta como a expansão e a banalização das teorias anti‑imigração são hoje o maior desafio às democracias liberais. Quando vemos crescer o populismo xenófobo, quando vemos imigrantes e refugiados a morrer no Mediterrâneo, não estamos a ver um fenómeno recente. Também aqui a memória é importante. Quem viveu no início dos anos 1970 em França sabe que Le Pen ou Salvini ou Orbán não são apenas o produto da crise de 2008 ou do terrorismo islâmico. São herdeiros de um fenómeno persistente e muito mais antigo. Mas, se vencerem, podem ser a condenação da Europa à irrelevância. Imagino que possa concordar com estas palavras da Teresa de Sousa num dos prefácios do livro...
Completamente. Aliás. Eu conto no meu livro como vi nascer e renascer a extrema-direita em França. Eu digo renascer porque antes da Segunda Guerra Mundial, nós sabemos a influência que a extrema direita teve e a tragédia que foi provocada pela chegada ao poder da extrema-direita na Alemanha, na Itália, com o nazismo e o fascismo em Portugal, na Espanha e noutros países. E em 1972 há uma manifestação no Quartier Latin, portanto, no centro de Paris, da Ordem Nova, que é uma organização de extrema-direita que organiza um comício num grande centro de conferências e a Ordem Nova aparece com força, fazendo já nessa altura, portanto na altura em que a Europa crescia, era a Europa dos 30 anos gloriosos de crescimento económico. Aparece a extrema-direita com força a fazer do imigrante o seu inimigo. Nos bidonville, nos bairros de lata dos arredores de Paris, como Saint Denis, ali onde viviam imigrantes portugueses, apareciam inscritos já nessa altura contra 'a imigração selvagem', 'Eles vêm roubar o nosso trabalho'. E estávamos nos anos 70, na altura em que a imigração portuguesa era bem vinda pelo Estado francês, porque correspondia a uma necessidade vital para o crescimento económico da França. Portanto, eu vi nascer a extrema-direita. A Ordem Nova foi dissolvida, mas foi transformada depois num partido político por o Jean-Marie Le Pen, que se chamou Frente Nacional e que hoje é o partido da sua filha, Marine Le Pen.
Como é que vê aquilo que está a acontecer no Médio Oriente por estes dias?
Vejo como podemos ver isso de vários ângulos. Aquilo que eu vejo é o que acho que é, digamos, fundamental nós vermos. É uma terrível tragédia, uma terrível tragédia que começou por um crime hediondo do Hamas contra israelitas inocentes com esta ideia terrível de que não há inocentes. Todo o judeu, todo o israelita, que é a base do antissemitismo, é um inimigo e pode ser abatido. E depois temos visto a resposta violentíssima de Israel, em grande parte contra a população civil de Gaza que está a ser vítima de bombardeamentos e de uma asfixia, de uma punição coletiva dos palestinianos, que, evidentemente, também só pode mobilizar a nossa empatia. Também a maioria dos palestinos são inocentes, como a maioria dos israelitas são inocentes e não há vingança que justifique nenhum ato de violência contra a população civil. O meu ponto de partida, é um ponto de partida dos valores fundamentais que eu trato também no meu livro, que a minha geração defendeu, que é o dos direitos humanos, da igualdade, da liberdade, da emancipação dos povos. E evidentemente que nós estávamos muito marcados, porque tinha sido a Segunda Guerra Mundial, o crime do nazismo e o fascismo e o repúdio absoluto do antissemitismo. Hoje, repudio o antissemitismo e continua a ser absolutamente fundamental, mas cresceram novas correntes racistas, aquelas que fazem dos muçulmanos também um inimigo, o outro. No fundo, isto resume-se sempre à questão de se definir o outro como um não humano, como algo que não tem direito a ter direitos. Evidentemente, quando se define assim o outro, o outro deixa de ter mesmo direito à vida.
Quando é que partiu para o exílio?
Eu parti para o exílio em outubro de 1967. Cheguei a Bruxelas, mas eu já tinha saído de Moçambique para estudar a África do Sul em finais de 66 e porque me recusava a fazer a guerra colonial e já estávamos em plena guerra colonial, quer em Moçambique, quer em Angola, quer na Guiné-Bissau. A minha recusa de fazer a guerra levou-me a que, depois de ter estado na Universidade na África do Sul, ter considerado que era mais prudente, dadas as relações que a África do Sul tinha com o regime salazarista, vir para a Europa, onde cheguei em outubro de 67 e regressei a Portugal no 1 de Maio de 74.
Quando partiu deixava, então, e como escreve, uma sociedade" em que era cultivado o provincianismo feito cultura oficial. O Aldeanismo, como lhe chamava António José Saraiva, apesar ou por causa de um discurso sobre a missão de Portugal, os portugueses viviam privados do universal, fechados entre muros, para parafrasear Miguel Torga". Álvaro Vasconcelos foi mais o peso de estar privado do universal, como aqui escreve, do que qualquer dureza da ditadura que o fizeram partir?
Sim, claro.
Falta muito trabalho de memória sobre a guerra colonial?
Sem dúvida. Se virmos o que se passou com o 25 de Abril 1974, estamos com quase 50 anos. Quase depois do 25 de Abril, vimos que foi um movimento emancipador que trouxe a democracia a Portugal, que acabou com a guerra colonial. Mas não fez nenhum trabalho de memória sobre a guerra colonial. Fez algum trabalho de memória sobre o tempo da ditadura com o Livro Negro, sobre o fascismo. Mas mesmo isso foi entrando no esquecimento. Por isso é que eu falo de memórias em tempo de amnésia. Mas em relação à guerra colonial, aos crimes da guerra colonial, a primeira vez que um governante português assume que houve crimes de guerra cometidos pelo exército colonial português, foi o ano passado António Costa, em Moçambique, que reconheceu o crime de Wyriamu e pediu desculpa pelo crime de Wyriamu. Até lá, nenhum governante português tinha reconhecido que tinha havido crimes cometidos na guerra colonial. E podemos pensar que há duas razões importantes para isso. A primeira é que o 25 de Abril foi feito por militares que eles próprios tinham feito a guerra colonial. E durante a guerra colonial, tinham descoberto que não havia solução militar para aquela questão e começaram a se opor à ditadura. Mas eles próprios tinham feito a guerra colonial, eles próprios tinham estado envolvidos numa guerra injusta. Portanto, fazerem autocrítica crítica do que tinha sido a guerra colonial e desvendar os seus crimes é tocar na própria ação do Exército português e das Forças Armadas portuguesas em África. Essa é a primeira razão. A segunda, que eu acho também muito importante, é porque a narrativa luso tropicalista, ou seja, a narrativa de que Portugal deu um grande contributo para a civilização através do Império. Essa narrativa é um pouco contraditória com pôr em causa a guerra colonial, ou desvendar-se os seus crimes ou se tornar claro a brutalidade do colonialismo, dos trabalhos forçados. Põe-se em causa a narrativa luso tropicalista, ou seja, que Portugal não é um país racista, que Portugal contribuiu para a mestiçagem do mundo e para a civilização, etc. etc. Ora, esse discurso não desapareceu com o 25 de Abril. Continua a ser um discurso dominante na sociedade portuguesa e está presente em muito discurso político. Mas é também um discurso que toca aos portugueses. Quer dizer, cada português sente-se maior num país que tem problemas, que é um país pequeno, que não é um país central do sistema internacional nem da Europa. Pensar que tivemos um passado glorioso e não querermos manchas nesse passado glorioso também satisfaz o ego dos portugueses.
Este livro não é só passado. O Álvaro escreve: "numa época em que fake news, teorias conspirativas e factos alternativos desacreditam a democracia. O silêncio sobre o passado abrirá o caminho para o poder dos herdeiros dos valores da ditadura". Estamos a correr esse risco de uma forma significativa?
Eu acho que estamos a correr esse risco de uma forma significativa na Europa. Na maioria dos países europeus e também em Portugal, embora Portugal ainda não de uma forma tão significativa como em países como a Itália, a Hungria, a Polónia, a França, onde a extrema direita é muito poderosa e nalguns desses países está no poder.
Escreve a dado passo, página 25: "Contar o que era a sociedade do passado, da ditadura, do obscurantismo, da miséria, do colonialismo, o que se queria esconder e esquecer. Como se lembrar fosse trair os antepassados e o país em que nascemos é um imperativo ético. Memórias dos que eram forçados ao exílio se queriam viver em liberdade. Os que vivem hoje numa sociedade democrática mais justa e solidária têm direito a saber como viviam os seus pais e avós e devem conhecer quais foram as ideias e as utopias que levaram ao 25 de Abril e à erupção popular do 1 de Maio de 1974. A memória das utopias que se realizaram e das tardam a concretizar-se. E a fixação de um horizonte feito de futuros plurais é o melhor antídoto contra o vírus do niilismo que corrói as nossas sociedades". Mais do que um direito, Álvaro Vasconcelos pergunta então, se a memória como dever, como imperativo ético?
Sem dúvida, é um dever. E essa ideia do dever da memória foi desenvolvida por Primo Levi ao sair de Auschwitz, quando escreveu E se isto é um homem. Tendo ele vivido o horror da desumanização do outro em Auschwitz, achou que tinha a obrigação ética e moral de afirmar o que tinha visto, dar a conhecer de uma forma mais ampla possível, o horror da barbárie, do fascismo e do nazismo. E nós vivemos num período histórico que eu classifico de contra cultural no livro. Ou seja, aqueles valores que foram conquistados nos anos 60 da igualdade, da liberdade, a da luta contra o racismo, da autonomia dos povos, hoje é posto em causa um pouco pelo mundo inteiro. É esta contrarrevolução cultural que põe em causa tudo o que há de essencial das conquistas dos anos 60.
O que é que foi mais difícil nesses anos do exílio?
Portugal era o país da ditadura. Eu tinha vivido em África e tinha assistido àquilo que era o colonialismo e os trabalhos forçados. E, portanto, não tinha razão para nostalgia e saudades de Portugal e muito menos da África colonial. Mas evidentemente que viver no exílio tinha duas dimensões: uma dimensão que era extremamente positiva, que era vivermos em liberdade. Nós descobríamos em Paris a liberdade. Ainda por cima num momento muito particular, que foi o momento de Maio de 68 e do seu prolongamento nos anos seguintes. Em termos de ideais de desenvolvimento do movimento de libertação das mulheres, foi um acontecimento extremamente importante. Então, todas essas transformações faziam de Paris para nós a cidade da Liberdade, uma cidade que nos foi extremamente hospitaleira. Portanto, desse ponto de vista, não podemos dizer que fosse difícil viver no exílio, porque era um exílio libertador. Para muitos, o exílio é algo de terrível do ponto de vista da angústia de viverem fora da sua família, de viverem fora do seu país e tem uma noção do exílio extremamente negativa. Para mim, como para outros da minha geração, que vivemos em Paris, vivemos num ambiente de liberdade e de liberdade em contacto com os emigrantes portugueses que vinham da miséria, fugindo à miséria de Portugal ou à guerra colonial, o que nos permitia uma ação política mais aberta, mais fácil do que aquela que existia em Portugal. Ao mesmo tempo, evidentemente que as condições económicas e sociais do exilado são sempre difíceis. As minhas eram menos difíceis que as de muitos. No meu caso particular, como tive a generosidade do apoio dos meus pais durante um bom período de tempo, eu tinha que ainda, evidentemente, fazer pequenos empregos em trabalhos temporários para completar o apoio que me davam os meus pais. Mas, digamos, não posso dizer que vivi no exílio numa situação de extrema dificuldade económica ou social. No entanto, para dar um exemplo, eu quando cheguei a França fui viver para um bairro que era naquela altura o bairro mais chique de Paris, num prédio luxuoso. Mas eu vivia no quarto da criada, que era toda uma secção no último andar do prédio, onde chegava por uma escada em caracol de sete andares exterior, Inverno, verão, o que fosse. E eu ali, mais do que pensar em mim, na dificuldade de subir aquela escada, pensava na condição das mulheres empregadas domésticas, que viviam em situações extremamente difíceis e que serviam em casa de patrões extremamente ricos, com todas as condições, as melhores condições do mundo, e elas viviam num num pequeno quarto de oito metros quadrados, que não tinha casa de banho, portanto era mais a condição social dos outros que eu, naquela altura, dada a minha militância política, me criava empatia, me criava compaixão e não a minha própria situação, que não era assim tão grave como isso.
Mas já que me fala das condições de partida, de uma forma geral, o exílio foi emancipador para todos os emigrantes ou apenas emancipador para aqueles que já tinham mais qualificações e já pertenciam, seja por berço, seja por educação posterior, a uma elite em Portugal?
Não, Sem dúvida que o exílio também foi emancipador para os imigrantes. Os imigrantes vinham de Portugal com muito medo da política e muito medo do comunismo. E chegaram a Paris nos anos 60 e depois viveram aquele momento extremamente conturbado de maio de 68. E eu conto no livro Histórias de portugueses que regressaram a Portugal com medo que o comunismo ia tomar o poder em França, tal era o papão do comunismo que tinha sido, evidentemente induzido nos emigrantes pela propaganda salazarista. Há uma história que me foi contada por Hélder Costa, o encenador de teatro, que conta a história de um português que veio a pé para Portugal porque não tinha meios para vir outra maneira, para fugir do Maio de 68. Portanto, isso mostra um pouco a dificuldade do contacto que nós tínhamos com os emigrantes e a dimensão, digamos, do obscurantismo em que eles tinham vivido em Portugal, que lhes tornava muito difícil a relação com a liberdade. Mas com o tempo, eles foram descobrindo que havia sindicatos, começaram a ter reivindicações, abandonaram os bairros de lata e foram viver para outros locais, educaram os seus filhos, os seus filhos, fizeram cursos liceais e universitários. E esse ambiente teve um grande impacto. E eu acho que, em parte, é uma das razões do 25 de Abril. Ou seja, o facto de mais de 1 milhão de portugueses ter vivido a liberdade, também contaminou a sociedade portuguesa porque não era alheia a esses imigrantes. Continuavam a ter uma forte relação com Portugal. E as ideias contaminam-se. E todo aquele movimento emancipador que se vivia em França acabou também por ter um impacto em Portugal. Sim, eu acho que a emigração foi a descoberta da liberdade e da democracia. E uma coisa muito interessante: foi também a descoberta pelas mulheres portuguesas do direito à igualdade. Eu lembro ter ouvido esta conversa no bairro de lata Sandrini, o bidonville Sandrini, em que um homem queria mandar na mulher, para ela fazer qualquer coisa, e ela responde-lhe: 'Olha aqui já não mandas só tu, Mandamos os dois'. Portanto, era um ambiente muito diferente, não é?
Das pessoas que conheceu no exílio, que opinião guarda de Camilo Mortágua?
Guardo muito boa opinião de Camilo Mortágua. Conheci o Camilo Mortágua em Bruxelas, quando ele era dirigente da LUAR e a Liga Unida de Acção Revolucionária. E eu tive uma relação muito boa com ele lá. Era uma pessoa extremamente convicta do objetivos da luta pela liberdade. Inscrevia-se numa corrente que eu diria que é a corrente que vinha do republicanismo que tentou durante várias gerações depois da imposição do Estado Novo e do 28 de Maio, do golpe militar que pôs fim à Primeira República, manteve-se uma tradição do contra, pessoas que tentaram por golpes militares, como um dos meus tios, que eu conto essa história também num dos meus livros, que marchou sobre Lisboa. Portanto, o Camilo Mortágua inscrevia-se nessa tradição republicana de luta pela liberdade. Ele esteve no assalto ao Santa Maria. Foi, de facto, para nós um herói revolucionário. Não se inseria nas correntes ideológicas que eram dominantes, não era marxista leninista, não era comunista. Era um lutador pela liberdade de uma tradição claramente republicana.
Conheceu no exílio também o José Mário Branco, mas escreve no livro que ficou algo por lhe dizer. Quando voltou a encontrar em Lisboa.
Sim, é muito interessante. Eu conheci no exílio os mais importantes representantes da nova canção portuguesa, como chama Sérgio Godinho, que não lhes chama a canção de protesto e muito menos baladeiros. Chama-lhe a nova canção portuguesa. E um deles era o José Mário Branco, que eu, quando estava em França, lancei um jornal que se chamava ao jornal O Salto e à volta do jornal O Salto, organizei uma série de atividades associativas de festas, nomeadamente os Jogos Florais da Emigração Portuguesa, em que participou José Mário Branco, Sérgio Godinho, o Fanhais, etc. O Zeca Afonso participou numa dessas festas. E, portanto, havia uma atividade cultural muito intensa. E essa nova canção portuguesa só foi possível se desenvolver em França e o José Mário Branco era certamente um dos mais profissionais dessa corrente e um dos cantores com mais prestígio. E cantava a liberdade e a revolução. E quando houve os Primeiros Jogos Florais da Emigração Portuguesa, o José Mário Branco concorreu porque era um concurso. Vinham imigrantes de toda a Europa e que eh cantores e artistas, na área do teatro, da música, da fotografia, etc. E o Zé Mário Branco participou no concurso de canção com a canção que se tornou muito popular: "A cantiga é uma arma". Uma arma é uma arma de pontaria. Ele disse que cantou para cerca de duas mil pessoas. Há também uma dimensão do que foi a festa. O júri queria dar o prémio ao Zé Mário Branco, mas nós estávamos num momento em que as organizações da sociedade civil tinham uma enorme influência dos partidos políticos, que. no fundo, as construíam, não é? E nós fazíamos parte de um partido político que era o Partido Marxista-Leninista Português, um partido maoísta e a direção do partido que eu fazia parte decidiu que o José Mário Branco não podia ganhar o prémio da Canção. Eu gostaria de ter explicado ao Zé Mário Branco o como acho que a reflexão toda que eu fiz e que faço nesse livro, como esta contradição, que é extremamente importante entre aqueles que lutavam como nós pela liberdade, mas ao mesmo tempo tinham como referência ideológica regimes que eram totalitários, como neste caso a China, a União Soviética, se quisermos. E foi isso, penso eu, esse dogmatismo que levou a que o prémio não tivesse atribuído sido atribuído a José Mário Branco. Depois do 25 de Abril, nós seguimos caminhos diferentes. Eu assumi claramente o projeto de um Portugal democrático, democracia liberal integrado na União Europeia. Não foi exatamente esse o caminho do José Mário Branco. Mas eu, quando o vi uma vez, numa loja de comércio em Lisboa, quis falar com ele a explicar-lhe aquilo que se passou nos Jogos Florais. Como aquilo foi contra o direito à liberdade e como ele mereceria ter recebido o prémio e ao mesmo tempo aproveitar para conversar com ele sobre a democracia, sobre a liberdade e sobre tudo aquilo que tinha mudado em Portugal desde o 25 de Abril de 1974.
Mas isso acabou por não acontecer...
Acabou por não acontecer porque, infelizmente, José Mário Branco morreu e nós nunca tivemos essa conversa. Mas, por exemplo, para dar lhe um exemplo de como as coisas mudam com o tempo. Eu entrevistei para este livro vários dos intelectuais que viviam em Paris, como por exemplo o Hélder Costa e o Sérgio Godinho, não é? Nós éramos da mesma corrente geral de oposição à ditadura e de referências a um certo maoísmo, o maoísmo, que nós classificámos como maoísmo libertário, mas que não deixava de ser maoísmo. Quando conversei com o Hélder Costa, ele lembrou-se dos conflitos que tínhamos em Paris, entre os grupos antagónicos que não deviam ser antagónicos porque tinham o mesmo objectivo, o derrube da ditadura, não é, além do fim da guerra colonial. Mas que, na prática, eram antagónicos porque o sectarismo nessas organizações era muito grande. E tive uma conversa extraordinária com o Hélder Costa. E compreendemos que convergimos hoje no essencial. E, portanto, há aí um diálogo que é absolutamente essencial. O Sérgio Godinho é diferente porque eu acho que o Sérgio Godinho é o melhor representante da geração de 60, pelo menos do ponto de vista artístico. Porquê? Porque o Sérgio Godinho combina referências fundamentais para a sua arte, como a contracultura americana dos hippies, os beatniks com o Marx ou um certo marxismo europeu. Nunca que ele se tenha assumido de uma forma muito clara como marxista. Mas tem essa influência, não é? E se nós olharmos para as suas canções, vemos que as suas canções não são só revolucionárias, mas são todas libertárias, são todas de afirmação de uma sociedade não conservadora, de alternativa a uma sociedade extremamente patriarcal, que era a sociedade em que nós nascemos, em que nasceu o Sérgio Godinho, nasci eu, em que que nasceu o Hélder Costa e em que nasceu o José Mário Branco.
Exílios sem Saudade, de Álvaro Vasconcelos, segundo volume das Memórias em Tempo de Amnésia.