A pandemia do coronavírus obrigou ao fecho de quase todos os tablaos flamencos da capital espanhola. Os empresários pedem o apoio do Ministério e os artistas denunciam as condições de precariedade.
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As palmas e o sapateado deixaram de se ouvir em Madrid quando começou a pandemia. Uma atrás da outra, as casas de flamenco, os chamados "tablaos flamencos", foram fechando as portas. "Em Madrid antes da pandemia havia 22 tablaos flamencos, neste momento há 16, mas estão em risco de desaparecer", diz Juanma del Rey, presidente da Associação Nacional de Tablaos Flamencos.
Del Rey é dono de uma das casas com mais história em Madrid. Pelo Corral de la Moreria, fundado em 1956, passaram alguns dos artistas mais importantes do Flamenco espanhol. Depois da pandemia, esteve fechado 13 meses. Agora, com o aligeirar das restrições, voltou a abrir - só aos sábados, para matar saudades e tentar permanecer vivo. Porque, sem os tablaos, é o próprio flamenco que está em risco.
"Os tablaos flamencos são a universidade do flamenco. É onde os artistas se reúnem para partilhar o conhecimento, o desenvolvimento, a criação, a improvisação. Os tablaos dão trabalho a 95% dos artistas de flamenco. Se desaparecerem, desaparecem esses 95% de artistas e, praticamente, desaparece o Flamenco", avisa.
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Para evitar o fecho definitivo, a Associação pede o apoio do Ministério da Cultura. Pelos seus cálculos, serão necessários 19 milhões de euros para que os cerca de 100 tablaos que existem em todo o país consigam sobreviver até ao ano que vem, altura em que, esperam, a situação volte ao normal. "Os tablaos têm circunstâncias muito próprias, somos sítios pequenos, com pouco público. Com as limitações de lotação, torna-se impossível abrir de forma rentável."
Nesta altura, os artistas tentam sobreviver. A maioria acumula anos de precariedade e muitos trabalhos sem contrato que os deixaram sem possibilidade de aceder às ajudas do Governo para o setor. "Trabalhamos muitas vezes sem descontar para a segurança social, ou sem o fazer no regime que nos corresponde, que é o dos artistas. Se não fazes os descontos corretos, não podes aceder a essas ajudas", denuncia Miriam Reimundez.
A Associação de Tablaos Flamencos diz que esses casos são minoria e que a associação faz o que pode para perseguir as ilegalidades. Miriam garante que é algo conhecido e que acontece há anos: "Neste caso, é culpa dos empresários, que, durante muitos anos, não te inscreviam no regime correto, porque, segundo eles, é muito caro". Por cada atuação num tablao, os artistas recebem cerca de 50 euros. "Alguns pagam mais, 85, 90, mas muitas vezes só declaram metade."
"Doa Flamenco"
Quando a pandemia chegou, Miriam sabia que muitos artistas iriam passar dificuldades. Com um grupo de artistas, criou o movimento "Doa Flamenco", um banco alimentar que usa uma das salas vazias da escola de flamenco Amor de Dios para guardar os alimentos que depois distribui por pelo menos 25 famílias em Madrid. "Sabíamos que ia começar a haver problemas de gente que não tinha, literalmente, para comer. Inclusive famílias inteiras, porque no Flamenco, muitas vezes, há famílias inteiras que são artistas e em que ficaram todos sem trabalho."
Nas prateleiras que forram a sala, acumulam-se pacotes de massa e arroz, frascos de grão, latas de atum e conservas, fraldas, produtos de higiene e de limpeza. "Há mais gente a passar dificuldades do que os que vêm aqui pedir ajuda. Mas não é uma situação fácil. Muita gente tem vergonha de reconhecer que não tem nem para comer", explica.
Miriam, "La Arquilleja", tem 39 anos e uma vida dedicada ao Flamenco. Começou a dançar com 16 anos, mas só tem sete de descontos laborais. "E eu sou uma das privilegiadas. Porque, felizmente, esta crise apanhou-me a trabalhar legalmente e com tempo de descontos suficientes para poder pedir a ajuda do Governo. Em junho acaba [o apoio] e não sei bem o que fazer", conta.
Para esta bailarina - "bailaora" na gíria do Flamenco -, é tão difícil imaginar um futuro fora dos tablaos como dentro. "O Flamenco é a minha vida, mas, quando começas a pensar no futuro, é muito difícil continuar. Tenho 39 anos e nunca consegui sair de casa dos meus pais. No futuro, não sei sequer se vou ter reforma... vou viver de quê?"
Miriam passeia pelos corredores da escola Amor de Dios com um misto de nostalgia e tristeza no olhar. "Num dia normal, isto está cheio. Há aulas particulares, artistas que vêm ensaiar... agora não há ninguém... parte-se-me a alma."
Belén López, bailaora e Premio Nacional de Flamenco, dedica-se às aulas particulares desde que a pandemia começou. "Não há muitos alunos, as pessoas também têm medo de vir às aulas e muitas já não as podem pagar, mas sou muito grata por poder calçar os sapatos todos os dias e dançar", conta.
Desde que a pandemia começou, as aulas são a via de escape para os artistas que ficaram sem a sua principal forma de expressão. "Os tablaos são tudo para um artista flamenco. É onde os artistas se formam, onde crescem, onde ganham experiência... todos têm de passar pelos tablaos. Era a nossa rotina... e bendita rotina", diz Belén. "Quando entras num tablao, nunca sabes o que vai acontecer e isso é mágico. É autêntico, é sempre diferente e sempre acontece alguma coisa bonita, que te arrepia, que te emociona..."
Perda irreparável
Os 15 estúdios de dança da escola, habituados a transbordar de palmas e sapateado, entre ensaios de artistas e aulas particulares, estão agora vazios a maior parte do tempo. Javier Sanjuán, filho do dono, vai de sala em sala e fala de uma perda irreparável. "Estamos a perder uma cadeia de transmissão que é fundamental e que se faz do encontro de artistas nos tablaos. A forma de subir ao palco, a forma de animar o público... Vamos perder estas gerações de artistas que já andavam pelos 60 anos, que têm uma experiência e um acervo cultural enorme e que se vão retirar com esta paragem, e isso vai ser uma tragédia, porque perdemos parte dessa herança cultural."
Todos - artistas e empresários - apontam o dedo às autoridades do país que descuidaram o Flamenco, considerado Património Imaterial da Humanidade pela UNESCO. "Em todos os países há música, dança, museus... muitas expressões artísticas que se têm de proteger. Mas tablaos flamencos só há em Espanha. Não existem em nenhum outro lugar do Mundo. É nosso, faz parte da nossa identidade. Se não os proteger o nosso Ministério da nossa Cultura, quem os vai proteger?", pergunta Juanma del Rey.
Falta investimento estatal, mas falta também que o público espanhol, que durante anos se afastou do Flamenco, volte a apaixonar-se por ele e a encher as salas que agora sobreviviam quase só com turistas. "Eu criei-me num bairro da Andaluzia, onde o Flamenco se ouvia a todas as horas. Estava nas ruas, na senhora que vinha estender a roupa, nos bares... era parte da nossa identidade e da nossa forma de viver", lembra Belén López. "Agora parece que nos convencemos de que o Flamenco é uma coisa para estrangeiros e não é assim. Faz parte do nosso ADN, daquilo que somos e sentimos."
Se nada se fizer, avisam, a pandemia pode acabar com uma herança cultural que nunca se poderá recuperar. "Isto é um drama. Um drama pessoal, porque há muita gente que viajou pelo mundo inteiro para representar Espanha e divulgar o Flamenco e que agora não tem sequer o que comer, mas é também um drama cultural", frisa Javier Sanjuán. "Vamos perder uma linha de transmissão de que, se calhar, jamais nos vamos recuperar. E isso vai empobrecer-nos de uma forma absolutamente definitiva como sociedade e como cultura."
Nas paredes da escola Amor de Dios, as fotografias de artistas consagrados e os trajes nas vitrinas, lembram os dias em que o sapateado, as palmas e o canto se ouviam à entrada, muito antes de subir a escadaria que leva à entrada, no primeiro andar. Agora há um silêncio que faz eco e estúdios vazios à espera que o flamenco, como o resto da vida, regresse à normalidade.
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