Portugueses de "primeira e segunda" e o princípio da igualdade: nova lei da nacionalidade "no limite da constitucionalidade"
Portugal está a assistir a mudanças numa lei "estrutural" do Estado feitas ao "sabor de considerações conjunturais e de preconceitos de caráter ideológico". No Fórum TSF, constitucionalista e advogados alertam para os perigos desta situação
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As alterações à lei da nacionalidade estão, "pelo menos, no limite da constitucionalidade" e, por isso, o constitucionalista Vitalino Canas e a Ordem dos Advogados defendem que o Presidente da República deve remeter a proposta para apreciação do Tribunal Constitucional. Em causa está a possibilidade da violação do princípio da igualdade e da afirmação da existência de "portugueses de primeira e segunda".
Ouvido no Fórum TSF desta quarta-feira, o constitucionalista Vitalino Canas defende que a lei deve ser "apreciada" pelo Tribunal Constitucional, uma vez que as alterações propostas estão, "pelo menos, no limite da constitucionalidade", se não forem mesmo inconstitucionais.
"E o Presidente da República - como um dos garantes da Constituição, na medida em que tem a possibilidade de submeter a fiscalização preventiva a normas jurídicas - será sensível à natureza estrutural desta lei e à natureza delicada de muitas alterações que aqui são feitas", afirma.
Vitalino Canas confessa ainda ser a favor do alargamento das regras que permitem aos cidadãos estrangeiros obter a nacionalidade portuguesa, já que, num mundo cada vez mais global, "um dos fatores competitivos dos países é terem dimensão humana".
Do ponto de vista estratégico, diz, Portugal está a assistir a mudanças numa lei "estrutural" do Estado feitas ao "sabor de considerações conjunturais e de preconceitos de caráter ideológico". E alerta para o perigo desta condição.
"Os países que não têm dimensão humana, ou que vão perdendo - como é o caso de Portugal, que está em risco disso - tornam-se menos competitivos em todos os setores", sustenta.
O bastonário da Ordem dos Advogados, João Massano, assinala também a importância do crivo do Tribunal Constitucional para "clarificar a situação, dado o seu relevante impacto na sociedade".
"É fundamental - até para pacificar as coisas - que, se o Presidente da República tiver dúvidas sobre a constitucionalidade, faça o pedido de fiscalização preventiva", entende.
Apesar de recusar fazer "juízos de inconstitucionalidade", admite que há matérias que "podem suscitar dúvidas" e insiste que, devido à "conflitualidade social que esta lei tem vindo a provocar", é fundamental que não subsistam incertezas.
Aponta, desde logo, como exemplo o artigo que prevê que a obtenção da nacionalidade só possa acontecer ao fim de dez anos de residência legal em Portugal, sendo o prazo de sete anos para cidadãos de países de língua portuguesa e UE. O bastonário explica que esta distinção pode "violar o princípio da igualdade". O mesmo problema se levanta com a proposta para que quem seja condenado por crimes graves perca automaticamente a nacionalidade portuguesa, salvaguardando que não fica apátrida, pelo que esta condição só se aplica a situações em que a pessoa tem mais do que uma nacionalidade.
"Pode ou não levantar a questão de haver cidadãos portugueses de primeira e de segunda, que é algo que nunca existiu na Constituição. Não quer dizer que a Constituição não o aceite e que não venha a dizer que é uma situação que não viola, mas levanta questões", alerta.
As alterações à lei da nacionalidade, que partiram de uma proposta do Governo, foram aprovadas na terça-feira em votação final global pelo PSD/CDS, Chega e IL, ultrapassando a fasquia exigida de maioria absoluta, 116 em 230 deputados. As mudanças obtiveram 157 votos favoráveis e 64 contra, resultado que representa uma maioria superior a dois terços.
O primeiro-ministro afirmou, mais tarde, que o Executivo não quer "portugueses de ocasião", salientando que não é preciso ter a nacionalidade para trabalhar no país, e prometeu para breve novas regras para o repatriamento de imigrantes em situação ilegal.
Na versão final da proposta, constará que a obtenção da nacionalidade será possível só ao fim de dez anos de residência legal em Portugal, sendo o prazo de sete anos para cidadãos de países de língua portuguesa e da União Europeia.
Entre outras mudanças, passará a existir uma nova obrigatoriedade de comprovação, através de "teste ou de certificado", de os requerentes de nacionalidade "conhecerem suficientemente a língua e a cultura portuguesas, a história e os símbolos nacionais".
Mais consensual, embora tenha merecido o voto contra do Livre, foi a condição imposta aos requerentes de nacionalidade de não terem sido condenados, com trânsito em julgado da decisão, "com pena de prisão igual ou superior a dois anos".
Na fase de especialidade, PSD e CDS introduziram um acrescento nas condições de acesso à nacionalidade, esta relativa a garantias de meios de subsistência para quem reside em território nacional - um acrescento que o PS classificou como "uma cedência ao Chega" e que levou Pedro Delgado Alves a alertar para "riscos de injustiças".
Também como a oposição do PS, as crianças nascidas em Portugal só terão nacionalidade se "um dos progenitores resida legalmente em território nacional há pelo menos cinco anos" - outra medida apoiada pelo Chega.
Por outro lado, por proposta do Governo PSD/CDS, acaba a naturalização dos nascidos em Portugal filhos de estrangeiros que se encontrem ilegalmente no país. Na lei ainda em vigor, abre-se a possibilidade de naturalização aos que sejam "filhos de estrangeiro, independentemente de título".
No diploma que saiu da fase de especialidade consta a norma de que a nova lei entrará em vigor no dia seguinte ao da sua publicação.
