Rui Tavares: "Um Presidente da República não pode começar o seu mandato já entalado"
Na Entrevista TSF/JN, o dirigente do Livre critica António José Seguro por admitir dar posse a um Governo do Chega, defende a candidatura presidencial de Jorge Pinto e garante que esse apoio "não condiciona" o Livre.
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Esta semana o deputado Jorge Pinto manifestou a intenção de avançar com uma candidatura presidencial. É a prova de que fracassou a ideia do Livre de uma candidatura única no campo da esquerda, como sugeriu?
Bem, em primeiro lugar, eu creio que o Jorge tem um gesto de uma grande generosidade e de uma grande coragem também. O Jorge Pinto hoje é deputado, mas ele fez quatro eleições com o Livre, nas quais, para disputar essas eleições, abandonava o emprego bom que tinha em Bruxelas. O Jorge é engenheiro do ambiente, trabalha há muitos anos nas instituições europeias, fez o doutoramento em Filosofia, é autor de livros também de ficção, mas sempre com o coração no país e a vontade de voltar e de ajudar, e isso é um sinal de que temos um cidadão inteiro.
O que eu disse sempre foi que não seria tão interessante cada partido ter uma candidatura partidária e que seria muito importante nestas eleições, também no momento, no contexto político em que estamos, que uma personalidade independente pudesse surgir, ser mais agregadora, transcender as fronteiras dos partidos. Não só o disse, como tentei estimular o debate público e para lá do debate público. Não podendo confidenciar que conversas privadas é que tive, com quem é que falei, mas toda a gente conhece de quem é que falei. Pessoas que vão desde Lídia Jorge, Helena Roseta, Elisa Ferreira, Mário Centeno, Sampaio da Nova, tudo figuras que são figuras ímpares na nossa sociedade, na nossa República. Eu creio que os partidos, os primeiros a prevaricar, foram, no fundo, ocupando o espaço e diminuindo a amplitude do que nós poderíamos fazer politicamente. Era aliás um dos problemas, disse-o quando se comentava a candidatura de Sampaio da Nova, e já na altura havia uma teoria política que eu não consigo bem perceber, que é alguém tirou a senha primeiro e Sampaio da Nova não poderia avançar porque isso dividiria. E eu dizia, já na altura, vamos lá ver se isso não vai resultar em que, porque Sampaio da Nova, que poderia agregar para lá do espaço partidário, não avança, depois o PCP avança, o Bloco avança, o Livre é neste momento o maior partido à esquerda do PS e, portanto, tem um papel e uma responsabilidade particular a desempenhar. Portanto, é um cenário que existe, que não podemos negar, nós combatemos contra ele, mas é o cenário que está. No cenário que está, é preciso tomar decisões, é preciso não deixar sem representação um campo que é um campo progressista, um campo da ecologia, um campo de um europeísmo de esquerda que é vigoroso, que é crítico daquilo que a União Europeia faz de mal, mas que acredita no projeto europeu e que não está representado. Veja-se a tibieza com que o próprio PS reage à apresentação de candidatura e à aprovação de candidatura de António José Seguro, veja-se a forma como António José Seguro, por exemplo, se limita a dizer que mecanicamente indigitará primeiro-ministro até o primeiro-ministro da extrema-direita, se tiver um voto a mais. É uma leitura republicana inteiramente diferente.
Se as estruturas do Livre ainda não se pronunciaram, como pode garantir que Jorge Pinto tem o respaldo do Livre como partido e não é apenas o candidato da direção?
Temos que separar as duas coisas claramente. Eu fiz uma descrição daquilo que é a minha apreciação, que é também evidentemente tingida por um plano pessoal de conhecimento do Jorge Pinto, nesta primeira pergunta. E essa segunda pergunta remete-me para um papel, que é o meu papel como co-portavoz do partido. O partido tem que demonstrar saber responder aos tempos da política. Os outros partidos avançaram e não é o Livre quem vai beneficiar o infrator e também não vai ser prejudicado. Foi enviada uma proposta da direção do partido para a Assembleia do partido com o calendário para o debate e a realização de uma consulta interna, isso vai ser discutido, essa metodologia vai ser deliberada pela Assembleia do próprio Livre. Evidentemente que não temos todo o tempo no mundo porque sabemos que as televisões neste momento estão a marcar os debates e não queremos que nos volte a acontecer o que já aconteceu no passado, com as televisões a organizarem-se para excluir o Livre.
E o facto de o Rui Tavares, cofundador do Livre, já ter declarado o apoio a Jorge Pinto não condiciona o espírito da discussão interna?
O que eu fiz foi os maiores elogios ao Jorge Pinto porque acho que ele os merece. Eu acho que o Livre, que tem uma tradição inclusive de fazer primárias, que não é o caso porque em presidenciais não são primárias internas do partido que se fazem, uma vez que o candidato não é um candidato especificamente do partido, o Livre não tem um comité central que apresente o candidato num palco da sede do partido e que diga aqui está. E quando eu digo isto não estou só a falar do PCP que tem efetivamente um comité central, mas quando a Iniciativa Liberal apresentou na altura à Mariana Leitão, que depois acabou por se retirar, foi desta forma. Isto parte de uma iniciativa individual. Fiquemos descansados que nunca condiciona nem condicionará qualquer debate dentro do Livre. Costumo contar que havia dois nomes à escolha no partido, eu votei em Progressistas que na verdade é o nome que não foi escolhido, portanto, logo desde o início as pessoas no Livre são muito livres para escolherem da maneira como preferirem.
O facto de, como disse há pouco, António José Seguro ter tirado a senha da farmácia mais cedo condicionou o processo? Houve uma tentativa por parte do Livre de contactar a candidatura de António José Seguro para saber se haveria a tal abertura para a convergência e para que a esquerda não fosse a tal máquina, como já disse, de perder eleições presidenciais?
Se condicionou, por exemplo, o Partido Socialista, não sei, mas ao Livre não condicionou, nem condicionaria. Devo dizer várias coisas, a primeira é que tenho respeito por António José Seguro e tenho estima por ele e que temos contatos pessoais que não são muito frequentes, mas que ocorreram sempre num ambiente de grande cordialidade. É conhecido que, em 2014, António José Seguro me tentou levar para as listas do PS às eleições europeias e que na altura eu disse que não, muito pelas mesmas razões que me continuam a separar de António José Seguro politicamente. Na altura, por exemplo, António José Seguro foi a favor de Portugal ser um dos primeiros países a aprovar o Tratado Orçamental, que era um tratado que ainda procurava cristalizar mais a austeridade. E aí houve uma cisão muito grande na esquerda, não estou a dizer na esquerda entre partidos, mas na esquerda como um todo. Houve muita gente que disse que não, Portugal não perdia palavra na União Europeia por causa de um momento político ser um momento difícil. Isso depois levou a que se criasse um campo, uma base social de apoio, que foi a que virou a página à austeridade e no fundo aquela que defendeu a geringonça e uma solução de convergência. Essa base de apoio não é a de António José Seguro, porque não é a sua posição política. António José Seguro, hoje, na maneira como se posiciona em relação a Passos Coelho, em relação a André Ventura, em relação a uma ausência de debate sobre uma possível mudança da Constituição, tem uma posição que é respeitável, que é a sua, que certamente vê como estando certa, mas que não é aquela em que eu me revejo e eu acredito que grande parte da esquerda não se revê, e acho que grande parte da esquerda socialista não se revê nessa posição, e isso é aquilo que vai enriquecer o debate. Se por acaso resultar do debate que as pessoas aproximem posições, que reconheçam que há posições melhores, bem, isso é ótimo, isso é próprio do debate, isso é a razão porque nós temos de estar presentes.
Mas apresentar um candidato com 38 anos, como disse há pouco, ainda sem um historial político substancial, não é um risco? Esta é uma candidatura, efetivamente, para levar até ao fim?
Bem, eu espero que vocês entrevistem o Jorge Pinto, provavelmente várias vezes, e só ele poderá responder a essa pergunta, e só ele responderá bem a essa pergunta. O que eu acho é que a presença de uma nova geração neste palco principal da política portuguesa só pode servir para fazer isto que eu estava a dizer, e aí desse ponto de vista isso é mais importante, porque tem mais fôlego, tem mais prazo, até do que apenas o limite das eleições presidenciais.
E numa eventual segunda volta, o Livre vai deixar uma indicação de voto?
O Livre estará à altura das suas responsabilidades, como na primeira volta, fará o debate com a seriedade que será exigível, com a transparência que será exigível, evidentemente sendo um partido político e também tendo atenção ao contexto, quer dizer, os partidos políticos têm que saber estar à altura, apresentar boa cara perante as adversidades, perceber-se que conseguem, às vezes, fazer coisas tão simples quanto um partido, que ainda é um partido pequeno como o livro, decidir adiar um congresso, como aconteceu ainda recentemente por causa da tragédia do Elevador da Glória, e qual é que foi a notícia? A notícia é que não houve notícia, a notícia é que adiamos um congresso, fazemos o congresso uma semana depois e não se dá por isso, e isso para nós é uma discreta medalha. Na segunda volta, no final das eleições, na relação com o Presidente da República, seja ele oriundo do nosso partido ou de outros partidos, saberemos sempre ter esse espírito republicano.
E no caso dessa segunda volta, ter Marques Mendes e Gouveia Melo ou Gouveia Melo e André Ventura, será caso para engolir sapos ou voto em branco?
Não ponha um co portavoz de partido perante cenários hipotéticos, porque, como sabe muito bem, é uma pergunta à qual é fácil responder dizendo que não se responde a cenários hipotéticos.
Tendo em conta a fragmentação política que existe nesta altura, faz sentido colocar em cima da mesa a questão da possibilidade de alterar os poderes do Presidente da República, através obviamente de uma revisão constitucional?
Quem tem o único poder de alterar os poderes do Presidente é a Assembleia da República durante um processo de revisão constitucional, que é aliás uma competência exclusiva da Assembleia da República, na qual o ou a Presidente só pode ter uma palavra a dizer, perante não o processo de revisão constitucional, mas perante o próprio Parlamento, que é, se considerar que aquele processo de revisão constitucional está a ir longe demais e não tem a validação, não tem o mandato, não foi discutido pelos portugueses, aí nesse caso, dissolver a Assembleia para levar o país a novas eleições, para se comprovar ou não se dois terços dos portugueses querem mesmo pegar no regime, rasgar a Constituição e apresentar outro regime.
Eu estou a colocar-lhe, obviamente, uma questão hipotética, até porque o Luís Montenegro já disse que não vê a revisão constitucional uma prioridade...
Mas o Luís Montenegro também disse que não é não. Peço desculpa, a palavra do Luís Montenegro em relação a esses temas, para mim vale pouquíssimo e é com muita tristeza que o digo, porque um Primeiro-Ministro deve ter uma palavra em quem se possa confiar mais e ser mais sólida, mas o Luís Montenegro não a tem, digo com frontalidade, mas com tristeza também. Podia ser um Primeiro-Ministro que eu continuasse a não concordar, que não fosse da minha família política, mas eu tenho que poder levar a sério essa palavra.
Então acredita que pode uma eventual maioria constitucional, que inclua também o Chega, nesta legislatura, apesar do que disse Luís Montenegro?
O que eu sei é que posso estar completamente errado ao fim do dia, e mais, desejo estar errado ao fim do dia, porque acho que Portugal tem imensos problemas, mas não tem um problema constitucional. A nossa Constituição não nos impede de nada, não nos impediu até hoje de nada. Pelo contrário, conseguiu trazer-nos a bom porto, e foi essa Constituição que essa geração que agora estamos a perder nos ligou. No entanto, devo dizer que eu, se estiver errado no fim do dia, não estive em cada um dos passos. E o que nós podemos ter agora é que o grande partido do centro-direita, mas que está radicalizado, com um partido neoliberal, ou ultraliberal, que considera que tudo que a Constituição tem de social deve ser retirado, direito ambiental, direito do trabalho, direito do consumidor, e deve ir para a lei, e não para a Constituição, portanto, menos proteção, e um partido de extrema-direita que até acha que é preciso rebentar com esta república, que eles dizem que é a terceira, para iniciar a quarta. Não é a minha contagem, esta é a segunda república, pela razão que o Estado Novo se chama Estado Novo e portanto, como Mário Soares, eu acredito que esta é a segunda república, e não quero uma terceira, esta é a melhor república que nós já tivemos. De cada vez, como com a lei dos estrangeiros, lei da nacionalidade, vamos ver o Código do Trabalho, de cada vez que a bola bate na trave da Constituição, aí começam primeiro na IL, depois no Chega, mas Miguel Relvas também já vai falar disso, é preciso mudar a Constituição, ou é preciso nomear os juízos do Tribunal Constitucional que estão de acordo com a nossa interpretação da Constituição. Se o Livre apresentasse uma lei, sobre o que quer que seja, tão mal feita como aquela da burca, que o Chega apresentou, alguém acredita que o PSD votaria a favor na generalidade? Alguém acredita que o PSD deixaria ir para a especialidade? Não, ouviríamos toda a gente rasgar as verdes e se calhar bem, e dizer, não senhor, nós temos que legislar bem, percebemos a intenção, mas isto não pode ser mal feito, etc. Com o Chega, pode ter o chumbo da Ordem dos Advogados, pode ser o chumbo do Conselho Superior do Ministério Público, pode ter o chumbo de toda a gente, mas o PSD está ali para aplaudir e ir atrás, porque sentem...
O Chega está a condicionar o PSD?
Isso é claríssimo, não é preciso ser um brilhante analista político, está a ser condicionado, está a ir atrás da agenda do Chega. Portanto, eu não tenho grande confiança que numa revisão constitucional com o ambiente certo, não haja violações aos direitos de liberdade e garantias, porque mesmo nesta lei que acabámos de falar, a Ordem dos Advogados e o Conselho Superior do Ministério Público dizem exatamente isso. E não sei se já se deram conta, não foi uma lei que foi aprovada por maioria, foi aprovada por dois terços, houve uma maioria constitucional a votar favoravelmente uma lei que é a Ordem dos Advogados, que não são esquerdistas, que o Conselho Superior do Ministério Público diz que está feita com os pés. Quer dizer, isso sou eu que digo, mas é a minha interpretação das palavras deles. Portanto, esta direita, neste momento, está em roda solta, tal como no tempo da austeridade a achar que tudo lhe é permitido e que a maioria justifica tudo, e portanto eu não sei, num processo de revisão constitucional pilotado por eles, se é só as medidas do Chega que estão chumbadas para deixar passar umas da IL que são, no direito do consumo, do ambiente, do trabalho, igualmente gravosas, ou se a certa altura André Ventura começa de novo a fazer o seu psicodrama e a dizer que está a negociar com o PSD e que Luís Montenegro é apanhado na contracurva da Spinumviva e tem uma pressão à direita. ..Portanto, quem é que é a válvula de segurança disto, o ou a Presidente da República? Do que é que nós estamos a falar? Numa mudança dos poderes do Presidente da República, que só a Assembleia da República pode fazer, mas nós não estamos a votar na Assembleia da República, estamos a votar na válvula de segurança da nossa democracia, e é disso que temos de falar e é disso que não estamos a falar.
E então nessa válvula de segurança, com os atuais poderes, o ou a próxima Presidente pode vestir esse fato e ser o tal árbitro do sistema fragmentado como agora temos?
Bem, deixem-me dar aqui uma opinião que é mais pessoal do que a do Livre, porque é um comentário ao que o atual Presidente fez, eu tenho um grande respeito pelo Presidente Marcelo Rebelo de Sousa, é uma pessoa com quem gosto muito de falar, não há nenhuma conversa com ele que não seja proveitosa e que não se aprenda muito, mas eu acho que ele errou na interpretação dos poderes presidenciais em alguns aspetos que eu acho que seria bom não voltarmos a falhar. O que é que a gente precisa de um Presidente ou de uma Presidente? De confiar que é uma pessoa estável e que sabe fazer uma boa leitura da atualidade política e que será capaz de nos contrariar mesmo quando nós achamos que ele está errado, como por exemplo Jorge Sampaio, que para mim foi o melhor Presidente que nós tivemos, me contrariou muito quando numa primeira fase decidiu não demitir Pedro Santana Lopes. Ele sabia que estava a ir contra a esquerda toda, contra o seu partido, mas ele sabia que aquela era a posição que estava de acordo com os seus princípios. Eu não concordei, ainda hoje olhando para trás não concordo, mas tinha que respeitar porque era um Presidente eminentemente respeitável. Quem é que antes daquela noite e daquela declaração de Jorge Sampaio podia dizer Jorge Sampaio vai ter que fazer X ou Y porque está condicionado, enredou-se nas suas palavras e vai ter que decidir porque já se entalou antes? Ninguém poderia dizer isso. Um Presidente da República não pode começar o seu mandato já entalado.
E António José Seguro já está entalado?
António José Seguro disse uma coisa que me parece incompreensível. Se o Chega tiver um voto a mais, André Ventura é Primeiro-Ministro. Parece-me uma coisa extraordinária, porque não é sequer... Eu não digo que um Presidente dissesse exatamente o contrário, que é assim, jamais indigitarei André Ventura Primeiro-Ministro. Para já, bem basta o tempo em que nós vivemos dentro do psicodrama de André Ventura, para ainda estarmos a inventar um nosso em torno dele. Mas há configurações eleitorais muito diferentes. Portugal pode muito bem ter um sistema, está a caminho de ter um sistema político próximo daquele que é o holandês, ou dinamarquês, em que há vários partidos que têm ali à volta de 19%, 20%, 21%. Se alguém tiver 21% e o segundo partido tiver 20% e o outro tiver 19%, mas os partidos nos quais votaram 70% ou 80% dos portugueses disserem, nós jamais nos juntaremos àquele senhor, jamais governaremos com aquele senhor, um Presidente vai nomeá-lo à mesma Primeiro-Ministro? Ou, para fazer o exemplo ao contrário, se esse partido tiver 51%, um Presidente pode deixar de o nomear Primeiro-Ministro? Não, um Presidente só pode dizer o seguinte, a Constituição diz, feitas as eleições, será feita uma análise aos resultados eleitorais, conversará com os partidos, conversará com personalidades da sociedade civil, com o Conselho de Estado, se necessário for, e tomará uma decisão, e é isso que é preciso, que os portugueses confiem na leitura de quem apresenta essa sua posição, que esteja de acordo com a defesa da Constituição, que vai ter jurado defender, da defesa da democracia e dos direitos fundamentais. Se um Presidente sabe que vai fazer qualquer coisa que é contrária à própria Constituição, de alguém que jura querer enterrar com a Constituição, com a história que nós conhecemos da Europa, vai fazer como Bernardino Machado no fim da Primeira República, portanto, vem Gomes da Costa daí abaixo de Braga, olha, toma lá o país, e agora o Parlamento fica fechado 49 anos, sem deputados eleitos, é isso que vai fazer? Não, e portanto, estar à altura da responsabilidade histórica significa que não pode dar automaticidade à indigitação de um Primeiro-Ministro, em todas as circunstâncias, e tem que preservar esse espaço de ação de um Presidente da República. Se o faz, está a imitar Marcelo Rebelo de Sousa nas coisas em que Marcelo Rebelo de Sousa não deve ser imitado. Há outras que se calhar pode.
O Livre passou nestas autárquicas de 8 para mais de 50 eleitos, mas este resultado não espelha ainda uma dificuldade de implantação no terreno, quando comparado, por exemplo, com os três Presidentes de Câmara eleitos pelo Chega e os mais de 100 eleitos?
Bem, o Livre passou quase do 8 para o 80, ou melhor, multiplicou 8 vezes os seus eleitos. Acho que, se me pede para fazer a comparação com o Chega, é uma comparação que nos favorece muitíssimo, porque se nós tivéssemos tido 35 entrevistas exclusivas nos canais de televisão e depois nos apresentássemos com a miséria de três câmaras, eu tinha vergonha, e é um fracasso para André Ventura, acho que, ao invés de andarem para aí tanta gente a dizer que dizem no Chega que é o maior político do século, já foi alcandorado, acho que deveriam ter em conta qualquer tipo que tenha dado 35 entrevistas em exclusivo nas televisões nos últimos meses, tinha que se apresentar com um mínimo, quer dizer, com a presidência da Associação Nacional de Municípios, quer dizer, isso para mim é um fracasso rotundo. Nós, que eu tenho a impressão que dei uma de 10 minutos até ontem à noite, e ontem à noite a segunda, e no entanto o LIVRE, nas legislativas do dia 18 de maio, o Chega aumentou 25% dos votos, nós aumentámos 30%, eles aumentaram 10% dos deputados, nós aumentámos 50% dos deputados, mas com o muito menos destaque que temos, termos passado de 8 eleitos para 66 mandatos, parece-me que é um ótimo resultado.
Duas das grandes apostas do Livre eram as coligações em Lisboa e em Sintra. O que é que falhou em Lisboa?
Bem, falhou a matemática, e a matemática não se pode falhar em matemática em eleições, ela é muito clara. Uma convergência de toda a esquerda teria ganhado a Câmara, como nós dissemos claramente. Parece que há muito ruído, muita interpretação, muito viés feito em torno de uma coisa que é muito simples: em eleições autárquicas ganha quem tem um voto a mais. Em Lisboa tínhamos todos a obrigação de saber isso, porque há quatro anos foi assim que Carlos Moedas ganhou. O Livre não queria estar a concorrer para vereador da oposição, e achamos que a esquerda estar a competir entre si para ver quem é que é o melhor vereador da oposição, numa cidade como Lisboa, é revelador de pouca ambição e pouco amor pela cidade de Lisboa.
Mas regressando ainda à sua crítica, que era obviamente dirigida ao PCP, pergunto-lhe se faz sentido responsabilizar o PCP quando, por exemplo, nas legislativas, quando Pedro Nuno Santos apelava à concentração de votos no PS, o Rui Tavares chegou a dizer que o PS tinha de preocupar-se em ganhar o centro. Falhou ou não o voto ao centro em Lisboa?
Evidentemente, é sempre preciso mobilizar mais gente. Há duas interpretações são razoavelmente objetivas. A matemática é a matemática e o tempo é o tempo. Nós hoje sabemos, temos um relatório em relação ao acidente, à tragédia do Elevador da Glória, que nos diz uma coisa, que é que aquela administração da Carris foi lá posta por Carlos Moedas, porque quis. Carlos Moedas quis tirar a administração anterior e quis pôr uma nova administração composta dos seus aliados políticos e ninguém o obrigava a fazer isso. Se calhar, sendo um presidente em minoria, o que seria aconselhável era ser capaz de trabalhar em confiança com alguém que já estava a fazer um trabalho. Essa administração geriu as coisas de uma forma... Errado não chega a ser a palavra. E eu acho extraordinário que neste país se deixe cair no esquecimento um acidente no qual morreram 16 pessoas, com um tipo de transporte que, pelo mundo fora, é seguro. Um dia gostaria de ver feita esta investigação, que é, por exemplo, se no bairro da Bica, onde há um elevador que é o elevador da Bica, o aumento das casas nesse bairro é ou não, em boa parte, associado à imagem turística que o bairro tem, porque todas as capas de revistas, naqueles anos em que o imobiliário em Lisboa começou a explodir, as capas das revistas estrangeiras, como uma pessoa fosse ver, eram todas com o elevador da Bica. Como é que a cidade que tem esse ícone, que boa parte da sua economia é baseada no turismo, mas que depois se apresenta com uma face tecnológica da Web Summit e da fábrica de unicórnios, como é que o presidente dessa cidade não juntou as duas peças? Como é que ele não reuniu com a Carris várias vezes ao ano e como é que não lhes disse olha, acabámos de instalar um funicular na Graça. Foi decisão de Fernando Medina, não foi de Carlos Moedas. É mais moderno, não é uma boa altura para fazer a revisão dos antigos, que tem mais de 100 anos? E, portanto, essa é outra coisa que é razoavelmente objetiva, que é que os lisboetas deviam ter sabido antes daquilo que sabem hoje.
Mas não respondeu ainda sobre a ausência de ambição da coligação que o PS liderava e de que Livre fazia parte.
Eu não acho que tenha havido falta de ambição, acho que o programa era um programa muito ambicioso, acho que a Alexandra Leitão fez uma candidatura na qual demonstrou vontade de governar esta cidade. O que é que eu acho, se me é possível, de certa forma, mas eu não estou nesse lugar, porque o lugar é do Livre, eu sei dizer que eu cumpri, e ainda estou a cumprir, até ao último dia, o meu mandato como vereador na Câmara Municipal de Lisboa. Olho para o PS e vi que eles tiveram seis lideranças diferentes durante estes anos. Fernando Medina, João Paulo Saraiva, Inês Bettencourt, Marta Temido, a certa altura falou-se em Mariana Vieira da Silva e depois Alexandra Leitão. Talvez isso, precisamente na comparação, por exemplo, com a continuidade de uma vereação, isso faz diferença. A gente olha para Sintra e com uma campanha extraordinária, como Ana Mendes Godinho fez, vê Marco Almeida e pensa, Marco Almeida já se candidatou, já perdeu, está em Sintra há muitos anos, isso faz a diferença. E, embora tenha sido nosso adversário político, ainda bem que faz a diferença, ainda bem que estar no terreno e cumprir um mandato de vereador do princípio até ao fim é uma coisa que o eleitorado beneficia, acho bem que assim seja.
E no Porto, Manuel Pizarro tem motivos para estar arrependido de ter rejeitado uma ligação com o Livre, tendo em conta que os cerca de 3.800 votos podiam ter feito a diferença?
A resposta politicamente correta é acho que lhe deveria perguntar a Manuel Pizarro, mas a resposta franca é acho que nem é preciso perguntar. Manuel Pizarro seria hoje presidente da Câmara Municipal do Porto. Manuel Pizarro, no diálogo que teve com o Livre, não demonstrou levar a sério esse diálogo. Nunca chegou a propor uma coligação, nunca chegou a propor a sério um programa que fosse construído conjuntamente e aí é que está a vantagem do Livre ser um partido que não trata tudo por igual e não dá uma chapa 5, não é, não vamos em coligação em lado nenhum ou vamos em coligação em todo lado. Ou seja, nós não somos o PCP e também não somos o CDS.
O Livre é a exceção, tendo em conta que as bancadas do PCP e do Bloco encolheram?
Bem, eu acho que vale a pena olhar para a nossa experiência como uma experiência de uma esquerda que cresce. E, aliás, é por isso que eu vejo muito mal às vezes as tentativas de dizer ah não, mas esta esquerda que cresce é precisamente a que não deveria estar no debate, porque chegou tarde. Eu acho preferível que dá mais garantias, ter uma esquerda que tem crescido. Toda a gente sabe de onde é que o Livre fala, o Livre não engana ninguém, é um partido de esquerda, fala com toda a gente. O Livre é um partido convergente, às vezes isso implica que as respostas sejam um bocadinho mais longas, não é? Porque a gente tem de explicar porque é que em eleições autárquicas vocês foram em coligação no sítio X e não foram no sítio Y. Nós acreditamos que os nossos concidadãos são adultos inteligentes que é possível explicar-lhes a diferença. Porque é que vocês quiseram muito que houvesse um candidato independente nas eleições presidenciais e não havendo, porque é que emergiu um candidato por parte do próprio livro? Também acreditamos que as pessoas são inteligentes, que percebem que o contexto justifica essas, digamos, essas decisões.