Caso Influencer: averiguação por artigo crítico é "compreensível", mas linha vermelha é "sempre difusa"
Um artigo de opinião levou o Ministério Público a instaurar um processo especial de averiguação para aferir a "relevância disciplinar da conduta" da procuradora-geral adjunta Maria José Fernandes. Na TSF, o investigador João Paulo Dias aponta o processo como natural, mas avisa que a avaliação é difícil.
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O investigador João Paulo Dias, especialista no papel do Ministério Público (MP) e da governação no sistema judicial, diz ser compreensível a abertura de um processo especial de averiguação para avaliar a conduta da procuradora-geral adjunta que publicou um artigo de opinião crítico da atuação do MP na Operação Influencer, mas reconhece que a "linha vermelha" nestes casos é "sempre difusa e difícil de avaliar".
Em declarações à TSF, o especialista do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra apontou que os magistrados "têm um dever de reserva" sobre os processos em curso nos tribunais, "mesmo que não sejam os titulares", pelo que neste caso vai ser averiguado se "o conteúdo daquele artigo era uma violação desse dever" e o MP está apenas a seguir o que está previsto no estatuto.
"Estavam ali críticas fortes à atuação dos colegas e, portanto, está a pôr em causa também a atuação da própria instituição", avalia João Paulo Dias que, reconhecendo a dificuldade de avaliar casos deste tipo - em especial se "está um bocadinho mais acima ou se está um bocadinho mais abaixo" da linha do que é aceitável -, sublinha que "averiguar não quer dizer que haja depois uma sanção disciplinar".
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A sanção só acontece se a matéria em análise - o artigo - for considerada "grave e danosa para a própria ação do Ministério Público".
"Algumas vezes vemos que, de facto, também existem outros magistrados que passam a linha do razoável ou do bom senso em termos do que pode ser uma análise ou uma crítica às práticas processuais e de investigação da instituição. Existem várias formas de manifestação e de opinar e não sei se ali não terá havido um ultrapassar dessa linha" analisa, mas "naturalmente que é uma opinião e há que interpretar aquilo que foi dito à luz desse dever de reserva".
Num artigo de opinião no jornal Público, a procuradora-geral adjunta Maria José Fernandes, embora sem se referir à Operação Influencer, questionou como foi possível chegar até aqui, ou seja, até "à tomada de decisões que provocaram uma monumental crise política e cujas consequências vão ainda no adro", questionando métodos de trabalho e investigação do MP, designadamente do DCIAP.
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No artigo, a procuradora alega, entre outros pontos, que "os desfechos de vários casos já julgados permitem extrair que há aspetos do trabalho dos procuradores de investigação a carecer revisão e aprimoramento pelo exercício da autocrítica".
A Operação Influencer, que levou ao pedido de demissão do primeiro-ministro António Costa e à marcação de eleições antecipadas tem gerado debate em torno da atuação do MP, mas João Paulo Dias vê na investigação, "com alguma naturalidade o exercício da ação penal, que é aquilo que cabe ao Ministério Público".
"O mais grave seria se não houvesse investigação só porque haveria o risco de haver perturbação do sistema político", apontou. "Se têm indícios, investiga-se. Se encontra provas para acusar, acusa. Se não, arquiva. Julgo que não podemos questionar as instituições só por fazerem o seu exercício", avisa o também membro Observatório Permanente da Justiça.
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As leituras políticas do caso, essas, entrega-as ao "sistema político" e a quem já as fez - como Costa e Marcelo -, e recusa enveredar pelo "discurso da crise".
"São as instituições a funcionar", o Orçamento do Estado "vai ser provavelmente aprovado e as instituições estão a funcionar regularmente, até os mercados não reagiram muito negativamente", notou.
A Operação Influencer tornou-se pública com a operação realizada em 7 de novembro pelo MP, que envolveu 42 buscas e levou à detenção de cinco pessoas: Vítor Escária, Diogo Lacerda Machado, os administradores da empresa Start Campus Afonso Salema e Rui Oliveira Neves, e o presidente da Câmara de Sines, Nuno Mascarenhas.
No total, há nove arguidos no processo, incluindo o agora ex-ministro das Infraestruturas, João Galamba, o presidente da Agência Portuguesa do Ambiente, Nuno Lacasta, o advogado, antigo secretário de Estado da Justiça e ex-porta-voz do PS João Tiago Silveira e a empresa Start Campus.
O processo está relacionado com a exploração de lítio em Montalegre e de Boticas (ambos distrito de Vila Real), com a produção de energia a partir de hidrogénio em Sines, Setúbal, e com o projeto de construção de um centro de dados (Data Center) na zona industrial e Logística de Sines pela sociedade Start Campus.
No decurso dos interrogatórios aos detidos na Operação Influencer, o juiz de instrução criminal Nuno Dias Costa considerou Diogo Lacerda Machado (consultor e amigo do primeiro-ministro) fortemente indiciado por tráfico de influência e sujeitou-o a prestar uma caução de 150 mil euros e a não se ausentar para o estrangeiro, devendo entregar o respetivo passaporte.
Já quanto a Vítor Escária (chefe de gabinete de António Costa demitido na sequência da investigação) foram validados fortes indícios do crime de tráfico de influência, ficando proibido de se ausentar para o estrangeiro e obrigado a entregar o passaporte.
O autarca Nuno Mascarenhas e os administradores Rui Oliveira Neves e Afonso Salema, da Start Campus, ficaram sujeitos unicamente a Termo de Identidade e Residência (TIR), tendo a empresa ficado obrigado a prestar caução de 600 mil euros. Para o autarca não foram validados indícios de quaisquer crimes, enquanto os dois administradores estão indiciados por tráfico de influência e oferta indevida de vantagem.
O juiz não validou os indícios apontados pelo MP da prática de corrupção e prevaricação que recaíam sobre os arguidos.
Esta investigação motivou a abertura de um inquérito conexo junto do MP no Supremo Tribunal de Justiça, relacionado com escutas de conversas entre arguidos e o primeiro-ministro demissionário, António Costa.