"Europa meteu a raposa e raposinhos no galinheiro, não acautelou abastecimento e foi apanhada por uma guerra"
Nuno Ribeiro da Silva, líder da Endesa, é o convidado desta semana d'A Vida do Dinheiro.
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As elétricas não podem ser mais a seara onde os estados vão colher taxas e outras contribuições. A ideia é defendida pelo presidente da Endesa, que critica algumas tarifas, taxas, ou contribuições existentes e outras como hipóteses futuras num momento crucial para a Europa. Nuno Ribeiro da Silva começa por considerar que a Tarifa Social para a Eletricidade é ilegítima, defendendo que cabe aos estados paga-la, através de políticas sociais. Esta medida representa um custo total por ano, para as empresas de energia, na ordem dos 200 milhões de euros.
Quanto à CESE, designação da tarifa especial provisória imposta ao setor, já dura há anos e apesar de discordar da medida, não a contestou em Bruxelas tal como fizeram outros operadores, como, a EDP e a Galp, mas manifesta-se solidário, porque essa contribuição das empresas do setor volta a ser contabilizada este ano, como receita pública, pois não foi retirada do OE2022.
O líder da Endesa também não concorda com a "Windfall tax", a possível nova taxa sobre lucros inesperados das empresas, diz que o Estado tem que deixar de ir às "searas" das energéticas buscar receita. Para já esta nova taxa permanece em avaliação pela UE, que chegou a ser admitida como possível no futuro, pelo ministro da Economia, mas não está contemplada nas grandes opções do plano para 2022.
Quanto à escalada de preços pela guerra na Ucrânia, Nuno Ribeiro da Siva recorre a uma figura de estilo para afirmar que "a Europa meteu a raposa e os raposinhos no galinheiro, não acautelou a questão da segurança de abastecimento e foi apanhada de surpresa pela Rússia."
Já sobre a proposta ibérica para limitar o preço do gás e da eletricidade, considera não ser a melhor solução para Portugal e que o Governo foi surpreendido pelo avanço de Espanha na carta enviada a Bruxelas, mas faltam interconexões para equilibrar mercados e não vê vantagens para o nosso país.
Para o líder da ENDESA, o maior desafio do atual governo é a gestão da rede elétrica nacional e a necessidade de acelerar projetos de aproveitamento de fontes renováveis para produção de energia verde no futuro. Nuno Ribeiro da Silva é esta semana o convidado d´A Vida do Dinheiro.
Com o novo Orçamento do Estado para 2022 e face à constante pressão inflacionista sobre os preços da energia, quais são as prioridades para o setor minimizar o impacto do custo sobre as empresas e as famílias?
Em termos de curto prazo, como ainda somos muito dependentes da importação de matérias-primas energéticas que são cerca de 75% dos consumos de energia que o país tem - leia-se petróleo e gás, já não carvão -, a única forma em que o Governo tem capacidade de soberania é atuando sobre a fiscalidade. Em termos de longo prazo, são as políticas, no sentido de aproveitar ao máximo o potencial de recursos energéticos que o país tem. E aí estamos a falar da família das renováveis. Ao mesmo tempo que vai havendo uma tendência para um uso da eletricidade como energia final, ou seja, caso por exemplo da mobilidade e substituir motores de combustão por motores elétricos, e irmos diminuindo a nossa dependência relativamente aos combustíveis fósseis.
E irmos aproveitando cada vez mais o potencial que temos de vento, de sol, de água, de gases renováveis, de algumas lenhas pontualmente, biomassa, de energias oceânicas chamadas mar motrizes, e cada vez mais usarmos esses recursos que temos. E, ao mesmo tempo que usamos mais eletricidade para a satisfação das nossas necessidades, diminuirmos o nosso calcanhar de Aquiles de dependência de fontes fósseis importadas.
Na sua opinião, o Orçamento do Estado contempla essas prioridades de que falou?
O Orçamento do Estado tem a vigência de um ano, este tem menos de um ano até, -mas, sobretudo, Roma e Pavia não se fizeram num dia, e o que é relevante é haver uma continuidade de políticas que promovam o aproveitamento dos recursos energéticos endógenos, em particular as energias renováveis, que promovam a eficiência energética, que reforcem as infraestruturas, nomeadamente a rede elétrica do país. Ou seja, um quadro de medidas que tem um caráter de natureza mais continuado, mais a prazo, mas em que para colher o fruto há que primeiro plantar a árvore, regá-la e acompanhá-la no crescimento. E é isso que temos de fazer, e alguma coisa já se tem feito, e agora é intensificar esse caminho tendo em conta todo o quadro de situações que estamos a viver em Portugal e na Europa.
A descida da fatura da eletricidade tem de passar obrigatoriamente pela descida de impostos, nomeadamente do IVA para 13%? Porque acha que a medida não avança?
Temos, de facto, um IVA sobre a eletricidade que é o máximo possível na Europa. Mas, como sabemos, sobre a eletricidade incidem outros impostos e taxas. Depende do perfil do consumidor, mas a carga fiscal sobre a eletricidade anda entre os 30% e os 40%. Tudo o que seja baixarmos ou podermos anular taxas e impostos, naturalmente que vai em favor de desagravar o preço da eletricidade ao consumidor final.
É evidente que sabemos que isto tem impactos sobre o Orçamento do Estado e sobre as suas receitas. Tendo em conta que o IVA sobre a eletricidade é uma receita segura para o Estado e que representa grande volume, o Estado, no quadro do equilíbrio das contas públicas, tem também alguma dificuldade em acomodar essa diminuição de fiscalidade sobre o setor. Agora, lá que ela existe, existe, e é a variável em que o Governo tem a capacidade de intervenção. Portanto, cabe ao Governo decidir.
Há um ano considerava a tarifa social para eletricidade "insustentável a prazo", e disse na altura que estavam em curso negociações" não formais" com o Governo para alterar o atual modelo. Qual é o ponto de situação deste processo e que impacto tem tido nas contas da Endesa?
É um ponto relevante porque acho que este tema da chamada tarifa social, também chamado de combate à pobreza energética, tem sido muito distorcido e alvo de jogos políticos. Em primeiro lugar, não gosto do termo "pobreza energética". E quando digo que não gosto do termo, sei que há muitas pessoas, muitas famílias, que vivem em desconforto no que respeita à climatização dos seus espaços. Vivem nestas condições, depois isso reflete-se na qualidade do ar das habitações e também de locais de trabalho. Agora, falar em pobreza energética? Conheço pobreza e preocupa-me que haja pobreza, como é evidente, e a qualquer um de nós, se não formos sádicos ou malucos. Mas falar em pobreza energética? Há pobreza energética. Há pobreza alimentar. Há pobreza. Não há pobreza energética. Foi claramente um rótulo que alguns partidos populistas criaram, porque acham que as empresas energéticas são empresas muito poderosas e muito ricas, e então ficava bem dizer que vocês grandes empresas, com grande poder e com grande dimensão, esfolam, passo a expressão, as pobres das pessoas que não têm condições para se aquecer ou arrefecer. Portanto, não há pobreza energética, há pobreza Infelizmente, e temos de combater a pobreza como é evidente. Agora, isso levou a uma definição de um universo de beneficiários de desconto, a dita tarifa social, que devo dizer que nunca teve uma base técnica para definir concretamente quem devia ter acesso ou quem não devia ter acesso.
Lembramo-nos de cartazes do Bloco de Esquerda que, aliás, parece que voltou à liça, a dizer que um milhão de pessoas com tarifa social, bom, podiam ser um milhão, podiam ser um milhão e duzentas, podiam ser oitocentas e setenta e cinco mil, portanto, é uma coisa completamente de slogan político. É mais surpreendente - não me surpreende -, mas é mais curioso que o Governo, e está no seu direito, e o Governo à época, naturalmente tinha de viver no ambiente da Geringonça, diz que o objetivo é um milhão de pessoas com tarifa social. Já agora, é tanto como em Espanha, e não é que Espanha seja muito mais rica, mas claramente os critérios foram critérios que, com tempo, até esperava que pudesse vir a beneficiar também de tarifa social.
É muito fácil dizer, "vamos dar tarifa social e nós Governo somos muito bons", mas quem está a pagar a tarifa social são as empresas do setor, são as empresas elétricas, não é o Governo. Aqui considero dois aspetos: um é que quando o Governo decide que quer dar uma penalidade ou uma benesse a quem quer que seja, tem todo o direito, mas assume a responsabilidade desses custos ou benefícios.
Acha que devia ser o Governo a pagar a tarifa social?
Claro, como aliás a União Europeia define. É uma situação que, ao abrigo de várias posições da União Europeia e vários pareceres da União Europeia, é ilegítima. Portanto, se se quer pagar uma tarifa social, se o Governo quer conceder uma tarifa social a certo universo de consumidores, isso entra dentro dos encargos das políticas sociais.
A EDP avançou com uma carta a Bruxelas a contestar o atual modelo de financiamento da tarifa social. A Endesa também pensa avançar?
A Endesa não avançou, mas acompanha perfeitamente esta posição. Não posso estar a dizer, "olhe você é muito simpático, no entanto, vai fazer uma oferta e eu quero ajudar esta causa e, portanto, sou um benemérito, mas quem vai pagar é o senhor José e o senhor António". Se quero dar esse apoio, e não estou a dizer que não é importante de uma maneira seletiva dar apoio a situações de carência, e em que efetivamente há que garantir um mínimo de conforto no acesso à energia, mas faz parte do âmbito das políticas sociais. Não podemos misturar tudo numa amálgama de um saco sem fundo e, além disso, como diziam os chineses, uma coisa é ensinar a pescar, outra coisa é dar o peixe.
Compreendo que se dê cobertura a ajudas em termos de custos na tarifa de acesso à energia, mas mais importante do que isso é desenvolver as condições para que as famílias que têm acesso à tarifa social e mais carenciadas que, tipicamente, vivem em casas que têm más condições em termos de comportamento térmico por exemplo - e muitas delas são em bairros sociais, propriedade das câmaras ou do Estado central -, é mais importante intervir, não só na climatização, mas também é a humidade dentro das casas, é a qualidade do ar dentro das casas.
É mais importante ensinar a pescar do que dar peixes hoje e amanhã, portanto, o que os governos, os municípios se devem focar é na melhoria da qualidade da habitação e dos espaços em que trabalhamos. E, portanto, aí atacar o cerne do problema e não propriamente dizer que se dão subsídios, que ainda por cima é fácil dizer que não é o Estado que paga.
Qual é o impacto da tarifa social da eletricidade nas contas da Endesa?
Atualmente, o custo da tarifa social para a generalidade dos comercializadores atinge e tende a ultrapassar rapidamente os 200 milhões de euros. Como digo, é fácil dizer, por parte do Estado, haja tarifa social. Pois, assim, desresponsabiliza-se do custo que essa medida tem, carrega com um rótulo mais dramático de pobreza energética e manda pagar.
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Outro dos temas antigos do setor é a CESE, a Contribuição Extraordinária sobre o Setor Energético, que foi criada em 2014 e foi agora novamente prolongada, e os montantes não foram reduzidos de forma gradual consoante a diminuição do défice tarifário, como era inicialmente previsto. A Endesa tem pago essa contribuição ou tem contestado judicialmente?
Tem pagado.
Mas contestou judicialmente como a EDP, a Galp, e a REN?
A Endesa não contestou e tem pago. É mais um exemplo de ser fácil tomar medidas, esta tarifa especial não é provisória e arrasta-se há oito anos. E vai sobrecarregar, ao fim do dia, os encargos do setor e acaba, em última instância, por se refletir em todos nós, nos consumidores.
Considera que este era o momento certo para acabar com esta taxa? E porquê?
Julgo estas situações quando se criam, depois para as retirar é sempre difícil fazer de um ano para o outro. Mas já lá vão oito anos e é uma contribuição especial. Ou seja, havia, de facto, condições nestes últimos anos para começar a regredir esse custo dessa contribuição e, em particular, houve anos em que o preço da eletricidade estava menos gravoso do que está a acontecer desde a segunda metade de 2021 e neste ano, e que continuará, infelizmente, pelo próximo ano, e, portanto, ter a oportunidade neste período de ir desagravando essa taxa especial, essa contribuição especial, esse imposto especial em última análise.
Independentemente do rigor técnico dos termos, imposto, taxa, contribuição, mas o que é um facto é que vem provar que é, essencialmente, uma forma mais de coleta para a fazenda pública, do que propriamente uma medida de política setorial.
E o que depois não é coerente é haver de vez em quando um alerta e uma lágrima de crocodilo por parte dos governos, a dizerem que estão muito preocupados porque a eletricidade é cara e, entretanto, não hesitam em sobrecarregar o setor com um conjunto de encargos.
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Apesar de não estar prevista no Orçamento do Estado, o Ministro da Economia já se mostrou aberto ao windfall tax, portanto, à nova taxa para empresas com lucros inesperados e que pode vir a incluir as elétricas. Se Bruxelas aprovar esta medida, como é que a recebe?
Mal, e creio que o senhor Ministro da Economia inclusivamente fez aquele comentário e foi - não sei exatamente, ele melhor saberá -, uma referência de algo num contexto de preocupação que todos temos com os custos dos vários produtos energéticos. Há aqui uma situação que tem muitas décadas em que os Estados, e em particular os europeus, se habituaram a ir ao setor de energia buscar importantes receitas fiscais, tipicamente a coleta de impostos e taxas sobre a energia é, a seguir ao IVA e ao IRS, a maior fonte de receita para o Orçamento do Estado. O que se passa é que esta base de coleta é muito confortável e muito fiável para os Estados, porque obviamente o consumo de energia nas suas várias vertentes - eletricidade, gás, gasolina, gasóleo, etc. - tem grandes volumes e, ainda por cima, é uma receita garantida porque não há, como em outro tipo de impostos, fuga.
Quem faz essa coleta são as empresas energéticas. São, no fundo, as maiores repartições de finanças que o Estado tem à borla, e que entregam esses impostos que coletam. O que se passa é que hoje, com toda a pressão que há sobre as matérias-primas energéticas e sobre os preços da energia, os Estados têm de perceber que não é possível continuar a olhar para a seara da energia como a grande fonte de coleta do pão que os Orçamentos do Estado necessitam.
Compreendo e sei bem que é difícil mudar de rumo, mas é algo que os Estados, nomeadamente na Europa, têm que começar a rearquitetar e a diminuir uma sobrecarga sobre energia que é algo que sabemos ser essencial e imprescindível para as famílias e para as empresas, assim como para a competitividade da economia europeia, e encontrarem outras fontes de fazer a receita que necessitam para as suas aventuras.
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A guerra na Ucrânia veio agudizar esta crise energética. Como é que avalia as medidas que Bruxelas tem tomado para mitigar a escalada dos preços grossistas da eletricidade? São suficientes?
Fomos apanhados de surpresa com esta história da guerra e trouxe-nos, como se costuma dizer, para a real. O que acontece é que as políticas energéticas têm de considerar sempre três pilares de maneira articulada: a questão da segurança do abastecimento, a questão dos preços da energia, e a questão da interface energia-ambiente, dado que a energia é, realmente, em várias valências, o que mais impacta e causa danos ambientais, seja a nível global do planeta, como a questão das alterações climáticas, seja mesmo a nível regional ou local.
Quando olhamos para uma refinaria, para uma central elétrica a carvão, quando olhamos para um derrame de um navio, de um gasoduto, é de facto um setor muito, muito, muito danoso para o ambiente. Portanto, há que articular os aspetos de segurança de abastecimento, preços e energia-ambiente. O que acontece é que a Europa se esqueceu da vertente segurança de abastecimento e meteu a raposa e os rapozinhos no galinheiro, e a raposa chama-se Rússia obviamente.
Agora somos surpreendidos com esta situação e o problema aqui está em inverter, e mitigar a dependência a que nos acomodámos, nomeadamente do gás em primeiro lugar, em segundo lugar do gás, em terceiro lugar do gás, depois do petróleo, e depois do carvão russo.
Não se consegue mudar e inverter de um dia para o outro, portanto, somos apanhados num quadro em que um grande produtor, um grande exportador de matérias-primas energéticas, como é a Rússia, em gás em petróleo e em carvão para o mundo e, em particular no gás para a Europa... Apanha, por exemplo grandes consumidores e grandes clientes do gás russo como a Alemanha, mas também a Polónia, também a Roménia, também a Grécia, também a Bulgária, também a Hungria, também os Estados Bálticos, mas em particular com a grandeza da Alemanha, apanha a Alemanha porque prescindiu em 2011 de construir terminais para receber gás de outras origens sobre a forma líquida.
E, portanto, é uma questão de não ter cortado, pelo contrário, até reforçou o cordão umbilical à mãe Rússia. Cortar e mitigar essa situação vai ser um processo longo, relativamente longo, por muito voluntarismo que tenhamos. [...] Mas é um tema que é falado há bastante tempo, lembro-me até de uma imagem que pode dar aos nossos ouvintes uma ideia interessante: se estivermos a olhar para a bandeira da Europa, a bandeira azul com as estrelinhas amarelas, a autossuficiência energética da Europa são estrelinhas amarelas, todo o resto azul é dependência da Europa de aprovisionamentos de petróleo, gás, carvão provenientes de outras geografias, onde pontifica a Rússia, mas em abono da verdade, digamos que também as outras geografias de aprovisionamento da Europa, muitas delas também não são muito fiáveis.
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E no caso concreto de Portugal e Espanha, a proposta para limitar o preço do gás na produção e eletricidade é a melhor solução?
É um tema que, como sabem, está a correr em Bruxelas. A proposta que foi enviada não é de todo a melhor solução. Mais, é uma proposta em que o motor dos termos em que a foi enviada foi feito pelo Governo espanhol, e em que Governo português foi, de alguma forma, surpreendido, tendo aceite que Portugal e Espanha estão na tal ilha energética ou mais ou menos ilha energética na Europa, tendo em conta que as ligações das redes elétricas e de gás a França são bastante limitadas. E, portanto, a Península Ibérica, de facto, falha em infraestruturas para poder partilhar os pontos positivos e os pontos negativos do grande mercado europeu.
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O que acontece é que Espanha tem especificidades na sua estrutura de tarifas e políticas, nomeadamente no setor da eletricidade que, felizmente, nós não temos. E o que acontece é que a proposta que foi enviada a Bruxelas teve, de facto, o toque de dinâmica de Espanha, preocupada com situações que não se verificam em Portugal.
E nesse sentido esta proposta que foi enviada tem consequências muito complicadas, tem efeitos colaterais graves e que, em particular para Portugal, digamos que não se justificava uma proposta, ou seja, usando uma imagem, um tratamento de antibiótico tão forte como o que Espanha, segundo o seu governo, considera necessário para os problemas da infeção espanhola e, portanto, este este choque antibiótico a aplicar-se a Portugal, pode ser pior a emenda que o soneto.
Que consequências negativas poderá ter?
Nós temos, e o Governo e a Entidade Reguladora do Setor Energético (ERSE) fizeram isso bem, de controlar o impacto, e sem distorção de mercado, controlar o impacto deste aumento dos custos da energia que todos sofremos, mas controlou o impacto desse aumento dos custos da energia, nomeadamente no que respeita às tarifas para as famílias.
Tivemos um ajustamento na referência de tarifa, para nós lá em casa, na ordem dos 3% o que é comportável, terá que ser. Em Espanha a situação é completamente diferente, há um modelo de tarifa que cobre mais de 10 milhões de consumidores, de clientes, e são contratos, ou seja, estamos a falar se calhar de 30 milhões de pessoas, e que é uma tarifa, no jargão, PVPC, que foi uma tarifa criada de uma maneira, diria, de ocasião para não dizer mais. Isto aproveitando momentos dos anos 20, sobretudo, por diminuição do consumo, da pandemia, etc., em que o preço da eletricidade baixava todos os dias e, portanto, está indexado ao mercado diário a que se formam os preços do mercado ibérico. Foi muito simpático quando os preços desciam todos os dias, mas já o outro dizia tudo que sobe desce, e tudo o que desce sobe, portanto, hoje o impacto nessas pessoas e nessas famílias que aderiram a essa tarifa é muito grande e insuportável. Isto para as tarifas domésticas. Depois nas tarifas industriais e dos serviços, é complexo e chato de explicar, mas temos várias situações, mas o que acontece é que quem fez contratos nas indústrias, nos serviços, a prazo, ou seja, fez contratos a dois, três, quatro, cinco anos, hoje não está a sofrer o brutal aumento dos custos do mercado elétrico e do gás. Quem não fez esses contratos e hoje tem de sair à rua para fazer o seu contrato de aprovisionamento é surpreendido com ofertas do mercado e com preços do mercado que são três, quatro, cinco, seis vezes mais caros.
O problema aqui está em que vir a estabelecer um preço máximo como está na proposta enviada para Bruxelas, um preço máximo para o gás é um preço máximo para Espanha e Portugal, mas como nós não produzimos gás, temos de ir ao mercado mundial comprar o gás. E o mercado mundial está-se nas tintas para Espanha e Portugal. Portanto, o país, o sistema vai ter de comprar, se quer ter gás, aos preços do mercado mundial, onde nós não somos tidos nem achados. Vamos comprar, a título de imagem a 100, mas dizemos que aqui não se cobra mais de 30, e a questão é que ficam a faltar 70 e alguém vai ter de pagar. O que inclusivamente Bruxelas tem dito é que não aceitamos que se crie, ou seja, o défice que se crie vai ter de ser imediatamente repartido pelos consumidores.
Portanto, o que pode acontecer aqui é que esse défice vai ter de ser repartido por quem a devido tempo acautelou fazer contratos de longo prazo e os consumidores, nomeadamente industriais, que não fizeram e que em Portugal até são menos do que os que fizeram, portanto há situações que são muito complicadas de gerir.
Para dar um exemplo, e estes números são números reais, tenho contratos com grandes consumidores de serviços e industriais no nosso país que fizeram contratos há três ou cinco anos e que tem um custo de 40. Se o modelo que foi proposto tal e qual para Bruxelas viesse a ser aprovado e aplicado, podia ter de telefonar a esses clientes e dizer assim, "caro senhor X, fez muito bem fazer este contrato a prazo por 40, mas agora como o diferencial de custo vai ter de ser distribuído por todos, o senhor está a pagar 40, mas vai ter de pagar mais 64". Como imaginam, é uma situação insustentável, portanto, aquela proposta que aparentemente é muito apelativa e muito simpática, e de se dizer, "não, eu fixo um tampão e não se paga mais do que isto"... O problema é que nós não temos gás natural e se queremos ter gás natural temos de ir comprar ao mercado mundial e custa o que custa.
E depois bem podemos definir que não queremos pagar mais do que isto ou do que aquilo, e como acontece na vida, o merceeiro está a vender o bacalhau a dez, e eu digo que não pago mais do que dois pela sua posta de bacalhau, ao que ele responde que então não há bacalhau para mim, ou então, toma nota da dívida na folha de gastos.
Para terminar, o que pede ao Governo para o setor nesta nova legislatura e que opinião tem sobre as mudanças no Ministério do Ambiente e Ação Climática?
Sobre as mudanças, naturalmente que não me cabe propriamente fazer comentários. Mas a única coisa que posso dizer é que a relação com o Ministério do Ambiente, a meu ver, e atenção que não estou a falar pondo à frente a questão da empresa para a qual trabalho, falo como português e como pessoa que desde que nasceu trabalha no setor, julgo que a equipa do ministério teve, no essencial, políticas corretas e na prática teve uma relação frontal e clara com o setor.
E o setor, atenção, não são só as grandes empresas de energia. E quando digo essa relação frontal, é no sentido de dizer, "não estou de acordo com isso, estou de acordo com isso e vou trabalhar nisso e tentar implementar isso o mais rápido possível, etc.". Todos os governos têm uma interação e um diálogo com as empresas, nomeadamente no setor energético, porque é um setor de facto muito complexo. E isso não significa, como alguns pensarão, promiscuidade ou o que seja. É frontalidade e ter uma ideia da realidade das situações. Nesse aspeto, o Governo teve, quer com o ministro Matos Fernandes, quer com o secretário de Estado João Galamba, uma atitude correta, frontal. E nas políticas energéticas, na minha opinião, acertada ao promover o aproveitamento dos recursos energéticos endógenos, o desenvolvimento das energias renováveis.
Obviamente que tenho leituras críticas em alguns aspetos pontuais, mas o essencial julgo que foi correto. Portanto, a continuação do Secretário de Estado julgo ser positiva, até e desde logo pelo facto de ser um setor bastante difícil e complexo de compreender tecnicamente os seus problemas. E aí é bom que não se perca uma aprendizagem. Aliás, recordo-me de quando o secretário de Estado da Energia foi para o setor, dizer que de energia não percebia muito bem, que era uma pessoa com uma certa formação técnica, mas iria fazer um esforço para aprender depressa, lembro-me dele dizer isso. E julgo que sim, que aprendeu depressa e, sobretudo, teve também uma boa equipa de assessoria. Nesse sentido, é desejável que nestes setores que são setores que têm tecnicidades complexas, como os transportes e etc., que haja essa possibilidade de continuidade.
O ministro decidiu sair, julgo que foi uma pessoa também com valor acrescentado no mandato que teve. Agora, o que é que o Governo pode fazer? Aqui não há grandes graus de liberdade, e há sempre na questão da energia o olharmos para o dia de amanhã ou olharmos a prazo, porque é um setor a prazo, em que o curto prazo são cinco ou dez anos.
O fundamental em termos estratégicos é realmente o país apostar, e temos uma situação privilegiada de que muitas vezes não temos noção, em dispor de um leque variado de fontes renováveis. Durante toda a nossa história industrial sempre vivemos com um calcanhar de Aquiles de não termos petróleo, gás, e tínhamos um bocadinho de carvão de má qualidade, e, portanto, essas fontes energéticas da revolução industrial nós sempre fomos dependentes e sempre tivemos de andar ao sabor do mercado mundial. Hoje, com o novo paradigma energético, a transição energética, a descarbonização, nós ao contrário, temos uma natureza generosa das fontes de energia do futuro. Isto porque temos um bocado de água, temos um bocado de vento, temos um bocado de sol, temos oceano.
Mas estamos a aproveitar tudo isso?
Vai-se aproveitando, mas aí é um bom ponto, a preocupação aí é em acelerar esse aproveitamento. Tem havido dois grandes bloqueios a que este aproveitamento e esta incorporação das energias nacionais, deixe-me dizer assim, endógenas, renováveis, não tenham ainda um maior contributo para a satisfação das nossas necessidades. E têm sido os aspetos administrativos-burocráticos. O Governo publicou há três ou quatro dias um decreto regulamentar para acelerar, agilizar, alguns desses mecanismos. E o outro fator de bloqueio que tem estado em cima da mesa, é a rede elétrica, e aqui julgo que há muito que repensar. Desde a forma como é gerida do ponto de vista técnico e do ponto de vista de critérios de segurança, a rede elétrica operada pela REN e pela E-REDES, há aí um desafio grande e uma incorporação necessária de novos critérios de gestão e de operação de rede que não têm estado em cima da mesa, e que é necessário, porque hoje é o maior bloqueio ao acelerar da instalação de equipamentos para gerar eletricidade de origem renovável e, portanto, de ir percorrendo este caminho de mitigação da nossa dependência energética a nível geral.
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