Enfermeira especialista, Dora Franco escolheu permanecer no IPO de Lisboa, apesar das dificuldades. É "um lugar privilegiado", que encara como "uma segunda casa".
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Dora Franco, 42 anos, entrou no Instituto Português de Oncologia (IPO) de Lisboa mal acabou a licenciatura, há 20 anos. Na altura "ganhava mais porque antes havia, um subsídio para quem trabalhava na oncologia". No final do mês, levava para casa entre 1300 a 1400 euros líquidos. Hoje, 20 anos depois, Dora é enfermeira especialista no tratamento de feridas complexas dos doentes oncológicos, coordena a investigação da unidade de enfermagem do IPO. Doutoranda, somou experiência, pós-graduações e mestrado, mas o ordenado evoluiu em sentido contrário. "Ganho mil euros limpos. Portanto, ganho hoje menos do que quando comecei. E sou especialista, porque senão ganhava ainda menos", desabafa com um sorriso.
A tristeza e a desmotivação batem à porta, em alguns momentos. "Sentimo-nos um bocadinho abandonados", afirma Dora, que acusa o ministério da saúde de "uma certa hipocrisia, desvalorização, displicência. E pesa-me saber que a área nobre, a área que sustenta e edifica o Serviço Nacional de Saúde, que são os profissionais de saúde, não são valorizados de forma condigna".
A desmotivação já levou alguns enfermeiros a pedirem escusa de responsabilidade. Dora considera que "são gritos de alerta para dizer: não estamos a conseguir cumprir os critérios de segurança e qualidade".
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Apesar deste cenário, Dora optou por ficar no IPO de Lisboa. Há cerca de 15 anos, acumulou funções no sector privado, durante alguns meses. Ganhava o dobro, mas percebeu que lhe faltava tempo para se relacionar com os doentes. "Se um doente me pergunta: eu vou morrer?, eu não posso dizer: vamos morrer todos um dia", exemplifica. Tem de haver uma "disponibilidade temporal para abordar questões complexas, ontológicas e no privado, na altura, eu não conseguia ter essa disponibilidade".
Dora resiste assim, no IPO de Lisboa, que considera "um lugar privilegiado, em termos de instituição e serviço". Aqui, consegue valorizar a relação e comunicação com os doentes de quem guarda muitas recordações. Entre muitos que a marcaram, Dora recorda muitas vezes Benedita, uma jovem de 20 anos que acabaria por falecer. "Nós acompanhámo-la enquanto consulta das feridas, desde o encerramento de uma ferida cirúrgica, rapidamente e em tempo útil, para fazer radioterapia. E depois voltámos a acompanhá-la já numa fase final da vida dela, com progressão da doença. (...) Quando a vi pela última vez, ela perguntou-me: Dora, também vais cicatrizar esta ferida? E aquela ferida não era cicatrizável, porque era a expressão máxima do cancro, da doença. Tive de lhe dizer que não ia cicatrizar, porque efectivamente aquilo que eu lhe poderia dar era qualidade de vida no tempo que ela cá estivesse. E foi isso que ela me perguntou: Mas vais ficar comigo? Não vais tratar esta ferida, mas vais ficar comigo até eu morrer? Ela só queria esta resposta: sim, eu vou ficar contigo e nós vamos estar contigo, independentemente de teres ferida ou não. Portanto, há este processo: nós estamos aqui e não vais ficar sozinha neste momento".
É pelos doentes que Dora continua no IPO e também por aqueles que lá trabalham. "Encaro o IPO como uma segunda casa", realça. "As pessoas que aqui estão também me fazem ficar. Não são só os doentes e familiares. É toda uma equipa onde as pessoas se unem em prol de um bem comum que é o bem-estar do doente. E isso é tão raro nos nossos dias".
São pessoas como Dora que dão alma e mantêm vivo o Serviço Nacional de Saúde.
*A autora não segue as normas do novo acordo ortográfico