"Não podem ficar os tribunais com o encargo de cumprir o impossível." Parlamento recebe um terceiro aviso depois de dois feitos e ignorados em 2020.
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O Conselho Superior da Magistratura (CSM) avisa que a lei eleitoral para as eleições autárquicas arrisca-se a ser impossível de pôr em prática. O órgão do Estado responsável pela gestão dos juízes vai mais longe e relata que por duas vezes alertou a Assembleia da República para este risco, num aviso que até agora tem sido ignorado.
A posição do CSM está num dos pareceres enviados recentemente aos deputados no âmbito dos vários projetos de lei apresentados por vários partidos para responder às críticas que em fevereiro se começaram a ouvir, com os grupos independentes de cidadãos a ameaçarem criar um partido para se candidatarem de forma menos complicada às próximas autárquicas.
No parecer consultado pela TSF, o órgão de gestão dos juízes está preocupado sobretudo com um problema que volta a ser ignorado em quase todas as propostas de alteração apresentadas por vários grupos parlamentares - incluindo nas do PS e PSD.
Formalidades obrigatórias
Em causa estão as "formalidades obrigatórias" na avaliação das candidaturas autárquicas dos independentes, em regras alteradas em agosto de 2020 quando se passou a exigir que os tribunais promovam "sempre a verificação, pelo menos por amostragem, da autenticidade das assinaturas e da identificação dos proponentes da candidatura, lavrando uma ata detalhada das operações realizadas e dos proponentes confirmados".
O Conselho Superior da Magistratura constata que a regra anterior será em vários casos impossível de pôr em prática e começa por dizer que nunca foi ouvido sobre a mudança pois esse ponto foi alterado pelo Parlamento depois do parecer inicialmente pedido a este órgão do Estado.
Dois alertas sem resposta
Mesmo assim, o CSM detetou o risco e enviou à Assembleia da República, em agosto, uma exposição em que alertava para as "dificuldades práticas de aplicar a norma em todo o país o que pode levar, nalguns casos, à sua inexequibilidade".
Um alerta que se repetiu num outro parecer enviado em outubro aos deputados e que agora se repete, pela terceira vez, no âmbito da nova alteração legislativa em marcha.
O CSM refere mesmo que "não podem ficar os tribunais com o encargo de cumprir o impossível e com a responsabilidade do que acontecer em caso de incumprimento".
O parecer avisa que dificilmente se fará no prazo de cinco dias, dado pela lei, a obrigatória verificação das assinaturas, mesmo por amostragem, e uma ata detalhada, além do sorteio das listas apresentadas e a verificação da regularidade das demais candidaturas dos partidos.
Além disso, a lei não define como se faz a tal amostra das assinaturas, num "trabalho acrescido para o juiz e de difícil concretização ou mesmo inexequível, dentro do prazo legal estabelecido, nomeadamente em alguns distritos".
Um juiz, vários concelhos, várias freguesias, em férias judiciais
Um mesmo juiz pode ter de repetir todo esse processo para várias candidaturas em vários municípios e freguesias, numa altura de férias judiciais em que os magistrados judiciais estão em serviço de turno ou em regime de substituição, respondendo a um "elevado número de municípios", alguns com "descontinuidade territorial" no caso das comarcas dos Açores e da Madeira.
O órgão de gestão dos juízes diz que a legislação exige diligências presenciais, com uma ata que descreva as operações realizadas, podendo existir consequências legais caso nada seja feito ou não seja analisada a exigida amostra de assinaturas.
Razões que levam o CSM a alertar para as "questões e obstáculos práticos" que a lei "coloca e que podem conduzir à inexequibilidade prática da lei ou ao atraso do processo eleitoral, por impossibilidade dos tribunais darem cumprimento a tal tarefa em prazo tão exíguo em algumas das comarcas do país".
Em resposta à TSF, o deputado comunista António Filipe reagiu dizendo que "o PCP não teve a iniciativa aquando da alteração, e também não tenciona". No entanto, assegura: "Havendo opiniões expressas, iremos refletir sobre o assunto."
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Aurélio Ferreira, presidente da Associação dos Movimentos Autárquicos Independentes, não fica surpreendido com o novo alerta do Conselho Superior de Magistratura. "Só se não houver bom senso é que continuam a fazer isto, e continuando a fazer isto, eu pergunto como é que os senhores doutores juízes em agosto, quando receberem as nossas candidaturas, vão atuar", refere, em declarações à TSF.
O presidente da Associação dos Movimentos Autárquicos Independentes exorta o Parlamento a "olhar para aquilo que são as recomendações, tanto da senhora provedora, como do Conselho Superior da Magistratura", e garante que os partidos têm toda a informação disponível para fazer as alterações "que devem ser feitas".
"Cada dia que passa, para nós, é uma tortura, sim, porque já devíamos estar há muito tempo no terreno. Vamos ter muitas dificuldades a fazer a recolha das assinaturas dada a pandemia."
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* Atualizada às 10h37