MiraDouro, a viagem de cortar a respiração, mas que tem que chegar "até Espanha"
Corpo do artigo
Porto>Pocinho>Tua>Porto
O comboio vai cheio. Levantei-me para falar com uma família que entrou em Paredes e quando tentei regressar ao meu lugar, até a mochila que tinha ficado a guardar o espaço tinha sido colocada de lado. Percebi, ainda antes de ver o rio Douro que os lugares à janela com vista para o rio, no MiraDouro, poderiam ser pagos a peso de ouro que iriam ser ocupados. Percebe-se porquê um pouco antes da estação de Mosteirô.
Por causa disto, sou obrigado a abandonar o meu lugar e a procurar um assento na carruagem seguinte. Ainda bem. Há males que vêm por bem. Ainda hesitei quando vi os "sofás" e ao virar para trás foi o revisor que me disse "pode sentar-se que não é primeira classe". Não há distinção de classes no MiraDouro, embora esta carruagem a que me refiro tenha sido, de facto, de primeira (noutros tempos). Está visto, não se paga mais por mais conforto, nem se paga mais por ir à janela. Na verdade, confesso que o pensamento que me assaltou foi de que a CP proporciona com estas carruagens Schindler dos anos 40/50, puxadas por uma máquina da série 1400, viagens ao Douro em comboios históricos, a preço de um comboio "normal", e com um conforto para o passageiro que não deixa nada a desejar. As carruagens têm aquecimento para os dias frios de inverno, mas o ex-líbris são as janelas panorâmicas, que se abrem até ao meio e que nos permitem receber o vento na cara e sentir os aromas do Douro. Em dias de verão nem se sente a falta de ar condicionado. E, mesmo para os profissionais, a CP tem tentado fazer algumas melhorias nestas máquinas a gasóleo: instalou ar condicionado nas cabinas e já substitui alguns dos assentos por cadeiras mais confortáveis para os maquinistas, não podem nem nunca vão ficar o "último grito", mas faz-se o que se pode com os recursos que se tem.
Seguimos entre Porto Campanhã e Marco de Canaveses como a ligeireza de um comboio elétrico. Não fossemos logo na primeira carruagem, colados à locomotiva a gasóleo, e nem sentiríamos que estávamos a ser puxados e a circular em material de meados do século passado. Depois de terminada a eletrificação, a marcha mantém-se a boa velocidade, mas a caneta com que escrevo as notas para esta crónica já não mantém a subtileza, desliza e salta em determinados pontos do percurso. Veremos, pelo que vou escrever mais à frente, que a IP - Infraestruturas de Portugal - mantém o traçado da via (que não é propriamente mão na sua generalidade) em vários níveis de qualidade e interesse de investimento. Há uma segunda realidade de Marco de Canaveses até à Régua, uma terceira até ao Pinhão, e depois uma quarta até ao Pocinho, mas já lá iremos. Voltamos ao trajeto que fazemos. Um pouco antes da estação de Mosteirô, o espanto. São audíveis os muitos gritinhos de admiração, aumenta o burburinho na carruagem e começam, gradualmente como molas, a levantarem-se e a aproximarem-se das janelas do lado direito: é o Douro, forte, escuro e imponente. Impossível resistir. Levanto-me e faço exatamente o mesmo que qualquer turista que vai no comboio. Quando naquele momento a carruagem não tombou para a direita, já não tomba. As vistas a partir de Porto Manso para cima são qualquer coisa, há mesmo partes em que a linha está tão próxima do rio que nos dá a sensação que o comboio flutua.
TSF\audio\2021\09\noticias\03\03_setembro_2021_proxima_estacao_cronica_4
Em março de 2019, a CP decidiu suspender o comboio MiraDouro, por falta de passageiros e de material circulante, anunciando que a linha dava prejuízo e cortando as viagens para metade. Em julho do mesmo ano, a atual administração liderada por Nuno Freitas, decidiu não só repor o MiraDouro como criar mais horários e o resultado parece estar à vista. Em dois dias que passei no Douro, dois comboios em cada sentido, horários diferentes em cada um dos dias, carruagens sempre cheias, plataformas nas principais estações compostas de gente para entrar e sair. Até nisto é uma viagem na história, àquele tempo em que havia passageiros com fartura em todas as estações e não apenas nas áreas metropolitanas.
Agora, em 2021, todos os comboios inter-regionais (IR) são MiraDouro e há uma coisa que me salta à vista e que tenho de partilhar: o facto de termos harmonia na tipologia de máquinas e de carruagens, cores brilhantes e chamativas, torna este comboio também atrativo e forte em termos de marca.
https://d2al3n45gr0h51.cloudfront.net/2021/09/vide_20210903085853/mp4/vide_20210903085853.mp4
CP adapta carruagens para bicicletas e ganha prémio nacional de mobilidade
Quando me levanto para ver a imponência do Douro Património da Humanidade vejo ao fundo da carruagem uma placa, na qual se pode ler "bicicletas - 2 lugares". É o que acontece em todos os MiraDouro. Existe, em cada carruagem que era de primeira classe um espaço para transportar duas bicicletas. Na verdade, confesso que o espaço me parece grande e espaçoso e que poderia levar mais... mas calculam que não trouxe fita métrica no bolso...
Abordando este assunto com José Carlos Barbosa, diretor da manutenção e engenharia da CP, assegura-me que estão também a ser preparadas mais 4 carruagens Sorefame para possibilitar o transporte de 12 bicicletas cada uma, "para que seja possível viajar em grupo e em bicicleta". A este propósito, a CP recebeu o prémio nacional de mobilidade, na categoria transportes, atribuído pela Federação Portuguesa de Cicloturismo. O mais curioso, para além do prémio que é bom, é que quem vai receber o prémio são os trabalhadores que estiveram envolvidos na criação do design e na execução da adaptação das carruagens ao transporte de bicicletas.
"Inevitavelmente a linha do Douro tem de abrir até Espanha"
O assunto tem estado na ordem do dia, tem sido discutido com mais (alguma) intensidade, mas a verdade é que nada ainda foi feito. O troço desativado da linha do Douro, entre Pocinho e Barca d"Alva, ao qual a TSF até já dedicou um programa.
13163102
Tem um potencial turístico que não se pode ignorar. Não se pede que lá cheguem todos os comboios que fazem o Douro, mas alguns poderiam, de facto proporcionar o encanto de quem agora enche os comboios até ao Pocinho. Sim, leram bem, não escrevi Régua, Pinhão ou Tua. Há uns anos, notava-se que iam perdendo gente à medida que iam subindo no território, como que se perdessem migalhas a cair dos bolsos, mas esta realidade está, aos poucos, a mudar. Neste comboio que me levou ao Pocinho eram poucos os lugares vazios e a estação estava bem compostas de passageiros para fazer o sentido inverso. Na paragem que faço no Tua apercebo-me que algumas das caras que, à tarde estão a voltar para cima, foram caras com quem me cruzei ao final da manhã para baixo. Ou seja, há mobilidade entre as estações do Douro acima da Régua. E muita... Mas é apenas até aqui, à Régua, que está anunciada a eletrificação da via, que tem de estar concluída até 31 de dezembro de 2023. Estamos a 3 de setembro de 2021 e ainda não se vê nada no terreno. Ou a IP está à espera de uma eletrificação à velocidade da luz ou lá se perderão os fundos comunitários e a obra será empurrada para os fundos do PNI2030. Isto acontecendo, mais se adiará também (creio) a eletrificação total até ao Pocinho, que essa sim está prometida no PNI2030... espera... mas a eletrificação a fazer-se fazia-se já até Barca d"Alva, é para reabrir, não é? Quem gosta de comboios espera que sim, mas ainda há de aparecer por aí algum estudo a levantar problemas e a mostrar que seria difícil, caro e perigoso. São normalmente os argumentos no contexto da ferrovia portuguesa. A título de exemplo, a viagem Pocinho - Barca d"Alva, de comboio, são 30 minutos, enquanto de automóvel é 1h30, em estradas sinuosas de curva contracurva.
Luís Almeida é engenheiro civil de profissão, mas representa a Associação Vale D"Ouro, que existe há 14 anos para dinamizar a região no contexto social, cultural, desportivo e social. A defesa pela linha do Douro encaixa-se neste cariz mais social. Fazemos a viagem juntos entre a Régua e o Pocinho e é de olhos postos na paisagem que nos suga, a receber o vento que entra pela janela da Schindler que me diz que "inevitavelmente a linha do Douro tem de abrir até Espanha" e que esta necessidade "é suportada por um conjunto de bons motivos, desde logo que o mercado turístico possa atravessar quatro patrimónios mundiais: Porto, Douro, Foz Coa, Salamanca "numa única viagem". Mas se o argumento do turismo não chega, cá vai mais um, mais relacionado com contas e economia que é sempre coisa que conta mais em Portugal que coesão territorial. A linha do Douro poderia, no seu entender, servir o porto de Leixões. "Não tem de se tornar uma grande linha de mercadorias, mas é a ligação mais curta entre a faixa atlântica e Espanha. Além de que é uma das linhas mais planas do país, não tem grandes restrições globais à circulação de mercadorias".
Se não chega, atracamos aqui um terceiro argumento, embora me pareça o mais débil de todos para qualquer decisão técnica ou política. Aliás, atrevo-me a dizer que, quando se pondera encerrar (suspender fica mais bonito) uma linha de comboio em Portugal é aquele que menos conta: o serviço público que presta às populações isoladas. Mas ainda assim, cá vai: "depois temos as populações locais e esta é a maneira mais eficiente, mais rápida e mais amiga do ambiente de ligar as populações ao longo do Douro".
Luís Almeida diz e parece-me interessante parafrasear que chegamos ao Pocinho e é como se "tivéssemos ali uma fronteira física", que pode terminar com a reabertura do que está "suspenso" à circulação dos comboios. O governo português já deixou antever que está recetivo a isso, mas tem de existir também interesse do lado dos espanhóis. O Luís lembra-nos que Espanha tem a mesma ambição turística que nós e que tem havido manifestações de apoio às nossas ideias. Mas sei lá... já viram o que era termos ali mais uma porta aberta a milhares de turistas espanhóis que não nos resistem e cá vêm, cada vez mais, todos os anos? Pedro Sanchéz pode ver ali uma oportunidade de os trancar mais por lá. De Espanha nem bom vento, nem bom casamento... mais vale desconfiar...
Tem havido uma falta de perceção daquilo que é o potencial da linha do Douro
O investimento na infraestrutura da linha do Douro é feito a conta gotas e nunca na totalidade da sua extensão. Até o comum mortal, como passageiro dentro do comboio, sente pelo som, pela ausência ou presença de saltitos e pela velocidade a que vamos, que o traçado dificilmente é todo igual. E é verdade, não é. Porquê? "Esta linha em termos de investimento tem ficado sempre para o fim, o que significa que, quando chega à nossa vez, já não há dinheiro", tenta responder-me Luís Almeida.>
Então vamos às diferentes realidades: até Caíde é uma linha dupla e eletrificada, até a Marco de Canaveses é de via única e eletrificada, depois no resto do percurso até à Régua e o Pinhão já está com barra longa soldada, ou seja, já há algum cuidado na sua manutenção (não é elétrica, mas não é má) e... daqui para a frente entramos num troço intermédio que ainda está com uma tecnologia muito antiga. "Tem havido uma falta de perceção daquilo que é o potencial desta linha", sublinha. Há algumas reduções de velocidades de marcha, por pormenores que influenciam o traçado, que se mantêm (sem resolver o problema) há mais de duas décadas.
Do Pocinho desço ao Tua... paro para almoçar e percorro os carris da linha de bitola estreita do Tua, que já foi um dia até Bragança. Há uns 2km (não contei) entre a estação e o túnel junto à barragem de Foz Tua, que mantêm os carris, podem ser percorridos e até fazem parte de um percurso pedonal homologado. Amanhã falarei mais desta linha, mas hoje queria partilhar convosco um sentimento: ao olhar a barragem que "afogou" a linha e a ponte (em muito boas condições) que há imediatamente antes do túnel, inevitavelmente pensei: "isto podia ter sido feito de outra forma e deixarem aqui esta ponte, com aspeto de ter sido intervencionada pouco antes da linha fechar, de um verde brilhante com o bater do sol, é gozar com isto tudo. É uma espécie de esfregar na cara...
Volto à estação... volto ao MiraDouro... pego no bloco de notas e começo a escrevinhar o que aqui acabo de escrever. A paisagem inspira-me e o comboio embala-me. O Douro tem este efeito em nós...
