Reféns de uma profissão. O que está além das greves que paralisam os hospitais?
Um braço de ferro entre um Governo intransigente e enfermeiros que prometem não arredar pé enquanto não tiverem o que querem. Mas afinal, o que querem tanto os enfermeiros ao ponto de paralisar os blocos operatórios mais importantes do país?
Corpo do artigo
"Sinto-me refém da profissão que escolhi." Quem o diz é uma enfermeira de um hospital central do Norte. Mas, tal como ela, podiam falar milhares de enfermeiros que se confessam cansados, exaustos e desanimados.
Em véspera de Natal, os enfermeiros prometeram abrandar - mas não parar - a greve que tem mantido em suspenso qualquer cirurgia nos blocos operatórios mais importantes do país. O abrandamento serve para tratar os doentes mais urgente que aguardam por uma cirurgia em época natalícia - uma pequena prenda de natal que serve para minimizar os efeitos da greve convocada pela Associação Sindical Portuguesa de Enfermeiros (ASPE) e pelo Sindicato Democrático dos Enfermeiros de Portugal (Sindepor).
As negociações entre governo e enfermeiros começaram ainda no tempo de Adalberto Campos Ferreira, o ministro da tutela que abandonou o Governo em outubro, mas nunca chegaram a ver a luz do dia por causa de cativações decretadas pelo gabinete de Mário Centeno.
Desde então, os sindicatos queixam-se que os avanços do Governo são nulos - as propostas não são novas e não passam de repetições do que já foi negociado em 2009. Entretanto, as condições degradaram-se e os enfermeiros exigem mais, principalmente numa altura em que vários funcionários públicos viram as suas reivindicações atendidas. Como justificação para não atender aos anseios dos enfermeiros o Governo diz que não há dinheiro suficiente para um número tão elevado de profissionais.
Agora, enfermeiros e sindicatos dizem que a responsabilidade de parar as greves está nas mãos do Governo, até porque a realidade que existe por detrás da porta de um hospital é dura.
Principalmente para uma classe de profissionais em carência de pessoal e de meios. Por detrás das greves que afetam os blocos operatórios há queixas que se arrastam há vários anos - fracas condições de trabalho, inexistência de uma carreira e de progressões e um sentimento constante de desvalorização.
Fintar a morte dos doentes, dia a dia, todos os dias, é cada vez mais uma tarefa complicada para os enfermeiros que encontram nos hospitais difíceis condições de vida.
E as complicações que surgem e que teimam em manter-se na profissão apenas servem para aumentar um descontentamento que não é novo. Os enfermeiros têm sabido lidar com as dificuldades criadas em 2009, data de uma alteração estrutural nas carreiras, e com a deterioração dos serviços mas agora dizem que chegou o momento de dizer "basta".
Fartos de promessas vãs e da inexistência de negociações úteis com o Governo, os enfermeiros uniram-se numa "Greve Cirúrgica" que tem adiado as cirurgias nos blocos operatórios dos cinco principais centros hospitalares do país desde 22 de novembro e que promete manter-se até ao último dia do ano, na greve mais longa que a profissão alguma vez já fez.
Com uma greve assim tão prolongada, o impacto na carteira dos grevistas poderia levar a desistências. Para o evitar, o grupo inicial de grevistas lançou a 10 de novembro uma campanha de angariação de fundos que entrega 42 euros por dia a cada enfermeiro em greve.
A campanha, que pedia 300 mil euros, conseguiu angariar 360.297 euros através de mais de 14 mil apoiantes. Com uma verba suficiente para suportar a paralisação, a greve ganhou forma e atingiu o Centro Hospitalar São João, o Centro Hospitalar e Universitário do Porto, o Centro Hospitalar e Universitário de Coimbra, o Centro Hospitalar Lisboa Norte e o Centro Hospitalar de Setúbal. Os centros nevrálgicos do Serviço Nacional de Saúde.
São poucos, sem tempo para almoçar ou para ir à casa de banho e há muitos que já nem as lágrimas conseguem segurar. Uma classe em burnout que tenta assegurar que nada falte aos doentes. Mesmo quando não há materiais básicos, como pensos, vacinas, compressas e lençóis. Afinal de que se queixam os enfermeiros para levar até tão longe os protestos?
1. Fracas condições de trabalho
Dentro de um hospital as complicações surgem em cada canto. Faltam vacinas, compressas, pensos e até lençóis. E nada disto é novidade, a situação de falta de materiais arrasta-se há vários anos.
Habituados ao "desenrasca", os enfermeiros têm sabido gerir a falta de meios com recurso ao improviso. E talvez por isso sejam tão valorizados lá fora. Mas cá dentro, a realidade é outra.
A Associação Sindical Portuguesa dos Enfermeiros (ASPE) denuncia que muitos enfermeiros trabalham por turnos sem os períodos legais de descanso antes da alteração de horário. Mas nem isso os faz abandonar os seus doentes, até porque os poucos enfermeiros que existem só conseguem garantir a segurança dos utentes a seu cargo com 12 ou 13 horas de trabalho diárias.
Setores onde 40 doentes ficam a cargo de um só enfermeiro são uma realidade que obriga estes profissionais a ir muito para além dos seus horários. E, quer este sindicato quer a Ordem dos Enfermeiros denunciam o que chamam de "falsas horas extraordinárias" porque o pagamento ou as devidas folgas nunca chegam a ser entregues pelo Estado, que já acumula uma dívida de mais de 2 milhões de horas para com estes profissionais.
Neste ritmo frenético, é usual enfermeiros concluírem a semana com 50 ou até 70 horas de trabalho. Mesmo depois de decretadas as 35 horas semanais de trabalho para todos os funcionários públicos.
A somar a todas as horas extraordinárias que dão, as necessidades dentro dos hospitais são tantas que pouco tempo sobra aos enfermeiros para as refeições ou até para idas à casa de banho.
Uma pesada carga de trabalho que se conjuga com uma ainda mais pesada carga emocional, onde não sobra tempo para lidar com a morte, tantas vezes presente no seu quotidiano.
O resultado é catastrófico, com muitos enfermeiros a viver numa exaustão extrema que leva muitos às lágrimas e a equacionar desistirem da profissão que os apaixona.
2. Inexistência de uma carreira
Decorria o ano de 2009 quando os enfermeiros assistiram às negociações para a alteração das carreiras, que eliminaram três dos cinco graus existentes, mantendo apenas dois níveis. A questão é que um dos níveis, o dos enfermeiros principais, nunca chegou a ser implementado. Por isso, apesar de estar criada, a carreira dos enfermeiros nunca foi efetivada.
Neste momento, em termos salariais, pouco importa se um enfermeiro tem 15 dias ou 20 anos de experiência. Recebem todos o mesmo e no final do mês entra em casa pouco mais de 900 euros - um tratamento que consideram injusto e que querem ver resolvido com a criação de três categorias.
Além disso, os enfermeiros queixam-se que o descongelamento das profissões não está a ser feito da maneira correta, com erros nos cálculos dos pontos.
Mas, acima de tudo querem ser tratados de forma igual a outros funcionários públicos do setor, como os farmacêuticos e assistentes sociais, que começam as carreiras nos 1600 euros brutos.
3. Falta de valorização da profissão
No final do mês, do ano e de uma vida, um enfermeiro trabalha e não se sente valorizado. De si, dá tudo. Abdicam de tempo com a família para cuidar de outros, faltam a natais e aniversários e muitos estão ausentes da vida dos filhos.
Sentem-se dentro de uma bolha, capturados por uma profissão que não é valorizada e que não os compensa pelo esforço exigido, quer na carga horária, quer em inúmeros outros sacrifícios diários.
Muitos pensam mesmo em abandonar a profissão que tem uma taxa de absentismo nos 12% - um valor histórico. Estão de tal forma exaustos que um em cada cinco enfermeiros sofre de burnout - uma síndrome que significa "queimar até à exaustão". Uma situação instável que aumenta os riscos clínicos e a insegurança nos serviços.
Mas até içarem a bandeira branca, há uma última luta que querem ganhar. Pela profissão e pelos doentes que pode terminar já nesta sexta-feira.
LER MAIS:
- Ministra da Saúde pede desculpa a enfermeiros. "É um ponto de viragem" na relação
- Enfermeiros dão sinal de "boa vontade". Blocos operatórios na máxima força antes do Natal
- "Governo não decide." Comissão dos Enfermeiros abandona negociações por falta de propostas
- Derradeiro esforço. Ministra da Saúde convida sindicatos dos enfermeiros para reunião
- Enfermeiros suspendem greve dos dias 26, 27 e 28 de dezembro
- Ordem dos Enfermeiros não desiste da categoria de especialista