"Saturação" e perda de "qualidade". Como a dependência de horas extra dos médicos levou à "desorganização" do SNS
O anestesiologista Nuno Freitas sublinhou na TSF que o serviço de urgência atual assenta num conjunto de horas extraordinárias, para lá do horário normal dos médicos e de outros profissionais de saúde.
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O médico anestesiologista Nuno Freitas explicou na TSF como é que o Serviço Nacional de Saúde se tornou tão dependente das horas extraordinárias dos médicos. Agora que já tantos avisaram que deixarão de trabalhar mais do que as 150 horas extraordinárias anuais, vários hospitais estão a ressentir-se. Uma consequência que será particularmente sentida a partir deste mês e especialmente em novembro.
"Há uma saturação da classe médica. A classe médica está absolutamente saturada de ter, por um lado, uma desorganização crescente dentro do Serviço Nacional de Saúde e uma desorganização nos serviços. Esta ideia também completamente utilitária de que temos de aumentar a produção a todo o custo, temos de aumentar o número de atos sem sequer prever o básico dos recursos humanos, que é termos equipas suficientemente amplas para poder suprir as necessidades, mas também ter um equilíbrio entre aquilo que é o esforço profissional da atividade médica regular e tempos de descanso, tempos formativos, tempos para poder, de facto, estar com os doentes e ver os doentes como deve ser. Isso é algo que que desapareceu, designadamente o discurso político da organização do serviço de saúde, dos administradores hospitalares e, portanto, tudo se resume neste momento a Excel e a muita produção. A qualidade passou para segundo plano. E, além disso, qual é hoje a carreira de um médico?", questionou Nuno Freitas.
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Para o especialista, este problema veio demonstrar que o serviço de urgência, "que passou a ser a principal porta de entrada dos doentes no sistema de saúde", assenta num conjunto de horas extraordinárias, para lá do horário normal dos médicos e de outros profissionais de saúde.
"Os médicos já tiveram carreiras estabelecidas e, de facto, mais protegidas do ponto de vista horário, com muito melhor equilíbrio não só familiar mas também para funções muito importantes como funções formativas, de investigação e funções assistenciais que não se esgotam no serviço de urgência. Lembro que o primeiro diploma que houve sobre carreiras médicas e que ajudou exatamente a estruturar o Serviço Nacional de Saúde vem já dos anos 60. Temos uma evolução do sistema de saúde em que, durante muitos anos, se tem abusado do trabalho extraordinário dos médicos para, sobretudo, garantir mais disponibilidade para urgência", acrescentou o anestesiologista.
Entre hospitais, centros hospitalares e unidades locais de saúde, 27 estão com problemas devido ao facto de os médicos se recusarem a fazer mais horas extraordinárias do que as 150 que a lei lhes impõe, nomeadamente os de Almada, Amadora, Aveiro, Barcelos, Barreiro, Braga, Bragança, Caldas da Rainha e Torres Vedras, Coimbra, Covilhã, Famalicão, Gaia, Guarda, Leiria, Lisboa, Loures, Matosinhos, Penafiel, Portalegre, Porto, Póvoa de Varzim, Santa Maria da Feira, Santarém, Viana do Castelo, Vila Real e Viseu.
Na região Norte, há unidades hospitalares sem cirurgia geral no serviço de urgência desde domingo e até final do mês, uns onde a recusa destes profissionais em fazer horas extras ultrapassa os 90%, nomeadamente em obstetrícia, anestesiologia, cirurgia ou pediatria e outros com constrangimentos nas urgências ao receber doentes fora da área de residência.
No centro e sul do país, o cenário é semelhante com hospitais a cancelar a atividade cirúrgica adicional para aliviar as listas de espera, sem urgência de obstetrícia nos próximos fins de semana ou com escalas sem chefes de equipa.