"Vamos ter um aumento muito significativo de impostos indiretos que vai afetar todas as famílias"
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Se as contas publicas vão trazer mais justiça social num país que no último ano passou boa parte do tempo a reclamar em diferentes e diversos setores, a consultora, Bruna Melo considera que essa é a questão principal a descobrir nos próximos tempos, mas com a certeza que, devolvendo rendimento às famílias, com a descida de IRS e prevendo crescimento das receitas do estado, o executivo vai contar com um aumento significativo dos impostos indiretos, que terá efeitos transversais, no quotidiano de todos, por afetar, por exemplo, uma ida ao supermercado, ou o abastecimento do carro na hora de ir à bomba de combustível.
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O governo apresentou uma proposta de orçamento para o próximo ano que diz estar assente em três pilares que considera fundamentais: o reforço do rendimento das famílias com aumentos salariais e redução do IRS, reforço do investimento de iniciativa pública e privada e o estímulo à proteção do futuro.
Mas para Bruna Melo, o executivo podia ter ido mais longe em alguns domínios, apesar de entender as opções, como, a redução da tributação em sede de IRS desde o primeiro ao quinto escalão, somando-se a atualização dos limites dos escalões a 3%, também o aumento do salário mínimo nacional para os 820 euros, valor que resulta do reforço do Acordo de Rendimentos, Salários e Competitividade com os parceiros sociais, além do referencial de 5% para os aumentos no setor privado, que o ministro diz ser histórico.
A proposta prevê ainda o reforço do mínimo de existência, mantendo-se a isenção de tributação do salário mínimo nacional e um aumento das pensões de 6,2%, acima da inflação registada em 2023 e a prevista para 2024, que para Fernando Medina significa o maior aumento desde que há fórmula de atualização.
O governo considera ainda poderoso o pacote do IRS Jovem, isenção fiscal reforçada e limites alargados: os trabalhadores mais jovens terão 100% de isenção no primeiro ano de trabalho (com rendimentos até ao limite de 40 vezes o Indexante de Apoios Sociais), 75% no segundo ano (30 vezes o indexante), 50% no terceiro e quarto anos (com o limite de 20 IAS) e 25% no quinto (dez IAS).
Para a consultora, este é um orçamento conservador face ao excedente orçamental, favorece as famílias, mas esquece as empresas. Não responde à reivindicação de descida generalizada de IRC e TSU reclamada pelas associações patronais, pelo alegado esforço de tesouraria das empresas na resposta ao aumento do custo de vida e dos próprios salários.
Na área da habitação, considera que o governo não apresenta nada de novo e perde oportunidade de se aliar aos privados para resolver o problema da escassez de casas, compensação fiscal de custos na construção e mesmo o benefício para quem tem crédito à habitação é medida pontual e não estrutural.
Manifesta preocupação quanto ao rendimento das famílias e admite que a curiosidade geral possa levar as pessoas a questionar para onde está a ir o excedente orçamental, se a população não vê melhorias em serviços nas áreas da saúde e educação.
Espera que o governo esteja aberto ao diálogo e que ainda possa existir negociação a nível parlamentar.
Bruna Melo, fiscalista e partner da EY lê as escolhas do governo para o Orçamento do Estado para 2024 apresentado esta semana, na entrevista "A Vida do Dinheiro" com os jornalistas, Bruno Mateus e Ana Maria Ramos.
Considera que de uma forma global as contas públicas vão trazer mais justiça social num país que no último ano passou boa parte do tempo a reclamar em diferentes e diversos setores?
Essa é a questão, este exercício orçamental torna público um conjunto de opções que o Governo tomou para o próximo ano, que vão definir a consolidação orçamental para o próximo ano. Acabamos um ano com uma previsão de excedente orçamental perto de 0,9% do PIB, estima-se em torno de 1,5 mil milhões de euros e era reclamado ao Governo que houvesse aqui um esforço de redistribuição desse excedente designadamente em termos de alívio e de aumento do rendimento disponível às famílias. Este orçamento é apresentado na sequência do acordo celebrado entre o Governo e os parceiros sociais, ou a maioria deles, que de facto tomaram como eixos prioritários a valorização dos rendimentos dos trabalhadores e das famílias portuguesas e também a competitividade das empresas da economia portuguesa. Vê-se de facto que há um espelho nas medidas que estão nesse acordo com as medidas que foram incluídas neste Orçamento de Estado no que toca às famílias. No que toca às empresas e à competitividade e ao crescimento da economia, há aqui algumas lacunas e talvez o Governo pudesse ter ido mais longe nessa matéria.
Acha que não será suficiente para que estes setores, aqueles que têm sido mais reivindicativos, nomeadamente a educação e a saúde, sintam que este orçamento lhes serve, que é também feito a pensar neles?
É um orçamento que acaba por ser marcado pelo conservadorismo que o próprio Ministro das Finanças já assumiu como uma prioridade, um orçamento conservador, prudente, na medida em que pretende guardar para uma eventualidade futura algum excedente e acaba por assim, se calhar, não prever o nível de investimento que poderia ser previsto para alguns setores, como referiu. Mesmo ao nível das famílias, este excedente acaba por ter alguma timidez na parte que traduz a vontade de devolução de algum rendimento às famílias portuguesas. Temos medidas importantes, sim, a questão de se podíamos ter ido mais longe, o Governo podia ter ido mais longe, podia ter sido mais benévolo para com as famílias na ótica de devolução do poder de compra que estas famílias têm vindo a perder.
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Já lá iremos concretamente a essas questões. Focou também aqui o Acordo de Rendimentos, Salários e Competitividade com os parceiros sociais ou com a maioria deles, porque a CGTP esteve novamente ausente nesta revisão e a CIP também esteve ausente na assinatura. O aumento histórico do salário mínimo para 820 euros, acha que podiam ter ido mais longe? Acha que, como alguns sindicatos e oposição reivindicavam, poderia ter sido mais?
Este é um tema que tem de ser visto de duas frentes. De um lado, as famílias e os trabalhadores que vão beneficiar com este aumento do salário mínimo, principalmente as que hoje estão a receber, de facto, esse salário mínimo que vai ser aumentado, mas, por outro lado, também as empresas, que muitas delas vivem crises de tesouraria e crises financeiras para as quais este aumento do salário mínimo vai trazer constrangimentos e uma necessidade adicional de fazer contas e de tentar otimizar os rendimentos disponíveis para, de facto, fazer face ao aumento do salário mínimo e a que está associado as contribuições à carga do empregador para a segurança social. Por isso, é um tema que requer equilíbrios para que não criemos distorções do lado da economia, favorecendo as famílias pelo lado do salário mínimo. Isso poderia resolver-se com uma subida, digamos que generalizada, da taxa nominal, por exemplo, de IRC ou TSU. As duas medidas são uma grande reivindicação dos parceiros sociais e das associações empresariais já há vários anos. Portugal não figura bem nos rankings de competitividade fiscal em virtude da sua taxa de IRC, na taxa marginal máxima, que é a mais alta da União Europeia. Em termos marginais, podemos atingir uma taxa de 31,5% se considerarmos a taxa base de IRC acrescida da derrama municipal e das derramas estaduais, que foram introduzidas com caráter excecional em 2010, mas, entretanto, a excecionalidade é um conceito que está a prolongar-se no tempo. De facto, essa é uma reivindicação não só à redução da taxa base, mas também uma reorganização das derramas estaduais que hoje têm tido um impacto muito significativo na composição da carga fiscal para as empresas e também a descida da TSU tem sido reivindicada. O acordo e os parceiros sociais têm falado numa descida de 1% da contribuição para a Segurança Social a cargo da entidade empregadora, que permitiria, claramente, um alívio de tesouraria para estas empresas.
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O aumento, quanto ao reforço do salário da função pública, o aumento de 3,6% e o intercalar, digamos, provavelmente na ordem de 1%, bem como o reforço do mínimo de existência, mantendo-se a isenção da tributação do salário mínimo nacional, parece ser uma medida, então, ajustada à realidade?
É uma medida que está nos mínimos, não é? Aqui há uma atualização e um alívio fiscal que não faz mais do que acompanhar um pouco a inflação, por forma a que os aumentos do rendimento das nossas famílias, que venham a ocorrer por força da inflação, não sejam consumidos por um aumento fiscal. Por isso, quer as atualizações dos escalões, quer mesmo as revisões da taxa, vão pouco mais além do que proteger este possível consumo do aumento do rendimento pela fiscalidade, pelo IRS. Voltamos à questão de se poderíamos ter ido mais longe, se o governo teria, tem ou não, condições e intenção de ir mais longe e, de facto, dar um alívio manifesto a estas famílias.
Ao nível das pensões, vão aumentar 6,2% acima da inflação que era registada em 2023, que era prevista para 2024. O Sr. Ministro diz que é o maior aumento desde que há fórmula de atualização de pensões. Concorda?
É um aumento significativo e bastante acima da inflação prevista para 2024. Há aqui um efeito que, não só para os pensionistas, mas que também não pode ser ignorado, que é, nós vemos aqui um aumento da receita fiscal, e o próprio governo o traduz no relatório do Orçamento do Estado, vemos um aumento da receita fiscal de 4,8% para 2024, temos uma descida da receita fiscal de 0,4%, mas temos, parafraseando, um enorme aumento de impostos indiretos que está contido neste Orçamento do Estado. Por isso, por um lado, vamos ter um alívio dos impostos sobre o rendimento das famílias por via do IRS, mas vamos ter um aumento de impostos que são tipicamente silenciosos, que vão afetar todas as famílias, desde as que têm menores rendimentos, até às que têm maiores rendimentos. Quando vão às compras, quando vão abastecer o automóvel de combustível, e esse é um aumento muito significativo que se vai verificar no próximo ano.
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A redução da tributação em sede de IRS, desde o primeiro ao quinto escalão, somando-se à atualização dos limites dos escalões a 3%, no que é que se vai traduzir na prática? No tal impacto transversal de que fala o governo? É mesmo transversal?
O IRS é um imposto progressivo e, no fundo, o nosso rendimento anual ou mensal, se quisermos, vai ser dividido em fatias, em parcelas, que vão todas elas ser tributadas às várias parcelas e taxas previstas na tabela do IRS. Por isso, independentemente de estarmos a meio da tabela ou no final da tabela, uma parte do nosso rendimento vai sempre beneficiar da redução das taxas previstas para os cinco primeiros escalões e também do ajustamento da atualização dos escalões. Por isso, nessa medida, acaba por ser um alívio, uma redução transversal, porque vai afetar, sem sombra de dúvida, todas as famílias, mas em termos percentuais de variação da receita, a poupança vai sentir-se mais ao nível das famílias com menores rendimentos e que tenham rendimento até ao quinto escalão. Acho que é importante deixarmos claro que o quinto escalão está perto dos 30 mil euros anuais.
Significa que a classe média, e se calhar nem precisamos de ir à média alta ainda, a classe média não é tão abrangida, não é tão beneficiada, não é? É isso que quer dizer?
Não, em termos percentuais a poupança e a redução da carga fiscal acaba até por se verificar mais nestas linhas, nestes primeiros escalões da tabela. O que acontece é que os escalões com rendimentos mais elevados acabam também por beneficiar, por causa da progressividade do imposto.
Falava ainda agora do aumento dos impostos indiretos. Isso, de facto, é a moeda de troca? É o pagamento que o contribuinte vai ter de fazer por este benefício?
O exercício orçamental é um exercício de somas, de saldos, de balanços. Estas foram, de facto, as opções tomadas pelo governo. Um alívio parcial de impostos sobre as famílias, que acabou por ser compensado com este tipo de impostos, que são transversais, que acabam por incidir sobre cada um de nós. Por outro lado, se calhar, o governo podia ter ido mais longe nas medidas de apoio às empresas e que permitissem as empresas crescer, serem mais competitivas, terem mais capacidade para contratar, criar mais postos de trabalho e termos um caminho, uma rota ascendente e favorável a um crescimento económico que foi revisto em baixa pelo FMI recentemente e em que temos a taxa de abrandamento mais elevada da zona euro.
É o preço a pagar, então?
São as opções feitas pelo governo e as contas feitas pelo governo para este orçamento.
Também gostava de ter a sua leitura sobre as alterações ao IRS Jovem, que traz a isenção fiscal reforçada e limites alargados, mas será este um instrumento, de facto, poderoso para cativar os jovens, para retermos talento para criação e fixação de emprego jovem?
É um instrumento muito válido, que tem tido adesão, até porque é um instrumento de aplicação fácil, relativamente fácil, o que é uma boa notícia. Não é um instrumento que traga uma poupança muito material, é claro que com esta revisão estamos a falar de valores de poupança potencial muito mais elevados, não só pelo aumento do desconto de IRS anual, mas também pelo aumento do limite de até onde pode ir esse desconto. Por isso, sem dúvida, que é uma medida positiva e de aplaudir na intenção de trazer, e voltar a captar as nossas pessoas qualificadas, mas, de novo, talvez o governo pudesse ter ido mais longe não só neste tipo de medidas, mas em medidas mais estruturais e não tão pontuais e conjunturais, que permitissem dar outras condições para os jovens quererem vir.
Melhores salários, acesso à habitação, que tem sido uma das grandes razões até para que estes jovens procurem um futuro lá fora, é dessas questões que fala?
Claro, claro que sim, questões não só fiscais. Até porque, como disse, as poupanças podem não compensar, a poupança fiscal pode não compensar a diferença salarial base entre Portugal e outros países da União Europeia, mas, de facto, outras condições para, de facto, os salários portugueses serem muito superiores ao que são hoje, o salário médio português hoje anda na ordem dos 1300€ mensais. Se compararmos com um conjunto, e não precisa de ser um conjunto muito alargado de países da União Europeia, vemos a discrepância que existe e, talvez dificilmente, apenas com este tipo de incentivos fiscais, consigamos estar em condições paritárias e de competitividade.
E é perigoso a aproximação do salário médio ao salário mínimo nacional?
É perigoso e é socialmente muito negativo, quer para os que cá estão, quer para os que potencialmente pudessem voltar ou vir pela primeira vez. Estamos a colocar-nos numa rota que não é ascendente no esforço de captar, de atrair, de voltar a atrair as nossas pessoas. E, de facto, talvez este orçamento falte em algumas medidas estruturais que permitem virar aqui este paradigma.
Falta ambição?
Falta alguma ambição e falta, talvez, ou haja talvez, conservadorismo e prudência a mais.
Mas o governo, e também gostava de ouvi-la neste domínio, ao nível das prestações sociais, indica aqui o aumento do abono de família entre 25% e 30%, o alargamento da gratuidade das creches que vai atingir cerca de 120 mil crianças, o reforço do complemento solidário para idosos com aumento de 62,45 euros que antecipa em dois anos o objetivo de convergência com o limiar da pobreza e mesmo o reforço do rendimento social de inserção com aumento mensal de 28 euros. Mais uma vez, pesa aqui a balança para o lado social, menos para o lado empresarial, mas até neste domínio poderia ter ido mais longe com o tal ascendente?
Essa é uma opção que vemos em vários níveis. De facto, o governo abandona, em alguns casos, os apoios transversais. Por exemplo, a revogação que já tinha sido antecipada do IVA zero no cabaz de alimentos, para o substituir com um conjunto de apoios direcionados a famílias mais necessitadas desse apoio, de facto, medidas como o IVA zero, sendo transversais, apoiam quem precisa e quem não precisa. Por isso, de facto, essa é uma opção que marca muito este exercício orçamental e parece-me que existe uma verba interessante alocada a este tipo de apoios e prestações sociais, que marca bem as decisões do governo.
Mas acha que o fim do IVA zero veio agora na altura certa ou deveria prolongar-se ainda por mais tempo?
Esta medida, este fim, já tinha sido anunciado, já tinha sido comunicado, já tinha sido recomendado pela Comissão Europeia e, de facto, percebe-se a opção de optar por medidas mais direcionadas às necessidades sociais e económicas das nossas famílias.
Ainda que pese agora mais no bolso das pessoas quando forem às compras, é isso?
É, mas em termos de contas e já há simulações feitas, o impacto não é material no fim do mês nos bolsos das pessoas.
Passando aqui ao segundo pilar, o governo incluiu o reforço ao investimento de iniciativa pública e privada e o Ministro das Finanças destacou a aposta em setores como o Serviço Nacional de Saúde, Habitação ou Educação. No caso da saúde, por exemplo, com transferências do Orçamento do Estado que aumentarão no próximo ano em 10%, ou seja, 1209 milhões de euros, chegando agora aos 13 500 milhões de euros. Acha que, como diz o Ministro, um aumento de 72% face ao ano de 2015 será mesmo suficiente para resolver as negociações que ainda estão pendentes com os médicos?
Acho que essa é uma questão que principalmente as nossas famílias podem ter, na medida em que percebam que, de facto, este excedente orçamental não está a ser totalmente redistribuído no aumento dos rendimentos disponíveis das famílias e, então, para onde é que está a ir? Se não o vemos no orçamento da saúde, no orçamento da educação, porque, de facto, há questões que se arrastam ao longo dos últimos anos, é uma questão que pode levantar alguma curiosidade por parte das nossas famílias que, de facto, precisam de perceber que se não estamos a ser ainda mais aliviados, então, por outro lado, precisamos de perceber para onde está a ir este investimento.
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Mas as pessoas querem ver acontecer e aquilo que têm visto são manifestações e aquilo que têm visto é o caos no Serviço Nacional de Saúde. Portanto, isto é ver para querer? O que é que poderá acontecer aqui na expectativa das pessoas?
Acho que a expectativa é termos um melhor serviço de saúde, melhor e com mais investimento, porque, de facto, com o nível da carga fiscal que as famílias têm suportado - e aqui estou especialmente preocupada com a carga fiscal das nossas famílias -, de facto, as pessoas perguntam-se quando é que a carga fiscal suportada em Portugal vai ter um reflexo equivalente nos serviços públicos.
E no domínio empresarial, já aqui falou da carga brutal de impostos indiretos, não havendo uma descida da taxa nominal de IRC nem da TSU, como as confederações patronais pediam. Mas há um reforço do incentivo à capitalização das empresas, de forma a privilegiar quem investe com recursos próprios, diz o ministro, em vez de quem investe com capitais alheios. Será quanto baste perante o atual cenário macro de incerteza e perante as condições do país?
Este é um incentivo que já está na legislação com moldes diferentes há alguns anos, foi revisto ano passado e aqui também falamos um bocadinho de alguma instabilidade fiscal e legislativa. Este é um regime que tem vindo a ser alvo de sucessivas revisões, com a instabilidade que isso traz para os agentes económicos. De facto, é um incentivo relevante, porque o que está aqui subjacente é uma alavancagem, um endividamento elevado das nossas empresas, que acabam por aumentar os constrangimentos de tesouraria a que estas têm estado sujeitas, principalmente, e uma das razões é porque há um incentivo fiscal às empresas serem financiadas com capitais alheios, seja bancários ou outros, na medida em que pagam os juros à banca e esses juros são dedutíveis ao IRC, à conta de IRC a pagar no final do ano, ao passo de que se financiarem as suas empresas com capital próprio, que não gera juros, não verão essa dedução. Por isso, este tipo de regimes o que permite é equilibrar e equiparar ao financiamento com capitais alheios este financiamento com capital próprio. O que se faz agora, e a proposta do orçamento o que é que dá?? Chamar-lhe reforço, e já explico porquê, pode ser pernicioso, porque de facto o que se altera é o regime anterior, o que previa era uma taxa fixa presumida de juros para os aportes de capital às sociedades e, neste momento, transforma-se essa taxa fixa numa taxa indexada a Euribor a 12 meses, com um spread que pode ir até 2%, o que sendo a taxa fixa de 4,5% ou 5%, hoje, podemos estar perante uma taxa Euribor mais 2% para cima. Mas num futuro que se espera mais próximo do que longe, isso pode não ser verdade, por isso vamos ver como é que o governo também vai reagira esta evolução das taxas de juros e comportar-se relativamente a este benefício.
E no domínio da habitação, há aqui uma previsão de investimento de 1039 milhões de euros, ou seja, o dobro deste ano, um crescimento de 100%, penso, mantendo o programa Primeiro Direito, apoio ao acesso à habitação, bolsa nacional de alojamento, urgente e temporário, vai responder às necessidades atuais da população e resolver os problemas da habitação?
O governo lançou um pacote que entrou em vigor a semana passada, que se mostra de um ponto de vista teórico bastante ambicioso face ao número de matérias que são nele tratadas, mas na verdade, e conhecendo o setor habitacional, o setor da construção e a forma como se comportam os vários agentes neste segmento, sejam proprietários, sejam promotores, sejam inquilinos, vemos que este pacote pode estar muito aquém e ser muito insuficiente em termos de medidas que permitam trazer mais habitação e mais oferta de imóveis ao mercado habitacional, que é o que é preciso, no fundo, para aligeirar.
Agir no imediato, não é?
E esse é um bom ponto, porque há um conjunto de medidas que vão ter uma dificuldade muito acentuada de saírem do papel, porque o Estado não tem meios financeiros, nem logísticos, nem humanos para tirar do papel um conjunto de medidas. Por outro lado, há um conjunto de medidas fiscais que criam mais custos de contexto, seja em sede de IVA, seja de IMI, seja de IMT, que estão a ser percebidos pelo mercado como um desincentivo à nova oferta de habitação, que tem aqui um efeito contra cíclico que não era de todo desejado, espero eu, pelo governo.
Mesmo a esse propósito, o governo promete ainda um parque público de imóveis a custos acessíveis e a reabilitação do parque habitacional do Instituto de Habitação e Reabilitação Urbana. Como é possível tornar isto funcional num sistema que já tem mostrado fragilidades e os estrangulamentos administrativos de que falava ainda há pouco?
Há um setor, uma vertente, um eixo muito relevante no pacote de habitação, que seria muito interessante se conseguisse sair do papel, não querendo ser pessimista, porque não o sou por génese, mas acho difícil que num curto espaço de tempo possa ser implementado, que é o pacote que permite ao governo - e quase que obriga o governo e o Estado -, identificar imóveis públicos para concessão do respetivo direito de superfície a privados, por um período muito alargado, de até 90 anos, para que estes possam construir e disponibilizar habitações para arrendamento acessível.
Mas quando é que eles estarão no mercado?
Exatamente. Este tema peca logo pelo primeiro passo. O governo não faz ideia, o Estado não faz ideia do parque imobiliário que tem, não tem meios para num espaço de tempo curto ter essa noção, e depois há todo um conjunto burocrático para disponibilizar os imóveis, para os preparar para esta disponibilização, para os privados os construírem, por isso há muito trabalho a fazer. Esta podia ter sido uma ótima oportunidade para o Estado se aliar aos privados, porque não pode ser de outra maneira para construir um parque habitacional satisfatório, para cobrir parte das necessidades das nossas famílias, e estamos a perdê-la, porque não estão a ser identificados os pontos chave onde investir. Em termos fiscais, o IVA na construção é um tema que fustiga muitíssimo o setor da construção, e no mercado, no segmento residencial, o IVA não é dedutível pelos promotores, por quem é responsável pela construção dos imóveis, e acaba por ser um custo do projeto, que por um lado, se for totalmente repercutido no comprador final, acaba por aumentar ainda mais os preços e tornar as transações inviáveis. E se for totalmente absorvido pelo promotor também inviabiliza os projetos, por isso não houve uma abertura por parte do governo em aligeirar este IVA, aliás, até foi agravada a possibilidade e dificultada a possibilidade de aplicarmos a taxa reduzida de IVA de 6%, que compara com os 23% da taxa normal, a projetos de construção nova, em contraciclo, sendo que os tribunais portugueses já vieram dar razão a muitos contribuintes no sentido da aplicação desta taxa reduzida de IVA a projetos de construção nova. Isso teria sido um sinal muito significativo para os promotores imobiliários que, de facto, querem trazer novos projetos, querem trazer novas construções para o mercado residencial, mas não têm condições, principalmente com o aumento dos custos dos materiais, mão-de-obra e de taxas de juros, não têm condições para fazer todos os projetos e para levar a cabo todos os projetos.
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Não tendo ido, por exemplo, à questão do IVA na construção, o governo isolou-se mais ainda numa matéria que estava a ser fortemente criticada com este pacote Mais Habitação?
O governo não ouviu grande parte dos apelos que lhe foram feitos pelas associações do setor, pelos promotores, pelos investidores, e tomou aqui algumas posições que vão em contraciclo com o que tem vindo a ser reivindicado e ao que tem sido feito até lá fora, noutros países.
Mesmo a questão do benefício fiscal para quem tem crédito à habitação a uma taxa de esforço entre 30% a 50% do rendimento do agregado familiar.
Essa é a outra ótica do problema, o apoio à família, mas, de facto, outra vez, e se calhar fazendo um paralelismo com o que se passa neste Orçamento do Estado, não são medidas estruturais, são medidas de alívio pontual, conjuntural, que não resolvem nem vão resolver o problema a longo prazo.
Assim como o incentivo fiscal à habitação dos trabalhadores, que presumo que aqui entre o tal apoio aos professores deslocados a mais de 70 quilómetros, cuja taxa de esforço com o alojamento ultrapassa os 35%. Isto será resposta a mais uma reivindicação?
É mais uma medida transitória, esta claramente transitória, paliativa, chamemos-lhe assim, que de facto traz algum alívio e se percebe face ao panorama e à conjuntura que temos, mas, novamente, não traz uma resposta estrutural, um contributo estrutural para daqui a dois, três, quatro, cinco anos não estarmos a falar das mesmas questões.
Há um conjunto de medidas no apoio ao crédito à habitação, mas em relação às rendas, no fundo, era aquilo que já era conhecido. Acha que o governo devia ter ido mais longe? No subsídio da renda e em permitir que haja condições para que quem quer arrendar casa tenha essas condições no mercado atual de arrendamento.
Acho que aí são duas questões. De facto, tem havido este apoio à renda, que toca outra vez nesta ótica mais conjuntural e mais paliativa, mas, por outro lado, acho que esta questão do apoio à capacidade de pagar rendas não se esgota neste programa Habitação, esgota-se num programa social de tentativa - e que, no fundo, está um pouco refletido no acordo celebrado pelo governo com a Concertação Social -, de darmos condições às nossas pessoas de terem mais e melhores rendimentos e às nossas empresas de contratarem mais e darem mais e melhores rendimentos às nossas famílias. Portanto, é sempre uma questão de rendimento. Quanto maior for o rendimento, mais possibilidades e oportunidades terão.
Acha que a discussão do Orçamento do Estado no Parlamento irá mudar alguma coisa substancialmente?
Quero acreditar que há sempre margem de negociação. É claro que estamos a falar de um governo com maioria absoluta no Parlamento, mas, de facto, não é inédito que governos com maioria absoluta venham a adotar propostas de partidos da oposição e espero que assim o seja. Há muita margem de melhoria, de aperfeiçoamento, espero que os partidos da oposição tenham capacidade de apresentarem propostas credíveis e válidas, que mereçam a atenção do governo e diria que seria expectável que o orçamento que fosse sujeito a uma aprovação, a uma votação final global fosse algo diferente do que vemos hoje.
Este alargamento no IRS, naquilo que é proposto neste orçamento, acha que já é uma forma de aproximação também aos partidos?
Acho que é um esforço, acho que pode ser visto como uma moeda de troca, é algum esforço político e de negociação antecipando a discussão que aí vem, mas acho que já foi um passo em frente nesta negociação que vem aí.
A proposta para as contas do Estado em 2024, vai cumprir os objetivos a que se propõe face ao cenário macroeconómico de incerteza? Quer perante os preços das matérias-primas, quer a persistente pressão inflacionista, as futuras decisões da política monetária por parte do Banco Central Europeu, além de todos os outros condicionalismos que decorrem das tensões e dos conflitos geopolíticos, a própria intensidade do abrandamento económico que decorre da política monetária restritiva que advém da Europa e dos Estados Unidos e das tensões geopolíticas também entre o bloco ocidental e oriental.
Acho que os pontos que tocámos aqui acabam por responder um bocadinho. O facto de apenas termos ido, e este apenas, não é pejorativo, mas o governo foi até onde foi neste orçamento, colando-se ali à inflação e não tendo dado uma resposta estrutural à economia e às empresas, acaba por nos deixar mais voláteis à imprevisibilidade da economia e do tal enquadramento geopolítico de que falava, sem grande margem de flexibilidade e de folga para uma eventual adversidade que possa vir aí. Por isso, neste momento, diria que podemos estar algo desprotegidos.
Mas há um excedente orçamental.
Exatamente, que o ministro das Finanças preferiu guardar, em parte, mais para a frente.
Como que vê essa decisão do governo? É a tal prudência?
Desde 2009 que a nossa dívida pública não tinha descido como o ministro das Finanças se propõe descer abaixo dos 100% do PIB. Também é de louvar e é de parabenizar este esforço de consolidação orçamental e de diminuição da dívida pública. É claro que o orçamento não estica para todas as necessidades, mas há que fazer opções e estas foram as opções tomadas pelo governo.