Autorização para as verbas da "derrapagem" de mais de 1,8ME nas obras do antigo Hospital Militar de Belém foi feita sem aval do governo. Auditoria - a que TSF teve acesso - revela várias ilegalidades nos ajustes diretos para a construção do Centro de Apoio Militar Covid-19 e responsabiliza ex-diretor-geral de Recursos de Defesa Nacional, Alberto Coelho.
Três semanas. Este foi o tempo que durou a obra no antigo Hospital Militar de Belém e parece ter sido a única coisa que correu conforme planeado, tudo o resto descambou, sobretudo as verbas adjudicadas. A auditoria da Inspeção-Geral da Defesa Nacional para perceber porque é que as obras custaram três vezes mais do que o previsto arrasa a gestão feita por Alberto Coelho, ex-diretor-geral de Recursos de Defesa Nacional, e revela que foi ele a dar autorização de despesa quando não tinha poderes para tal.
O extenso relatório de 43 páginas a que a TSF teve acesso - e que foi enviado pelo governo para o Tribunal de Contas - conclui que "os atos e procedimentos administrativos e financeiros auditados denotam inconformidades legais", à cabeça com a "falta de evidência do pedido expresso à tutela para autorizar a despesa (...) e consequente ausência de competência por parte do Diretor-geral da DGRDN para autorizar a despesa, escolher as entidades a convidar, aprovar as peças do procedimento e decidir a adjudicação".
Mas não se fica por aqui: há uma "ausência do projeto de execução e da aprovação das peças do procedimento nos contratos" e o "objeto contratual das empreitadas foi defeituosamente definido". Além disso, foi contratada uma outra empresa de serviços para fiscalizar a obra, "sem convite ou caderno de encargos", e que se veio a provar que aquilo que fez foi apresentar "uma vasta reportagem fotográfica e um texto geral pouco cuidado", tendo por isso recebido 67.500€. E o ministro sabia? Aparentemente não, mas já lá vamos.
"Obras mínimas"
Para perceber o contexto, é importante voltar a março de 2020 e à primeira vaga da pandemia. Na altura, o ex-hospital militar de Belém foi identificado como infraestrutura viável para cumprir a missão de "alojar cidadãos em situações críticas de gravidade ligeira ou assintomática, de pessoas socialmente frágeis ou sem capacidade familiar para realizar quarentena corretamente".
Desde logo, o edifício foi sinalizado por "não carecer de intervenções profundas de construção", sendo que tinha potencial para instalar cerca de 150 camas com obras a decorrer em três pisos.
Ora, dada a urgência da situação, num despacho de 19 de março, João Gomes Cravinho escreve que "o objetivo fundamental é a disponibilização de camas o mais rapidamente possível" e que "as obras devem ser aquelas que se revelem mínimas para atingir o objetivo".
A missiva estava dada e, no dia antes, já a DGRDN tinha posto em marcha o processo para contratar uma empresa para fazer a obra: a TRXMS. A construtora que, no próprio dia, apresentou uma proposta genérica, sem quantidades ou valores parcelares, para "trabalhos de reabilitação e colocação em funcionamento de uma base de assistência hospitalar de reforço". Orçamento? 750 mil euros com as obras a começar no dia seguinte - 19 de março.
Já o estaleiro estava montado na Ajuda quando o Major-General e médico Esmeraldo Alfarroba entregou um relatório no Ministério que acrescenta uma outra visão para as obras, incluindo duas hipóteses, ambas com camas em pressão negativa e de cuidados intensivos. Problema? As obras já tinham arrancado.
A DGRDN alertou para "níveis de ambição bastante diferentes" e disse à tutela que as hipóteses em cima da mesa seriam assumir indemnizações sobre o que já estava em marcha ou continuar com o projeto, mas integrando um membro do Estado-Maior General das Forças Armadas da área técnica da saúde. De resto, aquilo que tinha sido acordado entre Estado e a empresa TRXMS era de um valor máximo de 750 mil euros.
Enquanto o trabalho no terreno não parava, as comunicações continuavam com o Secretário de Estado Adjunto e da Defesa Nacional, Jorge Seguro Sanches, a pedir mais detalhes sobre os trabalhos adjudicados e o valor de eventuais indemnizações. Na resposta, recebe que o processo administrativo ainda "aguardava desfecho desta avaliação" e que a indemnização era entre 30 a 40% do valor orçamentado.
Fica então decidido, numa reunião a 23 de março, que o Exército entra para colaborar nos trabalhos em curso, identificando então novas necessidades e com uma "Equipa de Gestão" no projeto produzindo relatórios diários. E com "novas necessidades" vêm as derrapagens.
Um contrato, dois contratos, três contratos
Quase uma semana depois de as obras terem começado - e face às "novas necessidades" identificadas pelo Exército -, a DGRDN recebe uma proposta de trabalhos de construção civil e outros, no valor de mais de 422 mil euros, da empresa Weltbauen, "não tendo sido evidenciada a existência de convite e caderno de encargos, entre outros documentos essenciais".
Ao mesmo tempo, há uma nova missiva do gabinete de Seguro Sanches a querer saber o custo da obra. Na volta do correio eletrónico, a tutela fica a saber que o valor é de 750 mil euros, faltando acrescentar "os valores para as outras coisas para pôr a funcionar e que são de quem vai tomar conta e sugestões do Exército". Este é o primeiro sinal vermelho de que os valores iam descambar.
Acontece que, paralelamente, foi celebrado um contrato de consórcio entre as duas empresas envolvidas, até porque a Weltbauen apenas dispunha de "alvará de obras públicas insuficiente para executar as obras no valor contratualizado". Resumindo: há já duas empresas envolvidas e que apresentaram aditamentos aos trabalhos, encarecendo bastante o valor inicialmente previsto.
Há ainda uma terceira empresa que é contratada, a RomaPremium, para acompanhamento e fiscalização da obra, tendo por objetivo "estabelecer uma sistemática e mais eficiente e eficaz da gestão predial, com foco na manutenção preventiva e corretiva, conforme realizado em vistoria" (para quem não entendeu a frase, o relatório da auditoria faz questão de realçar que esta é, efetivamente, a transcrição do objetivo).
Contas feitas: 2.598.063,46€.
"Avançar a todo o gás"
Corria o dia 14 de abril de 2020 quando o ministério da Defesa recebe um email da DGRDN a informar que os trabalhos tinham sido concluídos. Na mensagem, lia-se: "em três semanas, tal como programado, foi-se muito além do inicialmente proposto". "Praticamente todo o edifício está recuperado, operacional e com extras que nunca teve", completa esta direção-geral sem nunca falar em valores.
A matemática só chega adiante, não obstante de Seguro Sanches já ter pedido anteriormente dados sobre o assunto. A 22 de junho, o gabinete do Secretário de Estado solicita "o valor total discriminado" despendido nas obras, também "informação sobre o tipo de contratos que foram até ao momento realizados, bem como informação do nível de conclusão das respetivas contratualizações, isto é, se as obrigações dos mesmos já se encontram prestadas e a obra entregue". De realçar que, nesta data, já tinham sido recebidos os primeiros doentes com Covid-19 nesta unidade.
Voltando à troca de mensagens, a entidade dirigida por Alberto Coelho responde pela primeira vez que o custo da obra ascendia a mais de dois milhões e meio de euros, que os contratos foram integralmente executados e que tinham sido feitos por Ajuste Direto Simplificado, ao abrigo do decreto-lei que facilitou a contratação pública durante a pandemia.
E aqui soam campainhas no ministério da Defesa. O gabinete de Seguro Sanches retoma o contacto a constatar que não está patente a "discriminação do valor total" e que não são identificados "os contratos realizados e as contrapartes ou os valores adjudicados (e por quem e ao abrigo de que disposição legal ou delegação de poderes)".
Entre outras questões, incluindo o sublinhado de não ter havido comunicação à tutela das adjudicações, lê-se: "O custo da obra apresentada inicialmente rondava os 750 mil euros. Terminou pelo preço de 2.598.063,46€. Quem autorizou este acréscimo de custos mais de 3 vezes superior? E fê-lo ao abrigo de competência própria ou delegada?".
A resposta chega ao gabinete de Seguro Sanches a 10 de julho. Alberto Coelho argumenta que os procedimentos administrativos foram validados previamente pela Secretaria-Geral do Ministério da Defesa Nacional ao abrigo de uma alínea do Decreto-Lei 10-A/2020. A alínea em causa diz que "os pedidos de autorização da tutela financeira e setorial, quando exigíveis por lei, consideram-se tacitamente deferidos, na ausência de pronúncia, logo que decorridas 24 horas após remessa, por via eletrónica, à respetiva entidade pública com competência para os autorizar".
Já no contraditório pedido pela Inspeção-Geral, Alberto Coelho nota que informou o ministro numa apresentação presencial sobre o início do procedimento e autorização para a realização de despesa, tendo recebido o OK da parte do ministro que, inclusive, num despacho de 20 de março dava indicação para "avançar a todo o gás".
Ora, a inspeção nota que a lei é clara e que tem de haver um pedido formal de autorização de despesa e que "o avançar a todo o gás" presente no despacho é "uma mera orientação, não contendo as autorizações e as delegações de competências alegadas por essa Direção-Geral".
E de onde saiu o dinheiro?
Quando a polémica rebentou, as principais dúvidas de partidos e jornalistas eram: de onde saiu o dinheiro para cobrir o valor da derrapagem?
Do governo, nenhuma resposta até que, numa audição no parlamento em outubro, João Gomes Cravinho assumiu que não seriam as Forças Armadas a pagar, mas sim a Defesa.
No dia em que reconheceu ter havido "um desvio muito significativo" no valor das obras, o ministro da Defesa garantiu que a verba era assumida pela Direção-Geral de Recursos de Defesa Nacional. Mas, afinal, não é bem assim.
A auditoria a que a TSF teve acesso nota que "as despesas associadas aos contratos de empreitadas de obras públicas e de aquisição de serviços, no montante global de 3.195.618,06€ (com IVA), foram suportadas com verbas da Lei de Infraestruturas Militares (LIM), apesar dessa intervenção não se encontrar inscrita na LIM", tendo sido os valores suportados pelas receitas do ano 2020.
"Foi referido que o pagamento pela LIM ocorreu porque não havia orçamento de Estado disponível e que essa era a única fonte de financiamento disponível", lê-se no relatório que nota que estas despesas não podem ser afetas a esta lei. E isso já o governo sabia antes da audição do ministro no parlamento, mas nada foi referido então.
O relatório mostra que em agosto, na sequência de comunicações com Alberto Coelho, o secretário de Estado Seguro Sanches emitiu um despacho onde constava que "não tinha dado acordo" e que "nem tampouco lhe tinha sido proposto" qualquer integração desta despesa na LIM. "Nesta conformidade, os projetos devem ser corrigidos", escrevia o governante.
Não há consequências?
Na mesma audição em que assumiu ter havido um "desvio significativo", Cravinho sublinhava ter muitas questões para as quais ainda não tinha resposta, daí ter pedido esta auditoria, mas ia avançando que seriam retiradas consequências.
O tempo foi passando com a auditoria em processo (foi concluída em meados de dezembro) e, posteriormente, mantida em segredo pelo ministério que, em fevereiro deste ano, respondia à TSF que "no seguimento da recomendação da Inspeção-Geral de Defesa Nacional (IGDN), o Ministro da Defesa Nacional enviou o relatório dessa instituição para o Tribunal de Contas para os efeitos tidos por convenientes".
Mas e consequências? Alberto Coelho foi afastado da DGRDN no final de fevereiro, mas o ministro, também na Assembleia da República, justificou a mudança com as necessidades de "olhar e abordagens novos", negando tratar-se de uma exoneração.
"É preciso um olhar e abordagens novos, isto implica mudanças de pessoas e de estruturas. Não há aqui nenhum tipo de exoneração. [Alberto Coelho] chegou ao final do mandato. A substituição está relacionada com a conclusão de que necessitamos de novos procedimentos e de uma nova orgânica para responder a alguns problemas", disse então o ministro sobre Alberto Coelho, histórico quadro do ministério da Defesa e militante do CDS.
No entanto, à luz deste relatório da Inspeção-Geral de Defesa Nacional, sobram questões sobre que consequências vai ou não ainda tirar o governo sobre este desvio que penalizou o Estado em quase 2 milhões de euros. Já sobre o futuro do Centro de Apoio Militar Covid-19, esse já está a ser tratado: "a sua rentabilização encontra-se a ser negociada com a Câmara Municipal de Lisboa e a Santa Casa da Misericórdia de Lisboa, estando prevista a sua cedência por 50 anos".