"Indemnizações? Seguimos a lei. Os responsáveis são os que cometeram os abusos"
D. José Ornelas

"Indemnizações? Seguimos a lei. Os responsáveis são os que cometeram os abusos"

D. José Ornelas, bispo de Leiria-Fátima e presidente da Conferência Episcopal Portuguesa é o convidado desta semana da entrevista TSF/JN.

Já era presidente da Conferência Episcopal Portuguesa e é agora bispo da Diocese de Leiria-Fátima. Não se furta aos temas mais incómodos, como os abusos sexuais ou a ordenação de mulheres. Mas também não se compromete nem a si nem à Igreja com ações de rutura. Como ele mesmo diz, sobre as mudanças, "é preciso ter paciência para fazer crescer as coisas".

Este é um tempo estranho para viver o mistério pascal, com a Europa em guerra e os relatos aterradores que nos chegam da Ucrânia. Como é que a Igreja Católica trata a questão da guerra?

A posição de qualquer cristão é antes de mais antiguerra. Não celebramos a Páscoa porque o tempo é bom. Celebramos a Páscoa para fazer o tempo bom. Não se trata simplesmente da ressurreição de Jesus e dos ovos de Páscoa. É o mistério por trás do drama da humanidade, da injustiça, da repressão. Aquilo que celebramos na Páscoa é a possibilidade de abrir caminho a que se possa construir a humanidade em paz.

O Papa Francisco pondera uma visita a Kiev. Até que ponto seria relevante para alcançar a paz?

A aberração desta guerra... Isto é uma barbárie, não pode ser assim, se queremos uma sociedade que funcione. Não é só a Ucrânia que está a ser objeto de uma injustiça e de uma selvajaria hedionda, que não tem explicação. A própria Rússia e o Mundo inteiro estão a sofrer as consequências. Mas, felizmente, também a mobilização pela condenação é significativa....

Mas seria relevante o Papa Francisco visitar Kiev?

Poderia ser. O Papa Francisco tem tido uma atitude de coerência e de coragem. Ele sabe que não tem divisões armadas nem armas para enviar para a Ucrânia. Mas tem algo muito importante, a afirmação da dignidade, da justiça e da paz. É preciso dar sinais claros de condenação de todo o tipo de violência de guerra, mas, ao mesmo tempo, veja, não interessa apenas condenar, interessa sobretudo saber com que atitude vamos sair daqui. O Mundo precisa de todos. Da Ucrânia e da Rússia. Para ser um Mundo em paz, não se pode deixar uma ferida aberta. A paz tem de ser construída. E primeiro é preciso um cessar-fogo.

Esta guerra cavou uma maior divisão entre as Igrejas Católica e Ortodoxa, dificultando o diálogo inter-religioso?

Não ajuda. Mas há sobretudo uma divisão entre as igrejas ortodoxas, de tradição grega e de tradição eslava. E dentro de tradição eslava, nas suas diversas confissões. É um tema que o Papa Francisco tem referido: a manipulação do nacionalismo. Nós tivemo-lo também. Todas as ditaduras gostam de jogar com isso. Os ditadores fazem o povo acreditar que são libertadores, quando são na verdade controladores, manipuladores e opressores do seu povo. A invasão começa dentro da própria nação, com a deturpação da dignidade, da liberdade. Quando não se é livre, não pode haver futuro. Quando não se é livre está-se à mercê de todas as manipulações da realidade e da História. Quando era pequeno estava convencido que nós, os portugueses, éramos os melhores do Mundo, com um desígnio onde se misturava fé e nacionalismo. Gosto muito do meu país, gosto muito da minha ilha da Madeira e sinto-me muito bem na minha pele como português. Mas o Mundo não é só Portugal. Quando nos deixamos levar por um nacionalismo simplesmente publicitário, facilmente manipulável... Também temos coisas dessas, populismo, nacionalismo de Direita, de Esquerda, que nos fecha em lugar de nos abrir ao Mundo e o Mundo a nós. Se nos fechamos na nossa realidade, começamos a ver o outro como inimigo só porque é diferente. A liberdade é o único terreno onde pode construir-se, de facto, uma possibilidade de convivência internacional e multicultural. O Papa tem chamado muito a atenção para isto. E quando, ainda por cima, se lhe põe o manto religioso, então está a confusão bem aparelhada para produzir desastres.

A Comissão Independente para o Estudo dos Abusos Sexuais Contra Crianças na Igreja Católica Portuguesa recebeu 290 testemunhos validados durante os últimos três meses. Mas acrescentou que é apenas a "ponta do icebergue". Ficou assustado com estes números?

Não. O que espero é que se trace um quadro o mais verdadeiro possível da situação. É fundamental para o nosso comportamento, como Igreja, como Conferência Episcopal, centrar a nossa atenção nas vítimas de situações que não podem ser toleradas.

A criação desta comissão independente foi um ato de coragem ou de necessidade?

A coragem é a coragem do tempo. Discernir o que se deve fazer em cada tempo é importante. Foi-se criando também uma mentalidade dentro da Igreja, não foi um passo que surgiu assim como um raio em céu azul.

Houve vozes discordantes na Conferência Episcopal?

Nós temos duas assembleias-gerais da Conferência Episcopal por ano. Há coisas que queremos fazer em comum e, se demoramos algum tempo, é para que o façamos juntos. E esta decisão vem na sequência da última Conferência Episcopal, em novembro [de 2021].

Vieram a público vozes aparentemente discordantes, ou pelo menos bispos que afirmaram que nas suas dioceses não havia relatos de abusos sexuais. O bispo do Porto, por exemplo.

Eu não estou a dizer se há, ou se não há. Quer dizer, eu posso dizer se na minha diocese tive ou não tive algum caso. Também se misturam muitas coisas. Quando se diz que não chegaram às comissões diocesanas denúncias, ou relatos, isso é um dado.

Que informações é que lhe chegam sobre os trabalhos da comissão independente? Está a trabalhar em conjunto com as comissões diocesanas?

A comissão só entrou em funcionamento em janeiro. Estamos em março e já se deram passos. O que queremos é tratar seriamente esta questão. Saber tratar problemas destes quando acontecem. Porque gostaríamos muito de dizer que não voltam a acontecer, mas, na Igreja, como em qualquer outro domínio da sociedade, infelizmente, estas coisas podem acontecer.

Portanto, não encontra resistência, encontra colaboração?

Quanto ao objetivo fundamental, estamos todos de acordo. E também sobre a necessidade de constituir uma comissão independente. Mas é mais do que isso, é encontrar. Há pessoas que sofrem com uma situação destas e têm muita dificuldade em dizer a alguém, não desejam que o seu problema seja conhecido. Mas há pessoas que o querem fazer. E é bom que se saiba, porque não queremos que se repita.

Ainda sobre o balanço recente da comissão, foram enviados para o Ministério Público 16 casos suscetíveis de investigação criminal. Antecipa que a Igreja venha a pagar indemnizações financeiras às vítimas, como aconteceu, por exemplo, em França?

A questão das indemnizações, até agora, não foi colocada. Nós seguimos a lei portuguesa. Este é um crime público e rege-se segundo as normas do Direito português. Os responsáveis são as pessoas que cometeram os abusos. A Igreja o que quer é colaborar na solução dos problemas, não é uma questão de indemnização. O que me interessa é a recuperação das pessoas, é dar dignidade às pessoas. O que a Igreja tem de dar é apoio. O apoio que seja desejado pelas próprias pessoas.

Conhece pessoalmente alguma vítima deste tipo de abusos, ou alguma vez foi confrontado diretamente com uma queixa deste género?

Mais do que uma vez. Não só agora, mas no passado. A minha congregação [dehonianos] está em todo o Mundo. Sei muito bem o drama que representa. É isso que me motiva a dizer que este é um problema que não pode ser deixado sem resposta. A Igreja enquanto instituição tem de estar na frente.

Esse seu conhecimento pessoal levou-o a ter um papel mais ativo na comissão?

Todos estamos empenhados. Isto não pode acontecer, é contrário àquilo que somos como Igreja, absolutamente contrário à nossa missão. E destrói. Não só destrói a pessoa que é objeto de abuso, destrói a própria instituição. É um atentado.

Quando teve conhecimento desses casos, como agiu?

Olhe, agimos conforme. É importante saber que não é só um problema da Igreja. E perceber quando é que passou a ser visto como um crime em relação à vítima. Questões destas eram vistas como atentado aos bons costumes. Eram vistas do ponto de vista moral. Uma pessoa cometeu uma asneira e, pronto, íamos ver como é que se trata. A vítima ficava completamente de fora.

Sente que os sacerdotes nas paróquias, nos colégios católicos, nos seminários, já estão atentos a esta questão dos abusos?

O que se diz, e é uma das conclusões da comissão independente, é que o número de casos tem vindo a diminuir significativamente. Os casos recentes são pouquíssimos. Que depois possa haver mais...

Mas entende que isso tem a ver com uma maior sensibilidade por parte das instituições da Igreja, das paróquias, nos colégios católicos?

Das instituições, da formação das pessoas. De vigilância também. Esta questão era tratada de outra forma pela sociedade. Hoje temos consciência da barbárie que é para uma pessoa, particularmente em idades mais jovens, ser submetida a um drama destes. Foi isso que fez mudar a estratégia, a maneira de pensar e de legislar. E isso é bom. Mas é um trabalho que é preciso continuar. Capacitar toda a gente, sem entramos em frenesins que acabam por resultar em injustiças de outros géneros. Temos de criar um ambiente seguro para as nossas crianças e jovens. Isto é o que todos queremos. Sobre isso não há a mínima dúvida. Agradeço muito o trabalho que a comissão está a fazer. Não é simplesmente uma questão de contabilidade de casos. Também é importante criar uma mentalidade e dar informação, mesmo que às vezes esta possa ser um bocado distorcida.

"Acho que há um caminho para chegar [ao sacerdócio das mulheres]"

Vai reunir-se em Roma um sínodo que é por muitos considerado decisivo, nomeadamente para as reformas de que a Igreja Católica necessita. Que reforma está o Papa Francisco a operar na Igreja Católica?

O Papa Francisco fala muito do Concílio Vaticano II. Até esse momento, quando se tratava da Igreja, começava por se falar do Papa, dos bispos, dos padres, dos religiosos e, no fim, estava o povo. Com o Vaticano II, o conceito de povo passou a ter maior importância. Isto faz uma diferença enorme.

Já passaram mais de 50 anos desde o Concílio Vaticano II.

Mas não está tudo por fazer. A Igreja é uma realidade humana, é uma realidade de Deus, mas como uma semente que é lançada em terra humana, em corações humanos, em sociedades humanas. É preciso ter a paciência de fazer crescer as coisas. A partir do Concílio Vaticano II fomos para a frente. Fomos maturando. Este sínodo é precisamente sobre a sinodalidade, que significa caminhar juntos. E caminhar juntos, cada um segundo a condição que tem. Isto é o tecido vivo da igreja.

Em Portugal, a Igreja também está a avançar nesse sentido? Estão a ser ouvidas pessoas nos mais variados quadrantes da sociedade sobre o futuro da igreja, como pediu o Papa?

Das experiências que tenho da diocese onde estava [Setúbal], estivemos a formar as pessoas para isso. Aqui [em Leiria-Fátima], a mesma coisa. Nestes encontros, o que temos percebido é a satisfação das pessoas de haver uma oportunidade em que não estão simplesmente paradas a ouvir o padre. É-lhes pedido que se exprimam e que façam caminho, que sugiram, que se organizem juntos em Igreja. Isto pode mudar a Igreja.

O Papa tem trabalhado muito pela inclusão das mulheres. Em Portugal também é assim?

É isso que se tem estado a tentar fazer.

Quais são os passos concretos que têm sido dados?

Mudar a todos os níveis da Igreja. Mas esta questão existe desde o início. Veja o que aconteceu aos homens, os discípulos de Jesus, aqueles a quem foi confiada diretamente a direção da Igreja. Quando chegou a altura decisiva da morte de Jesus, deram todos à sola. Quem ficou foram mulheres. Que foram também as primeiras testemunhas da ressurreição.

Mas quais têm sido dados concretamente em Portugal?

Tirando o sacerdócio - essa é outra discussão -, as mulheres estão presentes em todos os serviços da Igreja. Temos de encontrar espaços para pessoas que estejam preparadas, sejam homens ou mulheres. Alguns serviços até já são feitos maioritariamente por mulheres: os leitores, os ministros da eucaristia que fazem a ligação com os doentes, a catequese....

A Igreja também caminhará em direção ao sacerdócio de mulheres?

Não vai ser o primeiro passo. Mas não é um assunto que vá ficar de fora do horizonte. Essa é também uma questão cultural. A vida da Igreja não se faz apenas no ambiente europeu onde estamos. Um passo desses só poderá ser dado numa comunhão eclesial que tem de ser bem ponderada. Mas acho que há um caminho para lá chegar. Veja, por exemplo, quanto a responsabilidades a nível geral na Igreja: o Papa escolheu para número dois do Sínodo uma senhora. É um caminho que tem de se fazer também ao nível das nossas dioceses e ao nível do ensino da teologia.

A pandemia espoletou em Portugal uma nova crise social, que esta guerra agravou. Que resposta é que a Igreja está a dar aos mais desfavorecidos?

Quando a pandemia começou, uma das coisas que disse na minha diocese é que não íamos fechar a Igreja. A Igreja não fecha. Nem tem medo. Adotou medidas para defender a vida, para evitar contágios, mas ficou aberta, para que as pessoas pudessem encontrar-se. Encontrar a paz e refazer os fundamentos da sua própria existência. Para um crente isso é fundamental. Acho que é importante para qualquer pessoa. Mas as portas também estavam abertas para recolher bens para as pessoas que estavam em maior dificuldade. Com a crise agravada pela guerra vai ser necessário um esforço suplementar. Não podemos determinar o tempo, mas podemos determinar a forma como reagimos e como influímos no tempo de uma forma positiva, para que ninguém fique para trás.

Ou seja, mesmo na dificuldade não faltará solidariedade.

Quando há dificuldade, a solidariedade tem de crescer, ser mais ativa e mais bem organizada. Uma das coisas que a pandemia pôs em relevo foi uma maior capacidade de cooperação entre as instituições públicas: Segurança Social, autarquias e instituições, incluindo as da Igreja. O panorama cristão, desde a multiplicação dos pães de Jesus é este: os discípulos estão preocupados porque há uma multidão que não tem que comer e dizem que não têm meios para acudir a todos. Jesus diz: "não me perguntes, não façam a pergunta assim. Façam a pergunta: o que é que vocês têm? Vão ver o que é que vocês têm. Digam com o que é que podem contribuir". E nesta altura não é só uma questão de bens alimentares e pagar rendas de casa. Há muito mais. Há gente que precisa de atenção. Se é verdade que cresceu a necessidade, é verdade também que cresceu a resposta.

Uma pergunta para um sim ou não, e um nome, ou não. Uma das suas tarefas, enquanto bispo de Leiria-Fátima, é propor à Conferência Episcopal o nome do reitor do Santuário. Vai haver renovação ou pretende reconduzir Carlos Cabecinhas?

Essa questão não está em cima da mesa. Cheguei aqui [à Diocese de Leiria-Fátima] há três semanas. Não lhe respondo nem sim, nem não. E não posso responder porque, em primeiro lugar, fala-se com as pessoas.

Muito obrigado por esta entrevista e boa Páscoa.

Para todos os ouvintes da TSF e leitores do JN também desejo uma boa Páscoa. Que seja uma Páscoa que nos traga um ambiente de paz, de concórdia. Porque os tempos que vivemos são, de facto, de nuvens densas. Mas a Páscoa vem anunciar que depois de cada nuvem negra vem o sol. É para isso que trabalhamos. Para afastar as nuvens, depende de nós.

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