Em entrevista à TSF, a socióloga Isabel Ventura faz duras críticas ao acórdão do Tribunal da Relação do Porto que justificou a atenuação de pena de violência doméstica com passagens da Bíblia.
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"Parece-me evidente que neste caso, o Tribunal desrespeitou a Convenção de Istambul, que Portugal assinou, ratificou e implementou", começa por afirmar à TSF Isabel Ventura, autora de uma tese de doutoramento onde analisou os discursos judiciais em casos de violência sexual.
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Em causa está um acórdão do Tribunal da Relação do Porto, com data de 11 de outubro, redigido pelo juiz desembargador Neto de Moura, e assinado também por Maria Luísa Arantes, a que o Jornal de Notícias teve acesso (pode consultar aqui o documento na íntegra), e que confirma a condenação de dois homens, o marido e o amante, a penas suspensas por violência doméstica. O acórdão justifica a atenuação da pena recordando que o adultério da mulher é uma conduta que a sociedade sempre condenou e que poder haver alguma compreensão "perante a violência exercida pelo homem traído, vexado e humilhado pela mulher".
O acórdão cita a Bíblia e o Código Penal de 1886, que punia o homem com uma pena pouco mais que simbólica caso matasse a mulher em caso de adultério. No documento lê-se ainda "há sociedades em que a mulher adúltera é alvo de lapidação até à morte" e que o adultério da mulher é "um gravíssimo atentado à honra e dignidade do homem".
Para a socióloga Isabel Ventura "os factos que reportam a este acórdão são extremamente violentos e o que a Relação do Porto faz é naturalizar e desculpabilizar as ações extremamente violentas de duas pessoas, em particular de uma, mas são dois agressores, que cometeram um conjunto de atos quer de perseguição, de sequestro e de agressões físicas extremamente violentas".
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"O que o Tribunal da Relação do Porto acaba por fazer, com o seu discurso, é desculpabilizar, legitimar e naturalizar a violência masculina nos casos em que as mulheres não cumprem esses papéis", critica Isabel Ventura.
"A nossa sociedade é extremamente heterogénea. No entanto, penso que podemos dizer que ninguém ou quase ninguém aceitaria que um homem pudesse assassinar a sua esposa porque ela teve um caso extraconjugal. Parece-me extremamente grave e muito preocupante que uma instituição de Justiça reproduza ideias tão anacrónicas em 2017", acrescenta.
O que é a Convenção de Istambul?
A Convenção do Conselho da Europa para a Prevenção e o Combate à Violência contra as Mulheres e a Violência Doméstica, de 2011, foi o primeiro instrumento jurídico internacional com força de lei que cobre todas as formas de violência contra as mulheres. Abrange também os homens que são vítimas de violência doméstica e prevê agravantes para crimes com armas e para delitos cometidos na presença de menores.
Portugal foi o primeiro membro da União Europeia a ratificar este documento conhecido como a Convenção de Istambul, cuja assinatura está aberta a todos os países do mundo.