Sociedade

"Ministra disse que o facto de a grávida que morreu ser guineense, não ter telemóvel e ser pobre culpa-a da sua própria morte"

A ministra da Saúde, Ana Paula Martins, durante a sua audição na Comissão de Orçamento, Finanças e Administração Pública, na Assembleia da República, em Lisboa, 31 de outubro de 2025. ANTÓNIO COTRIM/LUSA LUSA

No programa da TSF/CNN Portugal "O Princípio da Incerteza", as palavras da ministra da Saúde, Ana Paula Martins, sobre a morte de Umo Cani foram classificadas como sendo "inaceitáveis"

As declarações da ministra da Saúde no Parlamento, sobre a morte de uma grávida no hospital Amadora-Sintra, são "inaceitáveis" e integram um "conjunto de episódios gravíssimos" do Governo. No programa da TSF/CNN Portugal "O Princípio da Incerteza", as palavras de Ana Paula Martins foram interpretadas como uma forma de culpabilizar a mulher pela sua própria morte.

Na sexta-feira, quando confrontada com a morte da grávida, a governante afirmou que casos como este dizem "maioritariamente" respeito a grávidas que "nunca foram seguidas durante a gravidez, que não têm médico de família" e que são "recém-chegadas a Portugal, com gravidezes adiantadas". "São grávidas que não têm dinheiro para ir ao privado, grávidas que algumas vezes nem falam português e que não foram preparadas para chamar o socorro. Por vezes, nem telemóvel têm", acrescentou.

A socialista Alexandra Leitão garante que jamais pediria a demissão da ministra da Saúde devido à morte de uma grávida", mas considera que estas são "declarações inaceitáveis".

"Não me ouvirão pedir a demissão da ministra da Saúde por causa da morte de uma grávida - isso não me ouvirão -, mas dizer coisas como 'não estava cá, nem telemóvel tinha, não tinha dinheiro para ir ao privado, nem falava português', o que é que isso tem que ver com a morte de uma pessoa no SNS? O que é que a cor, a etnia, se tinha telemóvel ou não, se tinha dinheiro ou não para ir ao privado o que é que isto tem que ver com uma morte no SNS? Até se veio a saber que a pessoa até estava cá e até já lá tinha ido duas vezes antes e mandaram-na para casa", assinala.

Defende, por isso, que esta atitude faz parte de um "conjunto de episódios gravíssimos" por parte do Governo da AD: Alexandra Leitão aponta que o Executivo, liderado pelo PSD, "que ajudou a criar a democracia em Portugal", devia ser "moderado", mas questões como esta ajudam a explicar o interesse em aprovar a lei da nacionalidade ao lado do Chega.

"Quando entramos na lei da nacionalidade, percebemos algumas coisas e por que é que foi aprovada com o Chega. Por que é que quiseram ativamente aprová-la com o Chega e não com o Partido Socialista", denuncia.

Indo mais longe, José Pacheco Pereira afirma que Ana Paula Martins acabou por culpabilizar a grávida pela sua própria morte.

"Falando em humanismo, o que é que disse a ministra da Saúde? Disse que o facto de a senhora que morreu ser guineense, não ter telemóvel e ser pobre culpa-a da sua própria morte. É muito simples", atira.

O comentador entende que a falta de dinheiro, a incapacidade de falar português, a falta de telemóvel e o facto de ser imigrante foram apresentados pela ministra da Saúde como fatores que "facilitaram" o óbito, ainda que tais afirmações não correspondam à verdade da situação.

O caso de Umo Cani está a ser investigado internamente pelo hospital Amadora-Sintra, pelo Ministério Público, pela Inspeção-Geral das Atividades em Saúde e pela Entidade Reguladora da Saúde.

Também este domingo, a administração do Hospital de Amadora-Sintra reconheceu que a grávida de 36 anos que morreu na sexta-feira depois de ter tido alta dias antes estava a ser acompanhada nos cuidados de saúde primários desde julho.

Em comunicado, o conselho de administração da Unidade Local de Saúde Amadora-Sintra (ULSASI) revelou que, "devido à inexistência de um sistema de informação clínica plenamente integrado, que permita a partilha automática de dados e registos médicos entre os diferentes serviços e unidades [...], só hoje [domingo] ao final da tarde foi possível verificar que a utente se encontrava em acompanhamento nos cuidados de saúde primários da ULSASI desde julho de 2025, na Unidade de Cuidados de Saúde Personalizados (UCSP) de Agualva".

Segundo o comunicado da administração hospitalar, a mulher fez duas consultas de vigilância de gravidez, em 14 de julho e 14 de agosto, tendo realizado consultas de obstetrícia no Hospital Fernando Fonseca, na Amadora, nos dias 17 de setembro e 29 de outubro, esta última dois dias antes de morrer.

A administração daquela ULS realçou que esta informação do acompanhamento desde julho foi transmitida no domingo à ministra da Saúde, Ana Paula Martins, e que as declarações feitas pela governante, na Assembleia da República, onde disse que a mulher não tinha tido acompanhamento prévio, tiveram "por base informação e o comunicado emitido pela ULSASI, que se referia ao episódio em concreto que antecedeu o desfecho fatal, que teve lugar no dia 31 de outubro, no Hospital Fernando Fonseca".

Na sexta-feira, dia em que a grávida de 38 semanas morreu, o diretor do serviço de urgência obstétrica e ginecológica do Hospital Amadora-Sintra, Diogo Bruno, explicou que a mulher estava em paragem cardiorrespiratória quando deu entrada no hospital, tendo sido imediatamente socorrida com todos os procedimentos previstos.

Na altura, a ULSASI referiu que a grávida foi na quarta-feira ao hospital Amadora-Sintra "assintomática" para uma consulta de rotina, durante a qual foi identificada com hipertensão ligeira.

A mulher, segundo o especialista, "foi apenas por extra cuidado enviada à urgência", onde foi despistada pré-eclâmpsia, uma das complicações da gravidez, e teve alta com indicação para internamento às 39 semanas de gestação.

Segundo o diretor, a grávida, natural da Guiné-Bissau, tinha chegado recentemente a Portugal e foi referenciada para a consulta de especialidade de obstetrícia com uma gravidez de termo precoce.

No sábado de manhã, também a bebé que nasceu da cesariana de emergência morreu, um dia depois da morte da mãe.

Cláudia Alves Mendes