Uma cela na prisão ou uma cama no hospital: o que vale mais, eleitoralmente, no Brasil?
Mesmo preso, Lula da Silva escolheu Fernando Haddad como sucessor e geriu a campanha do PT. Da cama do hospital, Jair Bolsonaro subiu nas sondagens e mandou calar assessores. Podia ser um guião de um filme, mas é a realidade das eleições no Brasil.
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Alguém disse que a melhor morada de um ídolo é o cemitério. Os ídolos mortos, de preferência jovens como James Dean ou Marilyn Monroe, adquirem o seu estatuto na plenitude. As eleições presidenciais de 2018 no Brasil mostram que não é preciso tanto: basta uma cela de prisão ou uma cama de hospital.
Lula da Silva e Jair Bolsonaro, o que de mais parecido com "ídolos" a política brasileira tem hoje em dia, comandaram dos seus exílios forçados a campanha que deve concluir-se com o apuramento do capitão do exército, em pessoa, e de Fernando Haddad, espécie de alter ego do antigo presidente, para a segunda volta.
O que vale mais eleitoralmente, afinal: uma cela de prisão ou uma cama de hospital? Uma sentença supostamente injusta ou uma facada cobarde?
Bolsonaro, do PSL, foi esfaqueado no abdómen no dia 6 de setembro, num evento de campanha em Juiz de Fora, Estado de Minas Gerais. O autor do ataque, Adélio Bispo, era um opositor furioso que, de acordo com a polícia, agiu por conta própria. Numa sondagem divulgada na véspera, o instituto Ibope atribuía-lhe 22% nas intenções de voto. Um mês depois do ataque, Bolsonaro soma 32%, mais 10 pontos percentuais - uns 15 milhões de votos, aproximadamente.
O seu estado-maior, constituído pelo presidente do partido, Gustavo Bebianno, e pelos três filhos políticos, Flávio, Carlos e Eduardo, começou até por congratular-se - do ponto de vista puramente eleitoral, claro - pela facada. "Acabamos de ganhar a eleição", disse Eduardo nas horas seguintes ao ataque, antecipando a comoção que ele provocaria.
O agravamento do estado de saúde do deputado - submetido a duas cirurgias de urgência por infeções - acabou por assustar a família e impediu que participasse em três debates televisivos - na TV Aparecida, no SBT e na Record - e no corpo a corpo pelas ruas do Brasil, o seu ponto forte.
O temor acabou por se revelar excessivo. Fora dos debates, sem sair da cama e sem se submeter ao contraditório, o candidato pôde gravar mensagens de vídeo. Ao ponto de, no que era considerado um debate decisivo - o da TV Globo, na quinta-feira à noite - não ter comparecido mais por iniciativa própria do que por conselho médico.
"Vou-te desmascarar Bolsonaro, atestado médico falso é crime, hein?", ameaçou Ciro Gomes, do PDT, irritado por saber que um dos alvos dos seus ataques não poderia defender-se in loco, diminuindo, por isso, a eficácia desses mesmos ataques.
A cama de hospital de onde Bolsonaro foi gerindo a sua campanha não trouxe, porém, só boas notícias ao candidato. Em vez dos 10 pontos de crescimento nas sondagens, poderia ter subido mais, se tivesse mantido sob controlo as declarações dos seus dois principais colaboradores. Tanto o candidato a vice-presidente, o general Mourão, como o guru económico, Paulo Guedes, deram vários tiros no pé - à média de um por semana.
Guedes, a quem Bolsonaro dirige todas as questões de ordem económica, ameaçou ressuscitar um velho imposto sobre operações bancárias que deixou a opinião pública, dos patrões aos empregados, de cabelos em pé. E Mourão estimulou a animosidade do eleitorado feminino (53% do total) contra o presidenciável, ao associar "filhos criados por mães e avós" a "desajustados na sociedade e matéria-prima para o crime". Mais tarde, ainda prometeu extinguir o 13º mês. De bata de hospital vestida, Bolsonaro mandou calar ambos. Guedes e Mourão falharam mesmo compromissos de agenda após o puxão de orelhas público.
Além do Hospital Israelita Albert Einstein, em São Paulo, onde o líder das sondagens passou a maior parte da campanha, também a Superintendência da Polícia Federal, em Curitiba, entra necessariamente no roteiro das eleições de 2018. É lá que Lula, a cumprir pena de 12 anos e um mês de prisão, recebe os mais diretos colaboradores, entre os quais Fernando Haddad, do PT, que, convenientemente, se constituiu advogado do antigo presidente para o poder visitar com mais assiduidade.
Na cela de 15 metros quadrados, com duas janelas, casa de banho adjacente, cama de solteiro, mesa, TV, esteira de corrida e uma espécie de altar com terços, imagens de santos e de orixás e um escapulário, Lula montou a estratégia eleitoral do seu partido com régua e esquadro.
Alimentou até ao limite o discurso de que seria candidato - por mais que a tese fosse juridicamente indefensável - para facilitar a transferência da sua enorme reserva de votos (mesmo preso, valia perto de 40% na última sondagem em que foi incluído) para Haddad, uma figura conhecida na região Sudeste, na qualidade de ex-prefeito de São Paulo, mas quase anónimo no populoso Nordeste, principal fortaleza eleitoral do PT, onde, segundo rezam as crónicas, até é chamado de "Andrade".
O plano urdido na cela deu resultado: de 6% naquela sondagem na véspera do ataque a Bolsonaro, o sucessor de Lula passou para 23% um mês depois, e deu apenas um passo em falso - materializado numa oscilação negativa dentro da margem de erro no fim de setembro.
Porém, como no caso do rival de extrema-direita, também o principal ídolo da esquerda brasileira sofreu na pele as limitações de estar confinado. Não pôde participar na campanha eleitoral, a não ser por imagens de arquivo, nem conceder uma entrevista ao jornal Folha de São Paulo. Por ordem judicial, não vai poder, sequer, votar. E só através da televisão da sua cela, viu Haddad tornar.se o alvo preferido dos ataques da concorrência nos debates, porque a sua entrada em cena coincidiu com a saída de Bolsonaro.
Na cama de hospital, Bolsonaro cresceu. Na cela da prisão, Lula, e por extensão Haddad, também. Ciro Gomes (PDT), Geraldo Alckmin (PSDB) e Marina Silva (Rede), pelo contrário, de boa saúde, livres e soltos para fazer campanha foram minguando ao ponto de se tornarem atores secundários. Os ídolos não se servem apenas mortos. Como prova a eleição brasileira de 2018, servem-se também doentes ou presos.