A "noite extraordinária" de 11 de novembro de 1975: o desaguar das "lutas e aspirações de gerações de angolanos"

António Costa Silva
Ricardo Alexandre/TSF
'Angola aos Despedaços: 50 anos Depois, Que futuro?' O livro vai ser apresentado às 18h30 na Gulbenkian, em Lisboa. O autor é António Costa Silva, angolano, engenheiro e académico, que foi ministro da Economia em Portugal
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Ama a vida a cada dia porque sabe, como diz a canção, o que custou a liberdade. Angolano que foi preso e torturnado, quase fuzilado, já com o país independente, nasceu em Catabola, foi estudante da Universidade de Luanda, militou nos Comités Amílcar Cabral (CAC) e na Organização Comunista de Angola. Foi preso pelo MPLA em dezembro de 1977, sobreviveu à tortura e a um pelotão de fuzilamento já depois de ouvir as armas a serem destravadas. Foi libertado após duas greves de fome. Iniciou depois uma carreira na área dos petróleos. As sequelas da tortura, em particular a deterioração da visão, levaram-no a procurar tratamento em Portugal e Espanha.
Foi aqui em Portugal, no Instituto Superior Técnico, que se licenciou em Engenharia de Minas, concluiu o mestrado em Engenharia de Petróleos no Imperial College, em Londres, doutoramento pelas duas faculdades - Imperial College e Técnico. Na vida profissional, passou pela Companhia Portuguesa de Serviços, pela multinacional francesa CGG, pelo Instituto Francês de Petróleo. A partir de 2004, pela Partex, a empresa da Fundação Calouste Gulbenkian, na área dos petróleos. Foi ministro da Economia do Mar no 23.º Governo Constitucional, liderado por António Costa. É professor aposentado do Instituto Superior Técnico. Esta é a primeira parte da entrevista na TSF sobre Angola.
António Costa Silva, a dedicatória que faz no início do seu livro dá pano para mangas, quando o dedica "ao povo angolano, que foi duramente oprimido pelo regime colonial português, e que não viu a sua vida melhorar nestes 50 anos de independência. Um futuro pode e deve ser diferente, mas há que encontrar o caminho". Por que é que a vida dos angolanos não melhorou nestes 50 anos de independência?
Porque ao fim de 50 anos e, atenção, a sofrida das pessoas esteve no Largo Primeiro de Maio, em Luanda, na noite histórica de 11 de novembro de 1975, quando o Presidente Agostinho Neto proclamou a independência de Angola perante África e perante o mundo. E, nessa noite, de certa maneira, aquele Largo era o Largo dos sonhos. E sonhámos um país independente, capaz de desenvolver a economia, de proporcionar uma vida digna e próspera a todos os angolanos. E o que encontramos hoje é muitas interrogações relativamente a isso. Angola tem cerca de 11,6 milhões de pessoas que vivem em pobreza absoluta. O índice de pobreza dimensional é de cerca de 60%, o que significa que 20 milhões dos 36 milhões de angolanos vivem em condições muito difíceis e lutam pela sua sobrevivência. E depois tem múltiplos outros fatores. Temos uma taxa de informalidade na economia que é elevadíssima, é de cerca de 80%. Portanto, dos 36 milhões de angolanos, só 2,5 milhões é que têm empregos formais e acesso a crédito, ou seja, têm contas bancárias. Portanto, é um caso difícil que tem que ser resolvido no futuro.
Voltemos a essa noite de 11 de novembro, quando foi proclamada no Largo Primeiro de Maio, em Luanda, a Independência. O senhor estava lá. Além do sonho, daquilo que estavam a sonhar, como é que foi essa noite? Como é que a viveu?
Essa noite foi uma noite extraordinária porque sentíamos que desaguavam ali, naquele Largo Primeiro de Maio, as lutas e as aspirações das gerações e gerações de angolanos que tinham lutado pela independência do país, porque não podemos ter ilusão nenhuma: o regime colonial português era um regime de opressão sobre o povo angolano e o povo angolano, em múltiplos aspectos, era muito maltratado. Não há colonialismos suaves, nem colonialismos benignos. O regime colonial era realmente um regime de opressão. E nessa noite ele terminou. A noite foi uma noite fiérica, porque, entre outras coisas, havia um homem da Rádio Nacional de Angola, provavelmente com pouca cultura política, e os cartazes que estavam a decorar a praça nessa noite eram do Marx, Engels e do Lenine. E o Lenine é muito parecido com um poeta angolano, que é o António Jacinto, que é também careca, e tem parecências. E o repórter, quando estava a fazer o relato dessa noite, disse que a praça estava decorada com três cartazes extraordinários de 'António Jacinto e dois barbudos que eu não conheço!'. Portanto, isso foi logo um primeiro bruá na praça. Mas depois a noite foi avançando, o Presidente proclamou a independência e é impressionante, quando ele estava a falar, sentia-se na praça o ruído das deflagrações dos morteiros em Kifangono, muito perto de Luanda, porque as forças da FNLA estavam a tentar capturar Luanda para declararem eles a independência.
Ou seja, já estávamos no preâmbulo, se quisermos, da Guerra Civil?
Absolutamente e isso foi trágico. Algum tempo antes isso poderia ter sido evitado, mas infelizmente o MPLA também estava dividido, porque havia a fação do Presidente Neto, mas a revolta tinha quadros muito bem preparados - o Gentil Viana, o Mário Pinto de Andrade e outros - e depois tinha a fação do Daniel Chipenda. E a divisão do MPLA crescia, mas também a divisão que existia entre o MPLA, a UNITA e a FNLA. Os três movimentos nunca se entenderam, e, de facto, nessa noite, era quase o horóscopo do desastre. Portanto, era o anúncio da Guerra Civil que ia vir e que ia dominar 26 dos 50 anos de independência. E as guerras são autofágicas, destruem os países.
Havia gente para fazer pontos entre os três movimentos, na altura?
Eu acho que havia gente para fazer pontos, mas havia pouca vontade, provavelmente das lideranças políticas dos vários movimentos, para fazerem essas pontes. É curioso que nós éramos muitos jovens, muito ativistas nos Comités Amílcar Cabral e, quando o Presidente Agostinho Neto chegou a Luanda, no dia 4 de fevereiro de 1975, de certa maneira a comemorar a luta armada que tinha começado em 4 de fevereiro de 1961, depois reuniu-se com os vários comités...
E vocês entregaram-lhe um documento?
Sim, sim, uma proposta que fizemos para ele organizar uma conferência estratégica para pacificar o MPLA; portanto, falar com as outras duas fações e haver unidade interna e depois também para ter uma plataforma de consulta com os outros dois partidos políticos, exatamente para evitar que a guerra civil se desenvolvesse.
E ele não ligou?
Ele ouvia com atenção, e algumas das nossas propostas ele seguiu, mas essas não seguiu, infelizmente. E o país foi muito moldado por toda esta guerra autofágica que foi muito destrutiva para as pessoas, ceifou quase um milhão de vidas dos angolanos, destruiu as infraestruturas, causou uma espécie de deslocados internos no país de quatro milhões e meio de pessoas, que andavam a fugir da guerra de umas províncias para as outras, e acumularam-se nas grandes cidades, particularmente Luanda, o que causa problemas ainda maiores.
Claro que estamos a falar de um tempo em que ainda há a Guerra Fria e as superpotências - na altura a União Soviética e Estados Unidos, mas não só, que têm uma influência muito determinante no evoluir da Guerra Civil em Angola...
Absolutamente. Absolutamente e, naquela altura, nos vários países africanos e nós nos CAC tínhamos estudado isso. Os regimes eram regimes que depois da independência se transformaram em regimes neocoloniais e, portanto, dependentes de uma ou de outra das superpotências. Nós acreditávamos que o Presidente Agostinho Neto, que tinha um espírito independentista, iria saber posicionar-se e não se entregar a nenhuma dessas duas grandes potências. E a prova disso é que, logo a seguir à independência, com o seu ministro do Plano, Carlos Rocha 'Dilolwa', que era, para mim, um dos maiores economistas angolano, do grupo político do MPLA, lançaram a Comissão de Reestruturação do Centro Petrolífero e, repare, no auge da Guerra Fria, quando os americanos tinham retirado de Angola - porque a produção de petróleo, basicamente, era a Cabinda Gulf (empresa norte-americana, que hoje é a Chevron) e a Petrofina - pararam a produção, retiraram-se. E poucos meses depois da independência, essa Comissão de Reestruturação incitou diálogos americanos na Nigéria, depois em Luanda e, em 1976, a produção foi retomada, primeiro da Cabinda Gulf, depois da Petrofina. Isso prova que houve pontes que Agostinho Neto conseguiu estabelecer com outra grande superpotência, os Estados Unidos da América (EUA), ao mesmo tempo que estava a negociar a ajuda da União Soviética (URSS) e de Cuba, porque o conflito com a FNLA e a UNITA, nessa altura, já era, praticamente, incontornável.
E, depois, também com a África do Sul...
A África do Sul a apoiar a UNITA e as forças do Zaire com mercenários a apoiarem a FNLA; e, portanto, o país entrou, de facto, num ciclo de violência destrutiva completa.
Cuba a apoiar, no terreno, o MPLA...
Sem dúvida. As Forças Expedicionárias Cubanas lutaram ao lado das FAPLA (ligadas ao MPLA). Aliás, foram elas, com as FAPLA, que conseguiram conter o avanço da África do Sul, em batalhas muito importantes que se travaram a sul do Luanda e que impediram que o Exército sul-africano, coligado com a UNITA, chegasse à capital. E, do outro lado, estava a FNLA com a ajuda das forças do Zaire do Mobutu e de mercenários americanos que também estavam envolvidos. É um período muito difícil, mas que moldou tudo aquilo que veio depois. Os reflexos na economia são dramáticos, porque entre 1975 e 1990, em função da guerra, em função da escolha errada que a liderança política angolana fez relativamente à política económica de estatização completa da economia, tivemos uma queda do PIB impressionante de quase 57% nesses quinze anos. E, portanto, a economia angolana colapsou, o que dificultou ainda mais a vida do próprio povo angolano.
O senhor foi preso em dezembro de 1977 pela polícia política do MPLA, porque o grupo a que pertencia era uma espécie de grupo dissidente do MPLA?
O MPLA era uma frente patriótica e, portanto, tinha grupos, comités. Nós, no CAC, éramos maoístas. Na altura, éramos jovens ativistas e, comparando aquilo que se passava na URSS, aquela gerontocracia do Kremlin, dirigentes muito idosos que se acumulavam nas muralhas do Kremlin na altura das paradas militares, depois comparávamos com o que se passava na China do Mao Tse Tung, onde o próprio Mao, a certa altura, apelou à crítica direta ao Governo, quando ele disse 'fogo sobre o quartel-general', ao partido e, evidentemente, para jovens que querem mudar o mundo, isso era muito mais significativo.
Chegaram a ter um enviado a Pequim que trouxe um relatório bastante crítico em relação ao sistema, certo?
Isso é extraordinário da história dos Comités Amílcar Cabral e, depois, da Organização Comunista de Angola (OCA), porque o MPLA, a certa altura, em 1974/75, organizou uma visita à China e convidou para a integrar representantes dos vários comités do MPLA e nós designamos o Abel Pereira, que era um jovem, que estava a frequentar o fim do ensino secundário, nessa altura, em Luanda. Ele vai na delegação e, quando vem, tem um relatório que é altamente crítico e penso que é uma das páginas mais extraordinárias da história dos CAC! Como é que um jovem chega à China, no meio daquela delegação, e consegue desconstruir aquilo que se passava dentro do regime chinês e, portanto, a criticar o autoritarismo, a vigilância absoluta, quase o poder sufocante do regime e, enfim, a propaganda das várias visitas que fizeram? E, então, os CAC são, provavelmente, um dos primeiros movimentos maoístas do mundo que fazem a crítica do maoísmo. Mas, a seguir, o que é que fomos escolher? A Albânia do Enver Hoxha, que era, talvez, o país mais atrasado, portanto, a nossa lucidez política também tinha dias.
Ao mesmo tempo, também, já sabiam o que estava a acontecer na União Soviética, tinham conhecimento do que tinha acontecido já na Hungria, na Checoslováquia, nos milhões de pessoas mortas por Estaline ou enviadas para o Gulag. Mas, em 1977, quando é preso, porque é que é preso?
Eu sou preso porque, a certa altura, os CAC e, depois, a OCA foram consideradas, pela liderança do MPLA, como inimigos, digamos assim, da Revolução. Nós tínhamos lutado lado a lado, tínhamos participado. Aliás, uma das coisas mais extraordinárias numa querela política que existia, entre aqueles que defendiam a democracia nacional e a democracia popular. Nós tínhamos, claramente, alinhado pela defesa da democracia popular, o que significa que todos os organismos, as assembleias que se criam, devem ser controladas pelos representantes do povo e não pelos representantes do partido. É um pouco o que existiu na Revolução do Outubro de 1917, na Rússia, com a revolta, em 1921, dos marinheiros de Kronstadt, quando eles se rebelaram exatamente contra o facto de o partido tutelar tudo e designar os seus representantes e de tratarem de uma forma muito autoritária, quer os camponeses, quer os representantes das assembleias. E nós defendemos isso e o Presidente Agostinho Neto apoiou a democracia popular e isso criou dentro do movimento também algumas convulsões e discussões e o processo foi se desenvolvendo. Nós não tivemos nada a ver com a revolta de Nito Alves e do golpe de Estado, que foi feito em 1977, mas o que acontece é que o Presidente Agostinho Neto, em 1977, quando houve o golpe de Estado, deixou todo o poder à polícia política e, portanto, tem uma frase muito célebre, nesse dia à noite, faz uma comunicação ao país em que disse, 'houve uma revolta, os fracionistas serão julgados e serão condenados' e aproveitaram para, a partir dessa altura, fazerem uma purga completa no país e ainda hoje o país se sente dessas feridas. Foram mortas mais 30 mil pessoas na sequência dessa tentativa de golpe de Estado, foi uma repressão absolutamente brutal e eu já estava na clandestinidade nessa altura, mas em dezembro fui localizado pela polícia política e fui preso.
Foi preso, torturado, chegaram a dizer-lhe que ia ser fuzilado, que ia ser levado para um, pelotão de fuzilamento. Porque é que depois não foi fuzilado?
Eles consideravam-me um dos cabeçilhas do grupo e, portanto, na teoria deles eu era um agente da CIA, que era uma manifesta falsidade, e queriam que eu assinasse uma declaração a dizer que era agente da CIA, e eu sabia que quando assinasse essa declaração, então é que a minha vida não tinha valor absolutamente nenhum e, portanto, nunca assinei e eles fizeram uma tentativa in-extremis, e como não assinei disseram, 'vai ser fuzilado', e eu estava convencido que ia ser fuzilado. Atenção que na prisão de São Paulo, em Luanda, nesses tempos muito difíceis, quando se aproximava a meia-noite, os presos começavam a ficar inquietos porque entravam as ambulâncias brancas, que era onde os presos eram colocados, saiam da prisão nessas ambulâncias e depois eram executados.
Foram milhares de pessoas executadas assim, e eu estava absolutamente convencido que era o meu último dia de vida, é por isso que costumo dizer - a minha família não gosta muito que diga isso - que a minha vida depois disso é uma bênção, não é? E todos os dias que acordo e estou vivo é realmente uma bênção. Mas estava absolutamente convencido do que ia acontecer e portanto eles algemaram-me, eles andaram-me os olhos, levaram-me para um sítio que não sei bem onde era, ouvi o barulho das colatras a serem manuseadas mas depois as armas não dispararam e quando me colocaram outra vez na ambulância e voltei, é como se tivesse recuperado a vida, não é? E portanto foi um ato no extremo, nas margens da vida mas que depois moldou muito do meu pensamento.
Fiquei a pensar no seu livro, quando vi um filme que está agora a chegar às salas portuguesas Foi Só Um Acidente de um dos maiores realizadores iranianos, o Jafar Panahi que anda à volta da dificuldade em perdoar quando alguém foi submetido à tortura; no caso do filme um grupo de pessoas, encontra por casualidade um dos tortionários, uma das pessoas que os torturou e lembrei-me disso quando vi aqui no seu livro o relato do que aconteceu no Hotel Presidente em Luanda...
Sim, foi uma cena desse tipo. Muitos anos depois, quando voltei, estava no hotel presidente em Luanda, fui jantar e quando me vou sentar na minha mesa, vejo ao fundo da sala a levantar-se o Major Onambwe que foi o que me prendeu diretamente, na tarde de 22 de dezembro de 1977. E ele vem com a mão estendida para me cumprimentar, mas eu olhei-o de alto a baixo e não cumprimentei e depois sentei-me e pensei: 'estás a pisar as margens, podes ser preso de novo', mas não aconteceu. Mas aquilo era contra toda a minha dignidade, contra tudo, portanto os torcionários que têm um instinto predador e aquele homem particularmente portanto, quando saí da casa em que fui preso, começaram a apagar cigarros, inclusive no meu peito e depois cheguei à prisão e as torturas foram constantes. Ainda por cima largavam-me na minha cela sozinho, estava sempre a esvair-me em sangue, com muitas feridas mas sempre a pensar que tinha que resistir àquilo e a maneira de resistirmos nessas situações extremas é usar o nosso cérebro. Eu descobri na prisão que a mente humana é extraordinária, porque se a gente se deixa aprisionar pelo medo e pela dor sucumbimos completamente e deixamos de resistir. Foi aí que comecei a escrever poesia na mente porque não tinha caneta, não tinha lápis e a recordar-me dos livros que tinha lido, usando o pensamento para não me deixar aprisionar nem pelo medo nem pela dor. Bem pelo contrário. Isto é, usando o medo e a dor exatamente para transfigurar a vida, para encontrar caminhos e sobretudo para interrogar, até porque existe este instinto predador na espécie humana, porque as pessoas em situações em que são completamente impunes, tratam os outros desta maneira e isso é uma grande questão que continua no nosso tempo, basta ver hoje o genocídio que se passa em Gaza, que é inqualificável a maneira como as pessoas continuam a ser tratadas, torturadas e perseguidas.
Angola aos despedaços, 50 anos depois, que futuro? O novo livro de António Costa Silva é apresentado ao fim da tarde (18h30) na Fundação Calouste Gulbenkian, em Lisboa.