"Angola está numa encruzilhada. Ou se reinventa, ou vai entrar numa situação muito difícil"

António Costa Silva
Gerardo Santos (arquivo)
O antigo ministro defende um pacto entre as forças políticas e um novo modelo de desenvolvimento económico em Angola, baseado na educação e na diversificação da economia. António Costa Silva aponta causas do fracasso e receitas para o sucesso de Angola
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Nasceu em Angola, onde cresceu e estudou, militou nos Comités Amílcar Cabral (CAC) e na Organização Comunista de Angola. Foi preso pelo MPLA em dezembro de 1977, sobreviveu à tortura e a um pelotão de fuzilamento. Libertado após duas greves de fome. Iniciou depois uma carreira na área dos petróleos. As sequelas da tortura, em particular a deterioração da visão, levaram-no a procurar tratamento em Portugal e Espanha. Foi em Portugal, no Instituto Superior Técnico, que se licenciou em Engenharia de Minas, concluiu o mestrado em Engenharia de Petróleos no Imperial College, em Londres, doutoramento pelas duas faculdades - Imperial College e Técnico. Na vida profissional, passou pela Companhia Portuguesa de Serviços, pela multinacional francesa CGG, pelo Instituto Francês de Petróleo. A partir de 2004, pela Partex, a empresa da Fundação Calouste Gulbenkian, na área dos petróleos. Foi ministro da Economia do Mar no 23.º Governo Constitucional, liderado por António Costa. É professor aposentado do Instituto Superior Técnico. Segunda parte da entrevista na TSF sobre Angola.
António Costa Silva, quais são as causas do "fracasso angolano", expressão que usa no livro?
As causas são múltiplas. Uma delas é a fraqueza das lideranças políticas angolanas no período pós-independência que se deixaram enredar no jogo das duas superpotências e depois lançaram o país na guerra. Depois, é a armadilha do conflito prolongado em que o país caiu. Vinte e seis anos, dos 50 de independência, são passados em guerra e as guerras são altamente destrutivas. Depois é também o próprio modelo de desenvolvimento económico que foi seguido. Repare que Angola, na altura, em 1973, produzia cerca de 200 mil barris de petróleo por dia, com a independência chegou perto dos dois milhões em certos períodos, portanto, aumentou quase dez vezes mais, o que é absolutamente extraordinário. E o petróleo é uma indústria que, quando organizada, funciona e é aquela que proporciona receitas, mas é simultaneamente a bênção e a maldição de Angola. Ela auxiliou o crescimento económico mas distorceu completamente a diversificação da economia porque Angola é um dos países que se deixou cair na 'doença holandesa', que apareceu na Holanda quando a Holanda descobriu o campo de gás de Groningen nos anos 60; é caracterizada por um fluxo muito rápido de receitas significativas, os países tendem a usar essas receitas como uma renda, vivem numa espécie de economia rentista e esquecem o resto, não desenvolvem os outros setores da economia.
Mas isso não é culpa do gás nem do petróleo em si mesmos, é das opções dos humanos...
Das opções dos humanos e da fraqueza das políticas públicas e eu compreendi isto com muita clareza quando uma vez encontrei a antiga ministra das Finanças da Nigéria, que é Ngozi Okonjo-Iweala: ela tinha um plano para retirar a Nigéria da armadilha da 'doença holandesa' e o plano dela não funcionou. Ela é uma das grandes economistas africanas, aliás, é a atual diretora-geral da Organização Mundial de Comércio e eu perguntei-lhe por que é que o plano não funcionou. E ela disse: "Sabe, eu tinha apoio do Presidente, fui falar com os meus colegas e depois a resposta deles era a mesma - 'por que é que tu queres que a gente faça essas reformas difíceis quando temos o dinheiro fácil do petróleo?'" E o dinheiro fácil do petróleo é letal porque a economia rentista e a mentalidade rentista desenvolvem-se, o país sente que não é necessário fazer muito... repare que Angola, em 1974, cerca de 20% do PIB era agricultura hoje é 4%, houve um colapso da agricultura, o setor industrial era 18% colapsou, hoje também representa cerca de 5% e isso mostra que se construiu uma economia de enclave à volta do petróleo usando o dinheiro do petróleo para projetos que não são muito produtivos para o país em lugar de utilizá-lo para apostar na educação, na saúde e depois na diversificação da economia com políticas contracíclicas que permitam desenvolver fundamentalmente a agricultura e a indústria transformadora .
Enriqueceu uma elite política que se foi perpetuando no poder fez aumentar ou tornar a corrupção, provavelmente, um problema quase endémico?
Sem dúvida, eu penso que a corrupção é o grande elefante da sala e que não se discute muito em Angola. Há um estudo muito interessante do CEIC, que é o Centro de Estudos e Investigação Científica da Universidade Católica de Angola, dirigido pelo professor Manuel Alves da Rocha, que é um dos mais notáveis economistas angolanos e eles identificaram que, entre 2002 e 2015, o Estado angolano recebeu de impostos petrolíferos, royalties e todos os pagamentos, cerca de 840 mil milhões de dólares e, portanto, eles confrontaram as autoridades para ver qual era o destino desse desse dinheiro, que é um dinheiro massivo, é quase três vezes o PIB português. E as autoridades dizem que foi investido em infraestruturas. Ora bem, o que se consegue identificar são 110 mil milhões de dólares investidos nas infraestruturas e desapareceram 130 mil milhões de dólares e, portanto, o dinheiro público desapareceu. A corrupção aqui tem, digamos, uma escala absolutamente descomunal e Angola seria hoje um país muito diferente se estes 730 mil milhões de dólares tivessem sido utilizados como bem público para a educação, para a saúde, para a diversificação da economia; portanto, a meu ver, Angola precisa de uma grande reforma ética e institucional e a luta contínua contra a corrupção. Penso que o presidente João Lourenço esteve bem em 2017 quando tomou posse ao eleger a corrupção e a luta contra a corrupção como uma grande aposta da sua presidência, mas os avanços têm sido tímidos e os resultados escassos, é preciso fazer muito mais.
Apesar da recuperação do crescimento económico em 2024, escreve a economia angolana tem revelado um crescimento anémico desde 2008, experimenta uma profunda contração de 11% entre 2015 e 2020 e depois há a questão da dívida à China, que é um problema?
É um problema e 2024 é uma ilustração do grande problema que é, porque a China pôs fim às moratórias, começou a exigir o pagamento e a situação do Estado Angolano tornou-se uma situação extraordinariamente difícil. Repare que o Fundo Monetário Internacional (FMI) já fez um alerta a dizer que as reservas financeiras geridas pelo Banco Nacional de Angola atingiram no fim de 2024 o nível mais baixo de sempre, cerca de 15,7 mil milhões de dólares e 2025 vai ser ainda mais difícil, vai reduzir cerca de 3 mil milhões. E, portanto, a questão é como é que o Estado Angolano vai fazer face aos seus compromissos? E a gestão da dívida é das coisas que, a meu ver, também não foi bem feita, não é só uma questão deste governo, é de todos os governos anteriores. No período que é chamado o ciclo d'ouro do desenvolvimento da economia angolana no pós-independência, que é entre 2002 e 2008, exatamente quando os preços do petróleo cresceram muito nos mercados mundiais, em 2008 chegaram a 147 dólares por barril. Nesse período, as receitas acumuladas foram de cerca de 240 mil milhões de dólares e em vez de haver algum abate da dívida e alguma diversificação da economia, o que se fez foi aumentar ainda mais a dívida pública: era de 14 mil milhões de dólares em 2007, passou para o dobro, 28 mil milhões em 2008, chegou a 96 mil milhões em 2019 e temos hoje o Estado Angolano com uma grande dificuldade de gerir a dívida. Porquê? Porque com as dificuldades que existem, não consegue recorrer aos mercados internacionais de endividamento aos mercados tradicionais e está a recorrer a empréstimos de curto prazo como o do ano passado do J.P. Morgan, de cerca de mil milhões de dólares, com uma taxa leonina de 10% e garantias de cerca de 1900 milhões. E portanto, se não pagar até o fim deste ano, a situação é difícil, e eu acho que isto é dos grandes problemas e das grandes preocupações que existem neste momento. Como é que o Estado Angolano vai sair disto, vai fazer face à dívida, até porque depois para fazer face a isso tudo o resto é sacrificado. Repara que Angola é um país que tem gravíssimos problemas sociais de desnutrição da população, sobretudo das crianças, de fome, de miséria, portanto as políticas sociais são absolutamente fulcrais e quando vai analisar, por exemplo, em 2025 a execução das políticas sociais, da pouca verba que está no orçamento, só 1% é que foi executado e a educação é a mesma coisa, e a saúde é a mesma coisa, portanto vamos descurar as apostas naquilo que são os eixos fundamentais para mudar a vida do povo angolano.
E como é que se muda?
Como é que se muda? Há um caminho. Nos últimos capítulos do livro tento identificar esse caminho. Eu penso que esse caminho passa pela aposta na agricultura, Angola é um país extraordinariamente rico do ponto de vista agrícola, tem 35 milhões de hectares de terras cultiváveis, apenas 16% hoje estão a ser utilizadas. Portanto, aí há muito a fazer. Eu andei no mês de setembro com a minha antiga turma de Engenharia de Minas da Universidade de Luanda a visitar Angola durante cerca de 3 semanas, percorremos 4500 quilómetros e o que noto é a desorganização completa dos mercados rurais. Nós falámos com camponeses que produzem e não conseguem escoar a sua produção; é uma desorganização muito grande, é preciso reorganizar os mercados rurais todos, é preciso revisitar algumas das políticas que o regime colonial tinha. No tempo colonial havia a chamada extensão rural de Angola: os técnicos agrícolas, engenheiros agrónomos percorriam o país, era uma rede impressionante que estava em contato com os produtores e que desenvolvia portanto todas as tecnologias em articulação com a atividade dos produtores. Hoje não temos nada dessa ajuda e 80% da produção alimentar em Angola é de agricultura familiar, às vezes de subsistência, que não existe. E depois tem que haver um banco nacional de sementes, um banco de fertilizantes, de equipamentos agrícolas, tem que haver sobretudo uma grande aposta naquilo que é a eletrificação rural. Isso acho que é uma das coisas que as autoridades angolanas estão a fazer bem, sobretudo desde 2015 até 2022 a capacidade elétrica instalada no país passou de 2,3 gigawatts para 6,2, quase triplicou, e existe o plano até 2028 para levar esta rede elétrica nacional a todas as partes do território nacional. A eletrificação rural é fundamental, se conseguir fazer isso ligado com um mecanismo de microcrédito, que foi aplicado no Bangladesh pelo Mohammed Yunus com o seu banco Grameen, penso que é muito importante. Angola deve também olhar para a pobreza de outra maneira, porque como o Yunus e os economistas que trabalham com ele dizem: os pobres são empreendedores, têm que lhes dar oportunidades, e talvez um esquema de microcrédito e de auxílio às pessoas possa transfigurar a agricultura angolana. E depois há toda a parte industrial. Nós andámos pelo país e há centenas e centenas de fábricas que estão inativas em Angola.
É preciso uma reindustrialização?
É preciso uma reindustrialização e com políticas ativas, subvenções, parcerias com companhias nacionais e internacionais para reactivar todo esse tecido produtivo. Angola tinha uma indústria açucareira, do algodão, cimenteira, siderúrgica, fabricação de máquinas, equipamentos, moagens, que ainda existem no país as infraestruturas, algumas mais delas. Por exemplo, na minha terra, onde nasci, quando ia para lá, na atual cidade do Cuito, estava a Empresa de Farinhas de Angola, com as suas instalações que são absolutamente impressionantes, ao lado da linha do caminho de ferro de Benguela. E a linha de caminho de ferro de Benguela, em que o governo também apostou e reativou, já está a funcionar desde 2019, tem que funcionar muito mais, na altura do tempo colonial havia cerca de 36 comboios por dia na linha. Hoje só existe um às segundas-feiras que sai do Lobito e, portanto, tem que haver muito mais, a linha tem 1.300 quilómetros e pode ser um eixo de desenvolvimento das economias locais ao longo do seu percurso.
Mas sobre o corredor do Lobito, há investimentos para o corredor do Lobito. Angola contava com o investimento norte-americano que foi anunciado ainda durante a presidência de Joe Biden, mas tanto quanto sei, os atrasos dos EUA nesse investimento estão a fazer Angola pensar em encontrar outros parceiros, nomeadamente a China.
Pois, essa é uma grande questão. Eu penso que o caminho de ferro do Lobito, o caminho de ferro de Benguela, que agora se chamou o corredor do Lobito, é absolutamente fulcral para o desenvolvimento do país. Eu, quando era ministro da Economia do 23º Governo Constitucional, aqui em Portugal, procurei bater-me dentro do Global Gateways, como sabe o Global Gateways é um grande investimento que a União Europeia tem exatamente para os países em desenvolvimento, para inserirmos o corredor do Lobito, e ele está no Global Gateways e, portanto, a UE pode agora também fazer uma aposta mais significativa; a ligação da União Europeia com a África é fulcral para o futuro. E este empreendimento é ainda mais importante porque se liga à Zâmbia, a Zâmbia é um grande produtor de cobre, atenção, e liga-se depois na fronteira com a República Democrática do Congo, que é um grande produtor de cobalto. E o que é que se passa? A Angola também tem 31 das 56 matérias-primas estratégicas para o desenvolvimento da economia. Tem cobalto, tem cobre, tem nióbio, tem terras raras. Eu passei na zona do Longonjo, perto do Huambo, onde vai abrir a primeira mina de terras raras da Angola, que tem investimentos também ingleses e vai produzir cerca de 2,5% da produção mundial. E o que é que se passa? A Angola pode ser um epicentro ligado à Zâmbia e ligado à República Popular do Congo desta matérias-primas que são estratégicas. E hoje as empresas do mundo estão desesperadamente à procura de zonas que podem produzir estas matérias-primas. Agora, o que eu defendo no meu livro é que o modelo tem que ser completamente diferente do passado. O passado era um modelo puramente extrativo, extrai-se as matérias-primas, as companhias internacionais vêm, exportam e o país depois pouco beneficia ao nível do desenvolvimento da sua economia. Angola pode criar aqui toda a fileira, como alguns países já estão a tentar, nomeadamente o Quênia, que é criar a extração, a refinação, o processamento e depois estas matérias-primas podem servir para produzir carros elétricos, para produzir baterias, como está a fazer a China. Eu defendo que a Angola pode ser uma espécie de China da África.
Propõe uma estratégia de desenvolvimento que passa necessariamente por levar em consideração a estrutura demográfica do país. Angola é uma nação extremamente jovem, 70% de população com menos de 20 anos de idade e até por isso é natural que seja a juventude quem mais exerce pressão sobre o poder político...
Sim, sim. Sem dúvida. Tem toda a razão. E se olhar para a taxa de desemprego, nós temos hoje no país uma taxa de desemprego de 32%, mas a taxa de desemprego dos jovens é de quase 60%. Isto é, em cada três jovens, dois não têm trabalho e, portanto, isto cria uma pressão muito grande e é necessário haver uma aposta muito significativa na educação e no desenvolvimento desse capital humano. Mas também lhe queria dizer uma coisa.
Eu fiquei absolutamente contente no Huambo. Quando lá fui em junho, estava num dos restaurantes a almoçar, e vêm os promotores de um projeto que se chamou Viemba, na língua umbundo significa medicamento, e eles estão a instalar uma das primeiras fábricas de medicamentos em Angola, na estrada do Huambo para Caála, e perguntaram-me se eu queria visitar. Fui visitar mesmo nesse dia à tarde. E quando chegámos lá, vi que eles vão produzir paracetamol, vão produzir outros medicamentos para combater a malária e a Angola precisa desesperadamente disso, e eu perguntei: 'então e os recursos humanos, como é que vocês fizeram?' Eles contataram nas escolas do Huambo, sobretudo os estudantes que estavam a terminar os seus cursos. O Huambo é uma cidade que hoje tem um pulsar muito vibrante, portanto tem uma cidade estudantil. Eles identificaram dois mil candidatos para terem a força de trabalho, alguns já estão a trabalhar com eles desses dois mil. Foi uma empresa com currículo internacional que fez esta avaliação, desses dois mil, dez eram génios, isto é, nos 36 milhões de angolanos, se houver aposta na educação, se derem ferramentas às pessoas, o país tem condições, sobretudo com esta nova geração, de sair destas armadilhas e encontrar um caminho diferente para o futuro. Esperamos que daqui a 50 anos o balanço seja muito melhor.
50 anos, se calhar é muito tempo, ou não, pegando no título de um livro que também cita no seu livro, do académico português Ricardo Soares Oliveira, Magnífica e Miserável: Angola Desde a Guerra Civil. Acredita que daqui a dez anos, vinte anos, Angola possa ser mais magnífica do que miserável?
Eu acredito que sim, tem todo o potencial para isso, embora 10, 15, 20 anos seja um prazo muito curto, porque o país está numa encruzilhada. Ou se reinventa, ou vai entrar numa situação muito difícil, e nós precisamos de todas essas ideias, de um debate profundo, com humildade e sobretudo precisamos de um pacto entre as forças políticas angolanas, para, em termos da educação, da saúde, da diversificação da economia, ver exatamente o caminho que o país quer seguir, porque se fizer isso, eu acredito que pode ser mais magnífico e menos miserável.