"É difícil acreditar nos horrores que aqui aconteceram." Memórias do Ruanda em 1994
O Ruanda assinala este domingo 25 anos do início do genocídio que matou cerca de 800 mil pessoas e fez seis milhões de desalojados. Carl Wilkens foi o único norte-americano que testemunhou a matança e gravou para a TSF um depoimento a partir de Kigali.
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Na noite de 6 de abril de 1994, o avião onde viajavam os presidentes do Ruanda e do Burundi foi abatido quando chegava a Kigali. O atentado desencadeou 100 dias de horror que marcaram para sempre um país.
O Ruanda estava em guerra desde 1990 mas em 1993, com a assinatura dos acordos de Arusha, tinha entrado em vigor um cessar-fogo.
O ataque contra o avião onde viajavam Juvénal Habyarimana e Cyprien Ntaryamira foi o pretexto para a maioria hutu desencadear uma matança que terminou com mais de 800 mil pessoas mortas. Vizinhos viraram-se contra vizinhos, amigos contra amigos e ninguém escapou; crianças, mulheres, homens e idosos.
Quando as embaixadas estrangeiras decidiram retirar os cidadãos que tinham no país foram poucos os que desafiaram a ordem. Carl Wilkens foi um dos dez estrangeiros que ficaram no país. Tinha dois empregados tutsis e decidiu ficar para tentar salvar-lhes a vida. Levou a mulher, os filhos e os pais para o local de retirada e regressou a casa.
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Este norte-americano pensava que o nível de violência a que estava a assistir não podia durar mais de duas semanas, mas prolongou-se de abril a julho.
Durante os cerca de 100 dias deu apoio a três orfanatos que estavam a transbordar de crianças e famílias que tentavam escapar. Levava-lhes água e comida várias vezes por semana. A grande maioria sobreviveu e Wilkens manteve-se em contacto com muitos deles. Há cinco anos contou à TSF que um dos meninos era advogado, outra criança era organizadora de casamentos e outra era engenheira.
Os dois funcionários também escaparam à violência refugiando-se em casa dele. Depois da guerra, um deles alistou-se no exército e anos mais tarde esteve no Darfur a tentar evitar outro genocídio. Quanto à rapariga, toda a sua família foi morta, mas ela acabou por recuperar, casou-se e teve dois filhos.
Quando o genocídio acabou cerca de 75% da população tutsi tinha sido eliminada.
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Carl Wilkens já regressou ao Ruanda dezenas de vezes, a maior parte acompanhado por estudantes norte-americanos. Diz que o país é hoje muito diferente daquele que conheceu em 1990, quando foi para lá viver com os filhos pequenos.
Mais de 50% da população atual ainda não tinha ainda nascido quando o genocídio aconteceu e entre os sobreviventes são inspiradoras as histórias de reconciliação.
Carl Wilkens contou-nos a história de uma mulher que acolheu um jovem quando a guerra acabou.
"Os vizinhos disseram que ela estava louca porque o jovem era o que lhe tinha matado o filho. Alguns anos depois os vizinhos já não lhe chamam maluca e os filhos do jovem chamam-lhe avó. É óbvio que muita gente diz que este é um caso num milhão, mas viajamos para o Ruanda e vemos o exemplo de uma cura e reconciliação inacreditáveis. É óbvio que não podemos ignorar os outros, os que ainda se sentem zangados e ressentidos, mas as pessoas que visitam o Ruanda saem com o sentimento, que eu penso ser verdadeiro, de que a maioria das pessoas são como a senhora que transformou em família os que lha roubaram", relatou em 2014 o norte-americano.
Wilkens está de novo no país para participar, este domingo, nas cerimónias de homenagem a todas as vítimas. Num depoimento gravado a partir do hotel em Kigali ele confessou à TSF os sentimentos que o invadem 25 anos depois.
"Bom dia a partir da belíssima Kigali, no Ruanda. É um privilégio regressar aqui para as cerimónias dos 25 anos. É difícil acreditar nos horrores que aqui aconteceram há 25 anos. Sabem, tenho o privilégio de visitar escolas e partilhar o que aconteceu no Ruanda em 1994, mas especialmente as histórias do país atualmente. A incrível coragem, capacidade de reconciliação e resistência das pessoas."
"Na verdade, recebi uma carta de uma das alunas de uma escola que visitei e ela dizia-me: 'ao estudar o Ruanda apercebi-me que não podemos definir as pessoas apenas por uma característica porque se o fizermos essa característica ganha força e enfraquece todas as outras qualidades'. Eu pensei, 'uauuu', isso não é verdade apenas com as pessoas, é também verdadeiro com os países. Se apenas virmos o Ruanda pelo genocídio ele ganha força, mas hoje o Ruanda é muito mais do que o genocídio. Adoro o pensamento, que tenho aqui muitas vezes, de que não precisamos de ser definidos pelo que não temos mas podemos ser definidos pelo que temos e o que fazemos com isso. É o que fazemos a seguir que nos define. Estou muito agradecido e sinto-me privilegiado por estar de regresso a este lindo país."
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