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No seu discurso de ano novo o Presidente da República pediu previsibilidade após as próximas legislativas. Compreende-se a preocupação do Presidente com os riscos de uma eventual instabilidade política, se bem que, ao contrário do que se julga, Portugal nem seja dos países com mais instabilidade política na Europa (entendida como alterações frequentes de governo) e não pareça existir uma correlação clara entre instabilidade política e crescimento ou estagnação na Europa. Alguns dos países mais desenvolvidos na Europa têm níveis de instabilidade política bem mais elevados que os nossos, mas isso não afeta o seu desenvolvimento e crescimento. Isso deve-se, provavelmente, a beneficiarem de uma cultura política assente em instituições públicas capacitadas e independentes que asseguram a qualidade da governação para lá dos ciclos políticos mais curtos.
A ironia, no entanto, é que seja António Costa a defender isto depois de em 2015 ter chegado ao poder, mesmo perdendo as eleições, argumentando que estas não serviam para escolher um primeiro-ministro.
Não é o caso português, no entanto, e por isso compreende-se o receio do Presidente da República. Não sei, no entanto, que previsibilidade podemos esperar após as eleições quando nem sequer temos previsibilidade sobre para que servem as eleições. Ontem, António Costa defendeu que as eleições são uma escolha entre ele e Rui Rio para o cargo de primeiro-ministro. É óbvio que, legal e constitucionalmente, as eleições servem para eleger deputados, mas o tema é político: aos olhos dos cidadãos a escolha é, em grande medida, entre candidatos a primeiro-ministro e é isso que António Costa quer tornar ainda mais claro. A ironia, no entanto, é que seja António Costa a defender isto depois de em 2015 ter chegado ao poder, mesmo perdendo as eleições, argumentando que estas não serviam para escolher um primeiro-ministro, mas sim os deputados ao Parlamento e que são estes que compõem as maiorias que decidem qual o governo e, logo, quem será primeiro-ministro. Acresce que António Costa tornou também ontem claro que, desta vez, se não ganhar as eleições não tentará formar governo e abandonará a liderança no PS. Acontece que, ao mesmo tempo que diz isto tudo, não assume, em nome do PS, a disponibilidade para viabilizar um governo de Rui Rio se este ganhar sem maioria. Ou seja, António Costa diz que estas eleições se resumem a uma escolha entre ele e Rui Rio para o cargo de primeiro-ministro, mas, ao mesmo tempo, recusa assumir os compromissos que façam dessa escolha uma escolha com consequências reais, deixando em aberto a possibilidade de os portugueses descobrirem em fevereiro que afinal, se o Partido Socialista perder as eleições, o Primeiro Ministro pode ser outro que não António Costa ou Rui Rio desde que seja do PS...
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No quadro de uma previsível maior fragmentação política parlamentar, o Presidente da República será inevitavelmente chamado a ter um papel mais importante na definição dos acordos e coligações.
Talvez seja este o cenário que o Presidente da República mais teme. Como lidar com uma maioria parlamentar que proponha, logo após as eleições de fevereiro, um primeiro-ministro que nem sequer foi apresentado como candidato a tal durante a campanha. Muitos entendem que o Presidente não poderá dar posse a tal primeiro-ministro por lhe faltar legitimidade política. No entanto, recordo como em 2015 se passou a entender que tudo o que era constitucionalmente possível no quadro parlamentar era legítimo politicamente e que não competia ao Presidente da Republica fazer um juízo sobre a legitimidade política da solução resultante do parlamento. O que aconteceu então foi uma parlamentarização da prática política do nosso regime semipresidencial. Não sei até que ponto Marcelo Rebelo de Sousa está preparado, e terá vontade, para um regresso a um maior semipresidencialismo. No quadro de uma previsível maior fragmentação política parlamentar, o Presidente da República será inevitavelmente chamado a ter um papel mais importante na definição dos acordos e coligações das quais poderá resultar um governo. A Itália, que conheço bem, é um bom exemplo disso, com governos, até como o atual, com largo apoio parlamentar e promovidos ou facilitados pelo Presidente. Mas quererá Marcelo desempenhar esse papel?
O grande dilema que Marcelo teme ter de enfrentar é o de ter de escolher entre assumir essa responsabilidade ou, pelo contrário, manter-se agnóstico - no fundo, impotente por escolha - perante as soluções políticas que o parlamento produza, qualquer que seja a sua legitimidade política.