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É possível que haja na detenção do ex-ministro Manuel Pinho algum "efeito Rendeiro". Sendo arguido desde julho de 2017, num processo que é no essencial público, é razoável questionar o que há de substancialmente novo que justifique esta alteração na relação com a justiça. Estamos todos mais atentos ao risco inerente à aplicação da medida de coação mínima, termo de identidade e residência, e será provavelmente inevitável que o ruído mediático causado pela fuga de João Rendeiro altere a avaliação que Ministério Público e tribunais fazem em processos que envolvem arguidos de peso.
Os últimos meses têm sido de grande agitação em processos de grande envergadura. Do futebol à banca, passando pela decisão de levar a julgamento o ex-primeiro-ministro na Operação Marquês, há uma perceção positiva de que a justiça chega a todos, incluindo os mais poderosos. O que não impede que o reverso da medalha seja igualmente verdade e que se mantenha uma eterna desconfiança quanto à eficácia dessas investigações, graças à morosidade crónica que caracteriza o nosso sistema. Esta semana tivemos mais um exemplo disso mesmo com a prescrição de vários crimes de que eram suspeitos ex-governantes no caso das parcerias público-privadas (PPP) para a construção de autoestradas.
Nada disso explica as repetidas insinuações de instrumentalização da justiça pelo poder político proferidas estes dias por Rui Rio.
A justiça vive presa num labirinto do qual parece difícil escapar. Por mais que enfrente poderes até aqui intocáveis (incluindo da própria magistratura), continua a ser vítima da incapacidade de concluir com maior celeridade as investigações e fases processuais que se lhe seguem. Seja por falta de recursos ou por lacunas nas mil e uma leis e reformas que se vão sucedendo, no fim da linha há muito poucas condenações, à proporção de inquéritos por corrupção e demais crimes ligados à atividade política.
Por maiores que sejam os problemas da justiça e a perceção de ineficácia causada pelo arrastamento de processos, um candidato a primeiro-ministro tem de ter sentido de Estado e preservar a integridade de um poder autónomo.
Nada disso explica, ainda assim, as repetidas insinuações de instrumentalização da justiça pelo poder político proferidas estes dias por Rui Rio. Prontamente criticado pelo tweet com que comentou a detenção de Rendeiro - críticas que vieram inclusivamente de social-democratas e do presidente da República -, o líder do PSD voltou ontem à carga. Insistiu que o diretor-nacional da PJ (nomeado pelo Governo) fez um "foguetório" com a detenção de Rendeiro para beneficiar o PS. Mas foi mais longe e visou igualmente o Ministério Público, pela prescrição do processo das PPP, lançando dúvidas e comentários interrogativos sobre a possibilidade de "gestão política" de inquéritos.
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Por maiores que sejam os problemas da justiça e a perceção de ineficácia causada pelo arrastamento de processos, um candidato a primeiro-ministro tem de ter sentido de Estado e preservar a integridade de um poder autónomo. Com o fogo que lança, Rio acaba por fazer campanha eleitoral sobre a justiça, caindo exatamente no erro de que acusa o sistema e o PS.
Numa conversa de café, todas as simplificações são possíveis. Num debate público, só ficamos com razões para desconfiar de um líder partidário que acredita que um diretor da PJ é um lacaio de quem está no Governo.
Numa conversa de café, todas as simplificações são possíveis. Num debate público que se exige minimamente ponderado e de respeito pelas instituições, só ficamos com razões para desconfiar de um líder partidário que acredita que um diretor da PJ é um lacaio de quem está no Governo. Ou que o Ministério Público atrasa e acelera inquéritos ao sabor de quem está no poder. Desacreditar órgãos de polícia e tribunais não é, seguramente, um bom ponto de partida para qualificar a vida pública e a relação entre política e justiça.
