Esperava "que me dessem uma palavrinha". Gentil Martins gostava de ter sido consultado no caso das gémeas siamesas
As duas meninas estavam unidas pelo abdómen e pela região pélvica.
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António Gentil Martins, o cirurgião que separou, pela primeira vez, gémeos siameses em Portugal, lamenta não ter sido ouvido no caso das duas gémeas de quatro anos agora separadas no Hospital D. Estefânia, em Lisboa. As duas meninas angolanas, unidas pelo abdómen e pela região pélvica, foram operadas em julho. A cirurgia foi divulgada na segunda-feira e descrita como rara e de enorme complexidade e risco.
Em declarações à TSF, Gentil Martins considera "muito positivo" que Portugal tenha capacidade para fazer este tipo de cirurgias, mas confessa-se triste por não ter podido ajudar neste caso.
"Gosto muito que seja possível em Portugal fazer-se a operação, a separação dos siameses, que não tenha de se ir ao estrangeiro, acho ótimo. Tenho imensa pena, por outro lado, que não me tenham sequer perguntado e pedido uma opinião visto que tive sete siameses operados e em Portugal sou, seguramente, a pessoa que tem mais experiência nisso, portanto achava que era natural que dessem uma palavrinha e perguntassem: 'Olha, o que é que tu achas?' Porque eu toda a vida procurei sempre ouvir os outros embora a decisão final fosse minha. Antes disso ouvia os outros, ouvia sugestões e via se a minha ideia estava certa ou não. A única coisa que lhe posso dizer é que desconhecia totalmente, o que me surpreende. Fico contente pelo facto de haver quem possa resolver a situação em Portugal. Fico surpreendido, de facto, por não terem resolvido a situação e terem deixado a coisa a meio", explicou.
As gémeas operadas no D. Estefânia estiveram 14 horas no bloco operatório numa cirurgia que se divide em duas partes. A primeira para fechar a parede abdominal de uma das meninas e a outra, prevista para a próxima semana, será à segunda das irmãs.
Gentil Martins sublinha que não conhece o caso, mas estranha que a separação não tenha sido concluída de uma só vez.
"Não consigo perceber. Em princípio a operação é para ser definitiva. Em princípio, mas como lhe digo, sem conhecer o caso é impossível dar um parecer correto. Em termos gerais, acho extraordinário não só ter demorado tanto tempo e envolvido tanta gente e, por outro lado, não ter ficado o assunto resolvido e terem tido de recorrer aos alemães. Fala-se que vieram três alemães dar uma opinião sobre a maneira de resolver a situação. Acho tudo isso extraordinário quando não ninguém me contactou, o que seria para mim normal. A parte positiva é serem capazes de resolver o assunto em Portugal. Só tenho pena é que tenham ficado a meio do processo e digam que ainda têm que operar mais. Isso é que esperava que tivesse sido possível, embora não conheça o caso e, portanto, não sei quais são as dificuldades, que são sempre muitas", acrescentou.
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O antigo cirurgião foi o autor da primeira separação de gémeos siameses alguma vez feita em Portugal, em 1978. Antes desta cirurgia agora divulgada, a última aconteceu há 24 anos.
Os três médicos alemães foram os responsáveis pela utilização de um material inovador essencial para o sucesso da parte final do procedimento nesta primeira fase cirúrgica, que passa pelo encerramento da parede abdominal das crianças.
Catarina Ladeira, chefe da cirurgia plástica pediátrica, responsável pelo procedimento de encerramento da parede abdominal explicou que "o defeito da parede abdominal era muito grande" o que "impedia fechar com segurança o abdómen", havendo risco de compressão dos órgãos.
O material inovador trazido pelos médicos alemães, que deram formação aos clínicos portugueses no D. Estefânia sobre como utilizá-lo na fase de preparação da cirurgia, permite um encerramento gradual da parede abdominal sem recurso a próteses ou materiais externos, e usando apenas tecido abdominal de cada uma das gémeas.
O maior risco durante a cirurgia era o risco de hemorragia, que não se verificou, disse a médica anestesiologista Teresa Cenicante, que sublinhou a importância do treino e da preparação de meses para chegar à separação das gémeas, "um momento muito emotivo para todos".
Ainda sobre a preparação, a enfermeira-chefe, Mercedes Ganito, revelou que no bloco operatório as diferentes partes do corpo das gémeas foram identificadas por cores, formando-se duas equipas, a verde e a azul, uma distinção necessária para a "segurança dos procedimentos" durante a cirurgia, sendo fundamental não haver erros na mesa de operações, para saber "que membro pertencia a que criança, qual o soro de cada uma", entre outros aspetos.
Sem revelar grandes detalhes, a equipa referiu apenas que as gémeas chegaram até ao hospital português ao abrigo de um protocolo de cooperação da Direção-Geral da Saúde (DGS).