"Não vou ver mais nenhum caso destes." Diretor do D. Estefânia detalha cirurgia a siamesas que estão a ter "recuperação esperada"
As irmãs angolanas estavam unidas pelo abdómen e pela zona pélvica.
Corpo do artigo
As gémeas siamesas angolanas que estavam unidas pelo abdómen e a zona pélvica e foram separadas no hospital D. Estefânia estão a ter a recuperação esperada. O diretor do serviço de cirurgia pediátrica do hospital, Rui Alves, espera já estar ultrapassada a fase mais crítica.
"As meninas neste momento estão ainda em recuperação, como é normal e habitual nestes casos, na unidade de cuidados intensivos, ainda sob ventilação invasiva e está a decorrer de acordo com o esperado numa cirurgia desta envergadura e com complexidade técnica associada. Estamos em estamos na fase esperada e espero, sinceramente, que tenhamos passado aquela fase mais crítica", revelou à TSF Rui Alves.
A recomendação para cirurgias de separação de siameses é de que aconteçam entre os seis meses e um ano e meio de vida das crianças. As gémeas angolanas foram separadas aos 4 anos, o que é raro.
Rui Alves sublinha a raridade destes casos na Europa ocidental porque, além da menor probabilidade de acontecerem face a países com muita população como a Índia ou a China, as gravidezes são muitas vezes interrompidas quando são detetadas malformações dos fetos.
"Estes casos são muito raros, portanto não contam no sentido de criarem centros de referência, porque para acontecer um centro de referência tem de haver, obviamente, volume. O professor Spitz, em Londres, publicou uma extensa referência bibliográfica em 2015 em que tinha 17 casos feitos em Londres. O professor Gentil Martins tem sete. Há sempre muito poucos casos e provavelmente, no resto da minha vida cirúrgica, não vou ver mais nenhum. Tenho 60 anos, portanto não vou ver mais nenhum. Agora o importante é termos, apesar da raridade, a capacidade de criar uma equipa coesa e sequencial do ponto de vista técnico e também, pelos meios disponíveis no Serviço Nacional de Saúde, num hospital público, conseguirmos fazer essa cirurgia. Isso é que é importante, para que o doente não seja referenciado a um centro estrangeiro. Na Europa ocidental também ninguém neste momento tem muitas crianças. Vivem em países com mais população, como por exemplo a Alemanha. O colega alemão que veio nunca tinha visto duas siamesas na vida. É mais velho do que eu e é um país com 80 milhões de habitantes. Num contexto europeu, comunitário, a experiência é sempre pequena nos tempos que correm", explicou o diretor do serviço de cirurgia pediátrica do D. Estefânia.
TSF\audio\2023\08\noticias\09\rui_alves_raridade
Da Alemanha vieram para dar apoio à cirurgia no D. Estefânia dois médicos e um engenheiro de biomateriais.
"Foram dois médicos. Um deles é o presidente do Centro Europeu de Cirurgia Pediátrica e diretor do serviço de Cirurgia Pediátrica de Frankfurt, veio um colega também da cirurgia e um engenheiro de biomateriais. E porquê? Porque isto é um material inovador que se destinou a fazermos a extração da sutura facial, muscular e cutânea das bebés para poder encerrar a parede abdominal diferidamente. Isto é um material que já existia para adultos, mas foi feita pela primeira vez a sua aplicação pediátrica e, nomeadamente, num caso que é raríssimo. Houve interesse também dos nossos colegas alemães em colaborarem connosco e foi ótimo para prestigiar o hospital e prestigiar os nossos cuidados de saúde virem cá e aplicarem o equipamento", contou.
Foram necessárias 14 horas no bloco operatório. A cirurgia de separação das gémeas teve a participação de 40 pessoas e as equipas foram divididas em duas cores: verde e azul, para identificar os equipamentos, materiais e as próprias crianças.
"Foi uma ideia de acordo com as boas práticas do serviço de enfermagem, em que tem de haver uma separação total de todos os dispositivos médicos, em cada uma das bebés. Criou-se uma equipa de enfermagem azul, outra verde e também os próprios dispositivos médicos foram classificados com cores e também depois tudo aquilo que sai da cirurgia, que é muito importante. As compressas são contadas, foram separadas também por cores porque cada uma delas pertencia a cada uma das gémeas. Foi importante haver uma separação por cores para não haver erros na administração dos fármacos", detalhou Rui Alves.
A cirurgia rara realizou-se a 28 de julho e foi "de enorme complexidade e risco", mas acabou por ser "um êxito". O material inovador trazido pelos médicos alemães, que deram formação aos clínicos portugueses no D. Estefânia sobre como utilizá-lo na fase de preparação da cirurgia, permite um encerramento gradual da parede abdominal sem recurso a próteses ou materiais externos, e usando apenas tecido abdominal de cada uma das gémeas.
No processo de separação foi necessário reconstruir parte do sistema urinário das gémeas, que tinham duas bexigas autónomas, mas ambas tinham os ureteres - canais que transportam a urina - ligados à bexiga da irmã, tendo sido necessário fazer a ligação correta.
Assim que recuperarem, as crianças vão precisar de intervenção ao nível ortopédico. Devido à ligação pela região abdominal, as crianças de quatro anos nunca andaram, pelo que aprender a andar levará a que seja necessário uma intervenção cirúrgica e fisioterapia, para promover a autonomia da marcha.
As gémeas chegaram até ao hospital português ao abrigo de um protocolo de cooperação da Direção-Geral da Saúde (DGS).