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Tradutor europeu e apaixonado pela literatura. "As palavras contam" na vida de Nelson Ferreira da Silva

Nelson Ferreira da Silva Foto: DR (arquivo)

No programa Fontes Europeias, o dia a dia de um burocrata europeu apaixonado pela literatura, que faz da imprensa literária um hábito matinal

Nelson Ferreira da Silva começa o dia a ler. Percorre a imprensa portuguesa em busca de notícias sobre o mundo literário. E, antes de se fazer ao caminho até ao gabinete, em Bruxelas, seleciona artigos, alinha fotografias e publica tudo no seu blog matinal: Revista de Imprensa Literária (RIL).

"Procuro dar um pouco de visibilidade, [para] as pessoas que já perderam o gosto pelos jornais", conta Nelson Ferreira da Silva, confessando que aquilo que verdadeiramente mobiliza para aquela tarefa diária é o desejo de "não deixar morrer os jornais".

Nelson Ferreira da Silva é tradutor no Conselho da União Europeia. No trabalho não há margem para criatividade, entre as traduções de textos políticos e jurídicos. Questionado sobre se essa atividade tem algo de literário, responde: "Não, de todo." A precisão linguística é crucial. Aliás, para ele, "é evidente" que a escolha de uma palavra ou uma nuance de tradução poderia afetar o entendimento de um acordo político. "As palavras contam", afirma. Por outro lado, "na literatura, por vezes, em vez de um termo, pode colocar-se outro e a diferença poderá ser nenhuma". Porém, nos textos da União Europeia, "uma vírgula pode fazer toda a diferença".

Nelson Ferreira da Silva reconhece-se na figura de um "burocrata de dia" que mergulha no mundo da literatura à noite. Na conversa, registada no edifício Justus Lipsius, sede do Conselho da UE, falou-se de Franz Kafka ou Fernando Pessoa como exemplo de escritores que conciliavam a vida de burocratas com a criatividade literária. Nelson Ferreira da Silva assume que se revê, "sem dúvida", nessa ideia de duplo ofício. Porém, não escreve.

"Acho que tenho demasiado respeito pelos escritores", afirma, salientando que se trata de um exercício "muito difícil". Além disso, considera que "um bom escritor não se forma assim. É preciso ter algo dentro da pessoa". Ainda assim, admite: "Daqui a 20 anos, não sei."

Por agora, faz a Revista da Imprensa Literária "por absoluto prazer", não se limitando apenas a uma compilação de recortes de jornais. Recentemente, publicou um conjunto de 40 entrevistas com escritores portugueses, um inquérito com "cinco perguntas a cada um". Nelson Ferreira da Silva confessa a sua surpresa por, "sem fazer parte de meios literários", nem frequentar "lançamentos de livros", ter recebido respostas de todos os autores a quem dirigiu as perguntas.

"Algumas ficaram marcadas", afirma Nelson Ferreira da Silva, destacando a "forma humilde como alguns escritores não se consideram escritores".

"Muitos ainda hesitam em assumir esse estatuto, mesmo com obra publicada e anos de escrita", diz.

O inquérito focou-se nos hábitos de escrita, como lidam com o bloqueio criativo, métodos de trabalho. "Alguns ouvem música enquanto escrevem, uns dizem que não há bloqueio criativo porque não têm tempo para ter bloqueios criativos", recorda.

A ideia da Revista de Imprensa Literária "surgiu em 2022". "Pensei: 'Deixa-me ver o que existe de livros, de literatura, de entrevistas, opiniões, na imprensa portuguesa'", refere, frisando que até havia "mais do que se pensa". Porém, "o espaço dedicado à literatura e tudo o que tem a ver com o livro diminuiu consideravelmente nos últimos 30 anos".

"Nos últimos anos, a tendência é para estagnar. O espaço que há é o que já havia. E as pessoas continuam a publicar entrevistas e críticas, mas muitas vezes é a crítica aos mesmos livros, entrevistas aos mesmos escritores e não há grande variedade"

Questionado sobre que obras melhor capturam este espírito europeu e quais os livros que considera indispensáveis para compreender a Europa dos dias de hoje, Ferreira da Silva cita como exemplo "Small Boat", do francês Vincent Delacroix, "sobre a morte de 27 migrantes no Canal da Mancha", e também "O Método", da alemã Juli Zeh, "uma distopia" sobre o controlo governamental da saúde individual.

Nesse livro, "para o Governo, a saúde é tudo", conta, referindo-se à perda de privacidade sobre "tudo aquilo que afeta a nossa saúde, os nossos níveis de colesterol".

"Tudo aquilo que nos possa afetar, o Governo controla e impõe sanções a quem não o respeita. E, depois, a personagem principal, perante a morte do irmão, vai-se rebelar contra o estado de coisas", afirma Nelson Ferreira da Silva, que encontra no livro "um paralelismo para muitas outras coisas".

"É também assim nas entrelinhas que, por vezes, vemos [que] a Europa é um espaço muito democrático, muito livre, comparado com outras zonas do globo. Não está isento de falhas, naturalmente, mas continua a ser um espaço maravilhoso para viver", sublinha.

João Francisco Guerreiro