Cinquenta mortos, 70 feridos, 1.500 casas atingidas, quase 200 mil hectares de floresta ardidos. Um ano depois dos incêndios de outubro na região Centro, há números que importa não esquecer.
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E quando se pensava que uma tragédia como a de Pedrógão Grande jamais podia voltar a acontecer, três meses depois o pesadelo repete-se.
Nos dias 15 de outubro de 2017, de novo a imagem das árvores negras, carros acidentados à beira da estrada, casas reduzidas as escombros, rostos de desespero.
"Foi o pior dia do ano", nas palavras de Patrícia Gaspar. Coube à adjunta de operações da Autoridade Nacional da Proteção Civil dar conta ao país dos mais de 300 incêndios que deflagraram naquelas 24 horas.
Uma tragédia depois da tragédia, que atingiu 27 concelhos dos distritos de Coimbra, Viseu, Leiria, Aveiro, Castelo Branco e Guarda.
Cinquenta pessoas morreram e 70 ficaram feridas, 10 das quais com gravidade.
Mil quatrocentas e oitenta e três casas foram total ou parcialmente atingidas. Oitocentas eram habitações permanentes.
Quinhentas empresas foram total ou parcialmente destruídas, incluindo 38 empreendimentos turísticos. Perderam-se cinco mil empregos.
Duzentos e vinte mil hectares de território ardidos entre Viseu e o Tejo, cerca de 190 mil dos quais de floresta.
Foi o maior "fenómeno piro-convectivo" de sempre na Europa (uma combinação 'explosiva' entre ventos fortes, temperaturas elevadas e baixos níveis de humidade) e o maior do mundo em 2017. Arderam 10 mil hectares por hora, ao longo de 13 longas horas.
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"Estamos negros por dentro"
Em dezembro de 2017, três meses depois dos incêndios, a TSF voltou à região centro. O padre Morais descreveu a noite em que as chamas cercaram as casas, em que fugir e ajudar outros a fugir foi única coisa que os habitantes de Folgosinho, no concelho de Gouveia, puderam fazer.
Não havia telefones, nem internet, nem luz, nem água. Não se podia entrar nem sair da aldeia. "Só tivemos tempo de fugir. Sabe o que é uma noite inteira nisso? Não queira saber. Foi um inferno."
E o que pensa um padre quando enfrenta o inferno? "Estamos negros por dentro."
O verde desapareceu. Mil hectares de floresta arderam no concelho de Gouveia, a maior parte no perímetro do parque natural.
Metade das mortes, 25, ocorreu no distrito de Coimbra. Dezassete no de Viseu. Os restantes óbitos foram registados na autoestrada que liga Aveiro a Vilar Formoso (A25), nas zonas de Sever do Vouga (Aveiro), Pinhel (Guarda), e no concelho de Seia (Guarda).
A 50.ª vítima mortal dos incêndios de outubro de 2017, uma mulher, morreu no dia 14 de junho deste ano, depois de ter sobrevivido ao fogo em Oliveira do Hospital com queimaduras em grande parte do corpo.
Os testemunhos de Oliveira do Hospital são dignos de um filme de terror. Aqui morreram 13 pessoas. Carbonizadas, asfixiadas. Dentro das próprias casas ou dos carros onde tentaram fugir.
O concelho viu arder 200 casas, metade de primeira habitação, e 95 empresas tiveram prejuízos de 100 milhões de euros.
No curral que acolheu a emissão especial da TSF dois meses depois do fogo, o secretário de Estado da Agricultura ouviu as queixas dos produtores afetados.
Para se ter uma ideia dos prejuízos, só em indemnizações ou compensações financeiras, o Ministério da Agricultura revelava em março deste ano que já tinha pago 60 milhões de euros a cerca de 25 mil agricultores da região.
Meio milhão de animais não resistiram aos incêndios de outubro, sobretudo ovelhas e cabras que pastavam nos vales verdes da Serra da Estrela.
Os pastores perderam rebanhos inteiros e a raça de ovelha Bordaleira, cujo leite serve a produção do famoso queijo da Serra, ficou à beira da extinção.
Apenas graças à solidariedade de muitos, pessoas como o queijeiro Paulo Rogério não abandonaram a terra onde perderam tudo. Os amigos deram-lhe animais e uma ovelha que sobreviveu ao fogo pariu dois borregos. Há que agradecer aos céus pelos pequenos milagres.
Morrer à temperatura que derrete o aço
A deficiente limpeza da floresta, o vento forte impelido pelo furação Ophelia, e as elevadas temperaturas deram ao fogo uma velocidade e força imparáveis.
À falta de melhor imagem, a descrição de quem viu "os metais a derreter" chega-nos para percebermos melhor porque morreu tanta gente.
As chamas cercaram Midões no concelho de Tábua. Num momento o fogo estava no horizonte, no momento seguinte os sinos tocavam a rebate e as chamas batiam à porta.
Cerca de 20 habitações foram destruídas nesta aldeia histórica, mas também duas capelas, três palacetes e um jardim-de-infância.
Segundo números da Comissão de Coordenação e Desenvolvimento Regional do Centro, de todas as habitações atingidas pelos fogos de outubro 285 já foram reconstruídas. Estão em curso trabalhos em 455 e por iniciar estão 88 empreitadas.
Já a Segurança Social concedeu a 292 famílias um conjunto de apoios que ascende a 152 mil euros
Seis pessoas morreram em Vouzela, cinco em Santa Comba Dão, quatro em Penacova, quatro em Arganil.
Perderam-se casas, empregos e muitos hectares de floresta, tanto aqui como em Tondela, Seia, Oleiros, Sertã, Pampilhosa da Serra, Vila Nova de Poiares, Miranda do Corvo, Figueira da Foz, Mira, Carregal do Sal, Mortágua, Nelas, Vagos, Castelo de Paiva.
O mapa estende-se a 59 dos 100 municípios que integram o Turismo do Centro. Trinta e oito empreendimentos turísticos foram, total ou parcialmente, destruídos e nos dias depois do fogo houve 77% de cancelamento das reservas em hotéis.
Foi um tropeção temporário para o turismo. O ano de 2017 acabou por ser o de maior crescimento de que há memória naquela região. As dormidas e visitantes cresceram 14,7% em relação ao período homólogo do ano anterior, bem acima da média nacional (7,4%).
Marcelo Rebelo de Sousa foi um dos muitos turistas solidários. O Presidente da República cumpriu a promessa e passou as férias de verão deste ano em vários concelhos afetados.
O que o rei plantou, as chamas destruíram
86% do Pinhal de Leiria foi consumido pelas chamas. A floresta não seria limpa desde 2008 e pode ter aqui havido "mão criminosa".
Segundo uma investigação da TVI24, incêndio que deflagrou no chamado Pinhal do Rei terá sido planeado ao pormenor por madeireiros, responsáveis por grandes empresas e fábricas de compra e venda de madeira.
Um mês antes do fogo terão decorrido reuniões para determinar a melhor forma de atear as chamas sem deixar provas e combinar preços para a madeira queimada. A arma escolhida foram "vasos de resina com caruma" e outros dispositivos incendiários, escondidos estrategicamente com intuito de "armadilhar" o pinhal.
O Município da Marinha Grande já plantou cerca de 40 mil árvores no Pinhal de Leiria, mas há ainda um longo caminho a percorrer para recuperar o pulmão verde perdido. O objetivo da câmara municipal é plantar árvores em igual número ao de habitantes do concelho, cerca de 40 mil.
O Governo anunciou a intenção de reforçar os serviços florestais, mas continuam, aqui, a faltar recursos.
O presidente do ICNF - Instituto de Conservação da Natureza e das Florestas - estima que são precisos cerca de 40 operacionais e um técnico por cada 5 a 10 mil hectares. O Pinhal de Leiria, com 11.021 hectares, dispõe apenas de um técnico superior e nove operacionais.
Ardeu também a floresta de carros da Magnauto, uma das 15 empresas da zona industrial de Oliveira de Frades que ficaram totalmente destruídas. Perderam-se 500 empregos, 300 dos quais irrecuperáveis.
Só nesta zona, o prejuízo foi calculado em 100 milhões de euros. A associação empresarial de Lafões estima uma regressão económica e social de 15 anos.
Para as seguradoras, os incêndios de outubro representam o maior sinistro de sempre, com mais de duas mil participações.
No total, as empresas afetadas pelos incêndios de outubro beneficiam de um financiamento de 85% do prejuízo, de acordo com a decisão do Conselho de Ministros de 5 de abril de 2018.
Cerca de 22.000 desempregados que ficaram sem trabalho ou cujas empresas deixaram de ter capacidade produtiva foram encaminhados para ações de formação pela Segurança Social.
O que falhou (outra vez)?
"Era possível minimizar extensão do incêndio" de outubro, concluiu a Comissão Técnica Independente sobre os incêndios.
Seria mais fácil perguntar 'o que não falhou'. As populações foram "entregues a si próprias numa situação de dramático abandono", os bombeiros tiveram dificuldades em chegar aos locais atingidos pelas chamas e foram encontradas falhas evidentes na limpeza das estradas onde morreram várias vítimas.
Tal como aconteceu em junho, no incêndio de Pedrógão Grande, as comunicações de emergência através do SIRESP não funcionaram como devido.