Um dos homens que negociou com o governo do lado do PCP é Vasco Cardoso, da comissão política e do comité central. Convidado esta semana do programa da TSF e do Diário de Notícias, Vasco Cardoso afirma que o PCP "nunca teve ilusões" em relação ao Governo, recusa a ideia de que a única solução é a convocação de eleições antecipadas e acusa o Presidente da República de ter sido um "fator de instabilidade" nas semanas que antecederam a votação do Orçamento do Estado.
O que é que falhou nas negociações entre o PCP e o governo?
Quando começámos a preparar este OE partimos da realidade do país, daquilo que são os seus principais problemas, com que os trabalhadores, o povo, o país, estão confrontados, e procurámos ir ao encontro dessas soluções, mesmo sabendo das resistências do PS, das suas limitações, daquilo que tem optado ao longo destes últimos anos, designadamente em termos de uma trajetória do défice das contas públicas que tem limitado outras respostas. Mas fomos para o debate municiados de objetivos aos quais pretendíamos dar resposta, sobretudo tendo em conta que tínhamos passado a epidemia: em 2021 fomos determinantes para que essa resposta à epidemia se pudesse concretizar, particularmente no OE para 2021, onde aliás foi possível corrigir um conjunto de aspetos que tinham sido consagrados no Orçamento suplementar, e que levou na altura o PCP a votar contra, não é a primeira vez que votamos contra um Orçamento dentro deste enquadramento, e foi possível repor o pagamento dos salários a 100% em situações de lay-off, prolongar prestações sociais, dar outra resposta do ponto de vista do Serviço Nacional de Saúde, porque a epidemia a isso exigia. Portanto, deu-se essa resposta do ponto de vista da epidemia. Pensamos também que ela também, a epidemia, expôs de uma forma mais crua aquilo que são problemas estruturais do país, ouvimos o governo durante meses dizer que existiam recursos, e recursos abundantes, sejam aqueles que decorriam do Plano de Recuperação e Resiliência seja até as próprias perspetivas de crescimento económico que estão sinalizadas para o próximo ano, e até o facto, não pouco importante, de o país não estar obrigado a cumprir as regras do tratado orçamental, que estão ainda durante este ano e o próximo suspensas. Ou seja, recursos, problemas que há muito tempo precisam de resposta e precisavam de se resolver, e fomos para a discussão com o governo colocando questões, umas dentro do Orçamento, outras para lá do Orçamento, mas considerando uma resposta global aos problemas do país.
Mas o que é que falhou?
O que falhou foi a opção do governo de não ir ao encontro dessas respostas. E eu posso desenvolver alguns dos aspetos centrais que colocámos em cima da mesa. Uma das matérias, que tem uma dinâmica orçamental, mas acima sobretudo uma dinâmica mais geral, é o objetivo do aumento geral dos salários. O país tem um padrão assente em baixos salários, isso tem tido um prejuízo significativo quer do ponto de vista económico quer do ponto de vista social, não é possível reter talento, criar melhores condições de vida para a população, dinamizar o próprio mercado interno sem uma perspetiva do aumento dos salários. Pusemos em cima da mesa o aumento geral dos salários designadamente na administração pública, procurando recuperar poder de compra. No plano do setor privado, com a eliminação da caducidade da contratação coletiva, que tem sido um bloqueio a esse aumento dos salários. Há 18 anos que a contratação coletiva tem vindo a ser esvaziada desde que foi introduzida a caducidade, e também o próprio aumento mínimo da salário nacional. Animados até por aquilo que está a acontecer aqui ao lado em Espanha em que se estão a aproximar dos mil euros de salário mínimo nacional, ou aquilo que aconteceu recentemente, por exemplo, na Alemanha em que decidiram o aumento do salário mínimo nacional de mais de 400 euros. Os alemães vão ter no final do próximo ano um salário mínimo nacional que ultrapassa os 2 mil euros. O governo mostrou-se intransigente em relação a essa matéria.
Veja a entrevista na íntegra:
Qual o momento em que o PCP decidiu que chegava de conversar com o governo, que não valia a pena?
Nós fomos conversando até ao fim. O debate orçamental começou na terça-feira e praticamente até ao início desta semana fomos discutindo.
A rutura foi decidida no domingo?
No domingo o comité central não decidiu votar contra. O que decidiu e anunciou foi não haver avanços, que ainda era possível serem realizados, que essa era a nossa consideração relativamente ao OE. Repare que nós não trabalhámos para votar contra o Orçamento. Nós trabalhámos para encontrar respostas aos problemas do país.
Insisto. Qual é o momento em que o PCP decide?
Numa fase já muito derradeira desta discussão, e o governo sabia disso, colocámos, além do que se tinha alcançado e do que se tinha adquirido do ponto de vista do Orçamento, três questões em cima da mesa no seguimento de uma discussão que já tinha existido que pensámos que, a haver uma resposta positiva, poderia haver outras condições pelo menos para uma viabilização na generalidade. Essas três questões são conhecidas e tornámo-las públicas. Uma delas é o salário mínimo. O governo não saiu do sítio onde estava e que anunciou em março. Aliás, o que veio foi dizer que o aumento do salário mínimo nacional por objetivo dos 850 euros só lá para 2025. É evidente que alguma vez chegaremos aos 850 euros, mas a trajetória e o ritmo dessa trajetória conta. Foi a questão da caducidade da contratação coletiva, onde nós avançámos com a ideia da revogação da caducidade da contratação coletiva, mas admitimos, já numa fase derradeira da discussão, que ela fosse suspensa sem condições e sem prazo. E um terceiro aspeto são as medidas urgentes que são necessárias para o SNS.
Está a referir-se ao estatuto do SNS?
Aquilo que se está a verificar hoje no SNS é particularmente grave. É grave porque dia após dia, semana após semana, os grupos privados de saúde conseguem, porque as regras são completamente desiguais, ir a um serviço de um hospital ir lá buscar um anestesista, um ortopedista, um médico de uma outra especialidade, o mesmo se passa com enfermeiros. O SNS está a ser esventrado do ponto de vista dos seus profissionais por parte dos grupos económicos privados e isso está a acontecer, inclusivamente, com a utilização de recursos públicos. Ora, para responder ao problema do SNS não basta palavras redondas e objetivos redondos. Que lá para o primeiro trimestre o governo compromete-se a regulamentar o regime de dedicação plena dos profissionais de saúde. Bom, isto não se compadece com o primeiro trimestre. Nós precisávamos de medidas que a partir do dia 1 de janeiro pudessem ter efeitos práticos na retenção dos profissionais de saúde e na fixação dos profissionais de saúde. Também ganhámos esta experiência ao longo destes últimos seis anos, que é encharcarem-se os orçamentos do Estado de normas programáticas, de objetivos redondos que depois não passam do papel, e quando são necessárias medidas urgentes não se podem vir com uma resposta que seja de continuar a arrastar a resolução desses problemas. Ora, com a ausência de resposta, já na madrugada de sábado, percebemos que o governo não estava interessado em encontrar soluções.
O PCP deixou de confiar no governo?
Nunca tivemos ilusões relativamente ao governo. Nós conhecemos o PS há muitos anos, há mais talvez do que eles nos conhecem a nós, sabemos das suas opções de classe, sabemos que em matérias fundamentais o quão distantes estamos, seja do ponto de vista da defesa da nossa soberania, dos problemas da integração monetária, da soberania económica, sabemos o seu percurso relativamente às privatizações, relativamente à legislação laboral. Nunca tivemos ilusões relativamente ao PS. Agora, isso não nos impediu de procurar momentos e pontos de convergência, designadamente entre 2015 e 2019, para recuperar direitos e rendimentos que tinham sido usurpados ao povo português durante o período da troika, e isso foi possível, e até avanços novos, mas sem a ilusão que o PS pudesse em algum momento dar as respostas que isoladamente nunca tinha dado. Ele foi forçado a isso pela nossa luta, pela nossa intervenção, pela determinação do PCP, eu diria até pela nossa frontalidade.
Foram seis anos, seis orçamentos viabilizados, o PCP é um partido institucionalista e este Orçamento em particular não tinha a mínima condição para ser, pelo menos, levado até à discussão na especialidade?
Quando colocámos a abordagem relativamente a este Orçamento... Repare o seguinte, nós nunca fizemos uma abordagem, não houve aqui um pacote de seis orçamentos. O que houve foi em cada ano uma discussão a partir do momento que estávamos a viver e quais é que eram as respostas mais imediatas que se colocavam. Em 2016 o que era urgente era repor os cortes que tinham sido impostos pela troika e devolver ao povo português aquilo que tinha sido imposto pela troika. Ora, seis anos depois não é isso que se coloca. Seis anos depois coloca-se a necessidade de outro tipo de avanços. À medida que o tempo foi avançando, as opções do governo relativamente, volto a insistir, ao trajeto do défice e as suas opções económicas também, foram estreitando a margem dessa resposta mais avançada que precisávamos para os problemas do país.
Portanto, não havia condições para levar à especialidade. Ou havia?
Volto a insistir, não se trata apenas de medidas avulsas, pontuais, por mais mérito que possam ter e nós valorizamos todas e cada uma delas, batemo-nos por elas. O aumento das pensões para este ano, a gratuitidade das creches são medidas importantes. Aliás, o que acontece é que o governo acaba, de certa forma, por as desvalorizar porque não considera uma resposta global ao conjunto dos problemas. Global estou a dizer salários, serviços públicos, justiça social e justiça fiscal também, respostas do ponto de vista do combate ao défice demográfico, sobretudo num quadro, volto a sublinhar, em que se exibiam recursos que não eram pequenos.
E volto a perguntar, em nenhum momento o PCP ponderou levar a discussão até à especialidade?
Bem pelo contrário. Batemo-nos até ao fim para que essa discussão pudesse existir. Agora, para que essa condição exista tinham de existir sinais e compromissos do governo que permitissem haver a segurança que se estaria perante uma resposta global aos problemas profundos que o país tem.
Ou seja, o caminho para a especialidade acaba por não ser feito porque o PCP não confiou no governo. É isso?
Volto a insistir, não se trata de um problema de confiança ou desconfiança. O governo não chegou àquilo que era necessário para responder de uma forma global aos problemas do país.
Mas uma negociação implica cedência de ambas as partes. Isso é que é uma negociação.
Claro! A expressão negociação tem o que se lhe diga porque isso envolve uma troca e nós não trocamos nada nestas discussões. Olhamos para os problemas do país, repare que nunca fomos propriamente para a formulação de negociações. Se olharem para o peso e para a forma como vamos medindo as palavras, esse nunca foi um conceito que entrasse propriamente no léxico do PCP relativamente a isto. Discussão com o governo quanto a soluções para o país. Essas soluções o governo afastou uma parte significativa dessas soluções. Afastou a resposta do ponto de vista dos salários, afastou a resposta de emergência que era necessária relativamente ao SNS, afastou a resposta que é urgente relativamente ao problema da habitação. Tivemos toda a campanha das eleições autárquicas com a maioria dos candidatos e dos autarcas a dizer é preciso intervir do ponto de vista da habitação, estamos numa escalada de preços, desestabilização dos contratos de arrendamento, o governo recusa intervir relativamente a esta matéria. É a ausência dessas respostas que não permite avançar-se para uma fase de especialidade.
Mas essa fase da especialidade, que duraria mais um mês, não teria permitido esses detalhes? O próprio primeiro-ministro pediu isso.
O primeiro-ministro, quando pediu isso agora nestes dias da discussão final do Orçamento, sabia perfeitamente que não estavam reunidas as condições para isso. Faz parte, digamos, não tanto da discussão que se está a ter agora, mas provavelmente os objetivos que anunciou relativamente ao futuro. Porque ou há da parte do governo compromissos e sinais para se ir aquilo que era fundamental. Não era agora em meia dúzia de dias que seria possível responder aquilo que durante meses o governo foi recusando.
As negociações duraram quantos meses?
Nós começámos a conversar em julho.
Essas reuniões eram semanais?
Tiveram momentos diversos, foram mais intensos a seguir às eleições autárquicas. Em julho fizemos uma sinalização global de que queríamos ver respondido neste Orçamento. O governo teve todo o tempo para refletir e optar por aquilo que decidiu optar, sendo que nós preferíamos que tivesse sido noutra direção.
Pergunto se o PCP se cansou de ser sempre o PCP a salvar a situação quando via o BE a demarcar-se cada vez mais?
O Bloco fará o seu juízo. Eles não acompanharam o Orçamento de 2021. Tinham acompanhado o Orçamento suplementar n ano anterior, mas fará o seu juízo. Mas nós não nos deixamos condicionar. Quando decidimos relativamente a esta matéria não foi a pensar se o Bloco estaria ou não estaria a acompanhar a nossa decisão. Temos, felizmente, uma enorme autonomia de decisão em relação a essa matéria.
Na votação de quarta-feira, o que as imagens televisivas nos mostraram foi Jerónimo de Sousa cabisbaixo, até algo agastado, e depois há aquele momento final em que o PCP está de pé ao lado do Chega, ao lado da direita, a votar contra o Orçamento. O que é que pensarão disto os militantes do PCP?
Percebo perfeitamente a expressão do meu camarada Jerónimo de Sousa depois de todo o esforço que fizemos para que o Orçamento pudesse seguir em frente, e perante a recusa do governo, esse Orçamento não tenha tido essa possibilidade. Porque não nos batemos por algo etéreo, batemo-nos por soluções para os problemas com que grande parte da população está confrontada. A ausência dessa resposta não deixa nenhum comunista, a começar pelo secretário-geral do PCP, satisfeito.
Mas na prática essa ausência de compromisso entre o governo e o PCP deixa o PCP voltar ao lado das bancadas da direita.
Penso que o PS procura projetar essa imagem com outro tipo de objetivos...
Mas não é uma imagem. Vimos todos no país o PCP, o PEV e o Bloco a votar ao lado da direita.
Duas notas sobre isso. Os pontos de partida para uma rejeição deste Orçamento da parte do PCP ou da parte dos partidos de direita são completamente distintos e creio que não há nenhuma imagem que consiga apagar essa compreensão por parte de quem nos está a ler. O PSD, o CDS e os seus sucedâneos não votaram contra o Orçamento por quererem melhores salários, por quererem estabilidade na habitação, por quererem um SNS mais reforçado.
Mas quando se vê a imagem da votação, vemos o PS sozinho isolado e todo o resto do parlamento em pé.
O resultado final responsabiliza sobretudo quem não quis perante os problemas do país dar-lhes resposta. Mas ele também não apaga uma outra coisa, os inúmeros momentos que ao longo deste último ano e de anos anteriores vimos o PS ao lado do PSD, do CDS e dos seus sucedâneos, como o Chega e a Iniciativa Liberal [IL]. Quer um exemplo? Proposta do PCP para o aumento do salário mínimo nacional. A arrumação de votos foi exatamente essa, com o PS ao lado do PSD, do CDS, do Chega e da IL a votarem contra. Eliminação da lei dos despejos. Resultado: PS, PSD, CDS, IL e Chega a votarem contra a proposta do PCP. Alteração das normas gravosas da legislação laboral. PS, PSD, CDS, Chega e IL a votarem em conjunto. E essa não é uma imagem apenas de um dia. É um quotidiano de opções que se têm registado, designadamente na Assembleia da República [AR]. Em matéria de legislação laboral, de direitos dos trabalhadores, de valorização de profissões e de carreiras, de habitação. Resposta aos problemas de energia, designadamente regulação dos preços, limitação das margens e opções também no plano fiscal. PS, PSD, Chega, IL e CDS a votarem em conjunto. Essa é uma imagem muito frequente, infelizmente, na AR. E isso mostra uma coisa que temos afirmado, é que ao contrário daquilo que o país precisava, o PS mantém-se muito comprometido com a política de direita.
Vestindo agora a pele de eleitor, os eleitores que não têm disciplina de voto podem entender que faz mais sentido o chamado voto útil e, portanto, reforçar até o PS para evitar que a direita ganhe as próximas eleições?
Primeiro, nós não andámos ainda a falar de eleições e não sabemos se vai haver eleições, até pensamos que não é necessário.
Não é obrigatório mas parece ser esse o caminho anunciado pelo Presidente da República.
Pensamos que não é necessário. O que é necessário são respostas ao país e essas respostas podem ser tomadas mesmo não havendo, para já, OE. Nós temos estado concentrados nessas respostas ao país. Quando alguns procuraram saltar etapas e de certa forma criaram um elemento de desestabilização e de crise, o PCP esteve sempre concentrado nas respostas aos problemas das pessoas. Quanto à pergunta que me colocou. Eu ponho-lhe a questão de outra forma, que é se quem nos está a ouvir [ler] considera que é justo, necessário, possível, aumentar os salários, que isso é um aspeto determinante para o presente e o futuro do país, que é necessário robustecer e fortalecer os serviços públicos, que é necessário dar uma resposta aos problemas da habitação com o agravamento que se verificou nos últimos tempos, que é preciso libertar as leis laborais das suas normas mais gravosas, então eu julgo que terá seguramente no PCP e na CDU uma opção que dá força a esse sentido de avanço e de progresso que as opções do PS não dão.
E o PCP terá ido para esta jogada como uma jogada de vida ou de morte para preservar também o seu eleitorado ao chumbar o OE?
Não, não... Isso não é o nosso cálculo. Foram criados determinados tipos de cenários, de que o PCP estaria, eventualmente, a propósito dos resultados eleitorais das autárquicas, que alguns se encarregaram de desvalorizar, que estaríamos a fazer isso por esse tipo de cálculo. Nós não trabalhámos para chumbar o Orçamento, volto a insistir.
Falou das autárquicas, e estas e as de há quatro anos, já revelaram uma erosão no eleitorado tradicional do PCP. O PCP perdeu câmaras importantes há quatro anos, não conseguiu recuperá-las agora. Agora perdeu, por exemplo, Loures, e não recuperou Almada. O PCP está a pagar o preço de seis anos de geringonça?
Não, não...
Então o que é que aconteceu?
Queria aqui sublinhar o seguinte, nós valorizámos tudo quanto foi alcançado. Não há aqui nenhum tipo de ato de contrição relativamente àquela frase que ficou célebre da parte do Jerónimo de Sousa que é o PS não governa se não quiser. E fomos determinantes nisso.
Mas não foi isso que perguntei.
Pensamos que o nosso país estaria hoje pior se não tivéssemos tomado essa decisão.
Perguntei-lhe se acha que do ponto de vista eleitoral a erosão nas últimas duas eleições é um preço a pagar...
Nós não temos uma visão de curto prazo para o nosso país nem sobrepomos aquilo que é o interesse mais imediato relativamente àquilo que são questões de fundo que se colocam ao nosso povo. E recusamos, desde logo, a ideia de que há uma correlação entre estes últimos anos do ponto de vista de viabilização de orçamentos, da parte do PCP em relação a orçamentos do PS, e os resultados eleitorais. Nós já tivemos bons e maus resultados eleitorais mesmo fora deste contexto. É um quadro, apesar de tudo, bastante diferente. O que eu julgo que é notável e creio que é compreensível é que o PCP não é propriamente uma força política que seja acarinhada nos media, que tenha uma presença estimulante desse ponto de vista, já para não dizer outra coisa, o que é inquestionável é que o PCP e a CDU se afirmaram nestas últimas eleições autárquicas como uma grande força autárquica. A presidência de 19 câmaras municipais, 115 juntas de freguesia, mais de 2 mil eleitos. Desvalorizar isso creio que não é uma análise política muito assertiva.
Mas nunca tiveram a nível autárquico uma tendência decrescente tão continuada. Isso são números, não são interpretações políticas.
Volto a insistir, olhe-se para os nossos resultados autárquicos, eles tiveram oscilações ao longo destes anos. Houve anos em que tivemos até recuperação de câmaras, o caso de 2013, em que creio que chegámos às 34 câmaras, perdendo algumas e perdendo outras do ponto de vista de presidência de câmaras. O que quero sublinhar são duas coisas: não há uma correlação entre estes anos de nova fase... e não desvalorizemos aquela que é uma importante força autárquica como é o caso da CDU. Porque repare o seguinte, há partidos políticos que andam há anos a tentar intervir nas eleições autárquicas e não têm qualquer tipo de expressão. Portanto, não é propriamente uma batalha fácil essa de disputar presidências de câmara...
Não é seguramente. Mas do que estamos aqui a falar é, acabou de dizer, que em 2013 eram 34 câmaras, em 2021 são 19. Portanto, há uma erosão acentuada. E, portanto, a minha questão é se acha que essa erosão pode ter ficado a dever-se ao facto de o PCP ter dado aval aos orçamentos socialistas.
Essa correlação não reconheço, porque já tivemos momentos de crescimento eleitoral do ponto de vista autárquico fora desse contexto e já tivemos momentos de recuo do ponto de vista autárquico fora desse contexto.
Já disse que não é seguro que vamos ter eleições ainda que seja esse o tom das palavras do Presidente da República. Se houver legislativas, admite que o PCP possa sair fragilizado? Reforçado?
Permita-me apenas que diga, antes disso, que nós pensamos que nada obriga a que a AR seja dissolvida e que se vá para eleições.
Qual é o cenário que lhe parece mais provável, então?
O governo está em funções, aparentemente o governo diz que quer continuar em funções, o que pensamos é que neste enquadramento deve procurar responder aos problemas com que as pessoas estão confrontadas, tem um Orçamento que está em funcionamento e tem de o executar. Aliás, nós durante este último ano, se houve coisa que fomos chamando a atenção era para a necessidade de se cumprir o que está inscrito no Orçamento para 2021 e até ao final do ano o governo pode ir, deve, aliás está obrigado a cumprir o Orçamento que está em vigor, e no início do ano, se estiver efetivamente empenhado numa resposta aos problemas do país, tem sempre a possibilidade de apresentar um outro Orçamento. Aliás, nós não vemos nenhuma dificuldade em que se possa estar alguns meses em duodécimos, tivemos isso em 2020, repare que as eleições foram em 2019 e o Orçamento só foi aprovado em março, final de fevereiro, mesmo em 2016, creio que esse período até foi mais longo, de modo que colocam-se outras opções em nosso ver mais adequadas que não a ida para eleições. Cumprir o OE que está em vigor até ao fim, e se o governo estiver empenhado em dar essas respostas, tem sempre a possibilidade de apresentar até outro Orçamento. Volto a insistir, nós não temos nenhuma fixação em votar contra o Orçamento. Se houver a possibilidade de um OE que responda àquilo que não se conseguiu responder agora, é evidente que podemos ter uma outra consideração relativamente a isto.
Mas ainda assim, se em todo o caso o PR insistir em ser um fator de instabilidade provocando eleições antecipadas e criando esse cenário, então que o faça com a maior brevidade possível e cá estaremos para disputar também essas eleições.
Só não respondeu se considera que o PCP pode ir para legislativas reforçado ou fragilizado depois do chumbo do Orçamento.
Nós vamos para estas eleições legislativas se elas eventualmente existirem, ou quando elas existirem, porque a nossa opção não é essa, pensamos que é possível fazer um percurso que evite essas eleições e que tenha no centro as respostas aos problemas do país, mas se esse cenário vier a colocar-se vamos com confiança nas nossas propostas, nas nossas soluções, na nossa ligação à realidade e à vida, sabendo que aquilo pelo qual nos batemos tem um grande eco, uma grande correspondência, com quem aspira a uma vida melhor.
Acabou de dizer que "se o PR insistir em ser um fator de instabilidade".
Sim.
Mas o PR nas suas competências e no seu juízo avisou há mais de um mês que sem Orçamento convocava eleições. Portanto, o PCP...
Olhe, nós ainda andávamos a discutir as soluções para o país e já o PR estava a pôr esse cenário em cima da mesa. Pensamos que não ajudou.
Mas essa formulação do PR que ficou clara para todo o país não fez o PCP mudar de opinião? Ou seja, isso que está a dizer, não é preciso ir para eleições, mas o Presidente já avisou que vai haver eleições.
Claro, mas o senhor Presidente da República tem de ter em conta as opiniões diversas que existem na sociedade portuguesa que, felizmente, são plurais, e nós não nos encaixamos nesse cenário que o PR procurou fazer. Pensamos que foi desadequado.
Uma questão, na opinião do PCP, é ser desadequado. Outra questão é essa declaração ter existido. Portanto, como é que o PCP lidou durante a negociação com esse...
O senhor Presidente da República dirá dos objetivos que estiveram por trás dessa afirmação, mas não nos deixámos condicionar por ela e fomos à luta até ao fim do ponto de vista das respostas aos problemas do país. E foi aí que estivemos concentrados. Agora, nada obriga a que haja eleições. O governo deve procurar executar o Orçamento que está neste momento em vigor, não é nenhum drama se existirem alguns meses em duodécimos, tivemos essa situação em 2016, em 2020, para não ir mais atrás, e se estiver empenhado em encontrar soluções para o país nós não estamos empenhados em chumbar orçamentos, bem pelo contrário. Queremos soluções e o governo tem sempre essa possibilidade de apresentar uma solução no início do ano. Se o PR decidir entretanto dissolver a AR, então que o faça com clareza e brevidade.
Deixe-me voltar ao miolo do Orçamento, porque uma das respostas que procuraram foi precisamente para as questões laborais. Elas devem realmente ser tratadas em OE?
Quando começámos a considerar este Orçamento e outros nunca isolámos o Orçamento de outras medidas que têm de ser complementares. É assim desde 2015. Aliás, logo no arranque a seguir ao governo PSD-CDS, houve um conjunto de matérias que avançou de dimensão laboral ou correlacionadas com isso à margem do Orçamento. A reposição dos feriados ou das 35 horas na administração pública foram elementos que foram introduzidos na discussão e na concretização em termos da vida dos portugueses independentemente do OE, ou melhor ainda, articulando com a discussão que se ia ter no OE. Nada disso é novo. Discutir aspetos relacionados com a legislação laboral não tem nenhuma dificuldade. Aliás, o governo entra, de certa forma, em contradição com isso, porque o governo discutiu questões de legislação laboral com o PCP, não foi surpreendido na AR quando nós colocámos a legislação laboral. O problema é outro. Quer num quadro da discussão do Orçamento quer fora do Orçamento, o governo, o PS, o PSD, o CDS, não querem mexer na legislação laboral. E essa legislação laboral que atualmente está em vigor é um fator de promoção de instabilidade e de crise na vida dos trabalhadores, de desregulação de horários, de alargamento da precariedade, de compressão dos salários. A ausência de respostas relativamente a esta matéria traduz-se num país que se está a afastar progressivamente dos padrões de desenvolvimento que, apesar de tudo, existem em alguns dos países da própria União Europeia. E afastamo-nos quer do ponto de vista dos salários quer do ponto de vista da proteção dos trabalhadores. O caso da caducidade da contratação coletiva. A caducidade não é uma palavra. Nos contratos coletivos de trabalho a caducidade está introduzida desde 2003, há 18 anos que existe caducidade na contratação coletiva. Havia mais de 2 milhões de trabalhadores abrangidos por contratos coletivos de trabalho. O que é que dizem estes contratos coletivos de trabalho? Definem salários, subsídios, horários de trabalho, regras diversas, até a própria liberdade sindical. Essa caducidade levou a uma razia do ponto de vista do número de trabalhadores abrangidos pela contratação coletiva. E propusemos ao governo que essa caducidade pudesse ser revogada. E o governo discutiu connosco. Mandou-nos propostas inclusivamente em relação a isso. Como é que o governo diz agora que não se pode discutir legislação laboral? Não está a ser sério!
E não está a ser sério também em relação à discussão do salário mínimo?
Se o governo discutiu legislação laboral com o PCP, como é que agora pode dizer que não se deve discutir legislação laboral em altura de Orçamento? Se ainda no passado sábado estivemos a discutir legislação laboral! Não é sério. É um argumento que não corresponde...
Mas legislação laboral que podia ser resolvida através do Orçamento ou legislação laboral que há de ser resolvida mais à frente no parlamento?
Repare que nós não nos limitámos ao OE na abordagem que fizemos com o governo. Nem o governo nos disse que só queria discutir OE. Podia ter-nos dito! Nós só discutimos OE, tudo o que não seja do OE não discutimos. Isso não corresponde à verdade. É evidente que agora, numa fase final de dramatização dos seus argumentos, procura trazer esse aspeto para cima da mesa, mas não é sério. Como vos digo, no passado sábado estivemos a discutir legislação laboral e salário mínimo nacional, não discutimos contra uma parede, discutimos com o governo, com o primeiro-ministro e com os outros ministros que estavam lá. Não corresponde...
E perguntam agora os leitores, e o salário mínimo passar para os 850 euros, ficará pendente? Irá adiante?
Quando dizemos que não é preciso fazer eleições e que o governo deve responder aos problemas do país, uma das questões por que não precisa de Orçamento para responder aos problemas do país é, designadamente, o salário mínimo nacional. Nós defendemos o aumento do salário mínimo nacional para 850 euros e pensamos que essa é das medidas mais importantes que se podem adotar do ponto de vista de dinamização da nossa economia.
E há condições para isso?
Há um percurso que tem de ser feito até lá. E quando colocámos os 850 euros em cima da mesa, pusemos isso num curto prazo mas sabendo que o governo tem o objetivo dos 750 euros. Podia o governo ficar com os 750 euros e nós com os 850 euros e não haver discussão. Mas não. Nós adiantámo-nos, numa primeira fase, que se pudesse avançar para os 800 euros já no próximo ano e admitindo até que o ano arrancasse com 755 euros de salário mínimo nacional, corresponderia um aumento de 90 euros para este ano. O governo não se mexeu um milímetro relativamente a isto. Quando me perguntam se há condições para o aumento do salário mínimo nacional, eu diria que é uma necessidade.
E o impacto nas pequenas e microempresas, que são o grande tecido que tem muitos trabalhadores com o salário mínimo?
Eu conheço muitas pequenas empresas, muitas mesmo, que se dirigem ao PCP, com as quais trabalhamos, etc. Eu acho que as pequenas empresas são utilizadas como arma de arremesso para impedir o aumento do salário mínimo nacional. Mal do país, mal da empresa, que não tenha condições para pagar 755 euros em janeiro a um trabalhador seu. Porque a média dos custos laborais hoje na estrutura de custos de uma empresa ronda os 14%. O que acontece com as pequenas empresas, com as micro, pequenas e médias empresas, e seguramente muitos empresários que me estão a ouvir têm essa consciência, é a pressão crescente que têm dos preços da energia, da eletricidade, do crédito, dos seguros, das portagens, das telecomunicações. Isto é, as pequenas empresas são esmagadas não pelos custos salariais mas pelo domínio que existe por parte do capital monopolista em relação a muitos desses setores estratégicos.
É desta que Jerónimo de Sousa terá de assumir uma alteração na liderança do PCP e o próprio partido na medida em que não só foi chumbado o Orçamento mas houve uma série de bandeiras das quais falou que não foram alcançadas, nomeadamente do ponto de vista laboral?
Nós temos um ótimo secretário-geral, isso é uma questão que não está colocada. O Jerónimo está com muita força e determinação para prosseguir a nossa luta.