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O convite foi espontâneo, mas acabou por tornar-se um ofício prazeroso. No final de 2018, a direção da TSF pediu-me que escrevesse sobre Portugal. O que vê um emigrante de quase duas décadas quando regressa, com 40 anos de idade, ao seu país? Escrevi, com apego, mais de meia centena de artigos (41 deles hyperlinkados abaixo). Entrevistei algumas pessoas, conversei com mais, observei todas. Aprendi e desaprendi em contrição. Aproximando-se o final de 2020, esta será a última das minhas colaborações na TSF. Neste período, rodopiei dentro de mim, como um pião, por quase todos os estados de alma até conseguir olhar para o país com uma certa calma, sem latejos ou agitações. Ainda não dei repouso à frustração, mas um certo orgulho começa a despontar. Portugal ainda é um país muito igual, mas também já é diferente.
Sem espantos, a identidade portuguesa continua centrada na potência da lusofonia e da língua portuguesa, embargando-se, com isso, a nossa capacidade de questionarmos racionalmente quantos são, na verdade, os falantes de português e de democratizarmos o acesso à língua.
Apesar de ser um país centenariamente aberto ao mundo, Portugal continua fechado dentro de si próprio, a nível cultural e profissional. É um país de imigrantes, mas ainda não é um país cosmopolita. Sobejam os que muraram os seus minifúndios profissionais para conseguir subsistir num contexto de maior competitividade. Sobram os que preferem ser os reis de um pequeno reino sem gente do que gentios num grande reino repleto de diversidade.
Ainda que o país tenha avançado significativamente no período democrático em tantas arenas públicas, continua a ter dificuldades em adotar medidas cogentes para ultrapassar o flagelo dos fogos florestais e a ter problemas com as suas mulheres e homossexuais. E a não debater publicamente a sua política externa, o abalo psicológico da guerra colonial ou a enfrentar a crise demográfica.
Uma particularidade do país, difícil de encontrar num país europeu com tradição democrática, é a hiperpartidarização do espaço cívico, a falta de uma sociedade civil pulsante e a escassez de debate público. Incham-se-nos os olhos com a quantidade de espaços de opinião na comunicação social, mas são predominantemente ocupados por políticos e ex-políticos e existe uma sobrevalorização do comentador relativamente ao comentário. Os nossos opinion-makers deixaram de refletir a diversidade de género, identitária, e etária da sociedade portuguesa.
A falta de um verdadeiro debate público em Portugal também é um indicador das nossas carências. Somos inseguros e individualistas. Não tomamos risco. Não gostamos de ser questionados. Os portugueses, no fundo, gostam de serem gostados, nem que para isso tenham que aceitar um certo rebaixamento, uma quase subordinação. E muitas vezes abafamos os nossos vazios com o futebol. Sem grandes feitos profissionais ou regozijos culturais, há uma geração de portugueses que só vive nos dias de jogo.
Debater significa também debater-nos. Tanto o presente quanto o passado. A história, mesmo aquela que agora nos envergonha, não pode ser apagada. Precisa de ser objeto de trabalho interpretativo e museológico. O colonialismo é o tema mais abrasado. Mas há outros. Como beirão, habituado a escutar os anciões a admoestar os franceses e a imaginar com seriam os castiçais de ouro da capela onde recebi a água batismal, teria gostado que o governo português tecesse uma opinião sobre a possível reivindicação dos bens saqueados pelos franceses no século XIX.
Quando ao futuro, ainda hesitamos sobre o que queremos ser, como país, como comunidade. Pensamos pouco a longo prazo. Quase sempre as nossas políticas públicas são desenhadas numa prancheta do tamanho de um mandato. Seria necessário termos mais vozes agigantadas e independentes, mas os vultos portugueses estão a morrer e estão a deixar poucos herdeiros. Faltam-nos aqueles que nos apresentam um itinerário em direção a algum anseio coletivo.
Isto é particularmente relevante num mundo pós-pandémico, com a emergência de conflitos entre a localização das relações pessoais e a centralização do poder político, o fim da privacidade, a reinvenção das cidades, a aceleração tecnológica, o capitalismo sustentável, a revolução do ensino e do conhecimento e o nascimento de um novo sistema económico centrado na nossa capacidade individual de manipular fotões, eletrões, DNA, moléculas e bits quânticos.
Mas nenhum desafio é tão inquietante quanto a crise climática. Portugal é uma referência em temas ambientais e em consumo e produção de energias renováveis. A agenda das alterações climáticas foi absorvida por sucessivos governos. Mas ainda não pela população, apesar de, em 50 anos, o país poder ser fortemente afetado por choques meteorológicos e pela subida do nível das águas do mar, eventualmente engolindo regiões como Figueira da Foz, Aveiro, os estuários do Tejo e do Sado e a Ria Formosa.
Outra particularidade do país é que a renovação política pós 25 de abril falhou. Afetados por ditaduras no século XX, cientistas políticos muitas vezes comparam o apego das elites políticas brasileiras e portuguesas ao poder. Mas o movimento recente de revitalização de quadros políticos no Brasil não encontra um irmão gémeo em Portugal. É possível ter melhores gestores públicos em Portugal? Sim, é. E para isso precisamos de mais vigilância, como a criação de instrumentos para avaliarmos os nossos deputados, e de nos preocuparmos com o envelhecimento das instituições democráticas, como a Assembleia da República, o poder judicial ou os sindicatos. Se um jovem de 30 anos assume um cargo imitando os vícios do seu progenitor, não existe regeneração, apenas preservação. Independentemente da ideologia, em muitos núcleos de poder Portugal ainda é um país de herdeiros ou de idosos. Precisamos de adotar medidas para atrair e reter talentos qualificados em cargos públicos. A trajetória atual, se inalterada, é a seara perfeita para o nascimento de líderes populistas ou radicais.
No futuro a cidadania almejará atingir a cogovernação ou, pelo menos, a vigilância ativa de todos aqueles que afetam o seu bem-estar individual, como um governo ou as corporações. Este novo tipo de cidadãos começa a emergir em Portugal.
Cidadãos empoderados concluirão que a modernização da máquina do estado, com tantas conquistas importantes ao longo das últimas duas décadas, ainda preserva lacunas. Um exemplo do artesanalismo e das vistas curtas da administração pública são os Exames Nacionais, que afetam anualmente cerca de 160 mil portugueses.
Portugal também ainda mostra sinais de anacronismo digital, com poucos consumidores de produtos online.
O mesmo é visível nas empresas. Trabalhamos muitas horas, mas, paradoxalmente, somos pouco produtivos e modernos. Gostamos de controlo, de hierarquias e de compartimentalizações. Gostamos de ser ou de ter patrões e chefes. Defendemos as nossas fronteiras de atuação profissional como se fossemos D. Nuno Álvares Pereira na Batalha dos Atoleiros. Não gostamos de ingerências, de ser desafiados, de nos misturar. E os nossos CEOs, com exceção de meia dúzia de grandes empresas, ainda está atrasada na incorporação de políticas e práticas ambientais, sociais e de governança corporativa (ESG) nas estratégias e operações das suas empresas.
A geografia de Portugal, no extremo de um pedaço do mundo, proporciona-nos uma certa impetuosidade dramática. É aqui que tudo se principia ou tudo se acaba. Somos juntamente precedência e destino, minúsculos e maiúsculos - uma nação com medos do tamanho da Espanha e um brio do comprimento do Brasil. Esta complexidade nunca será devidamente capturada numa série de dezenas de artigos. Falta escrever muitos outros, sobre muitos outros temas, e por muito mais gente.
Termino agradecendo à direção da TSF que me convidou em 2018 (Arsénio Reis, Ricardo Alexandre, Pedro Pinheiro, Anselmo Crespo, Ricardo Oliveira Duarte) e à equipa que prestou todo o apoio ao longo dos anos (Rosa Garcia, Teresa Mota, Pedro Andrade Soares), com uma palavra especial para o Ricardo Alexandre, por dividir comigo a crença que o Portugal de que gostamos não se herda, cria-se.
Rodrigo Tavares é fundador e presidente do Granito Group. A sua trajetória académica inclui as universidades de Harvard, Columbia, Gotemburgo e Califórnia-Berkeley. Foi nomeado Young Global Leader pelo Fórum Económico Mundial.